quarta-feira, 21 de outubro de 2020

PARA HELENA MARQUES NO SEU ULTIMO CAIS: OUVI-LA DE NOVO, COMO HÁ VINTE ANOS:

                                                                 


Chegou aquela hora em que, desta margem do rio, foi-nos dado contemplar Helena Marques entre “aqueles que da lei da morte se vão libertando”. 

“ O Útimo Cais” – assim foi seu romance primeiro E agora foram os seus livros que lhe construíram o derradeiro porto de chegada, o “Último Cais”  da longa viagem da vida.

Para falar de um escritor, não há palavras como as dele. Porque mais autênticas, mais íntimas, mais sofridas e vividas. Para evocar a “nossa” Helena Marques, também não há palavras como as dela. Por isso, ao sabermos da despedida , não quisemos dizer adeus, um adeus formal. Fomos logo ao baú das memórias felizes e aí encontrámos lenços brancos de saudade, que cheiravam ainda a presença, a simpatia perfumada, a paz dinâmica que Helena Marques transmitira em Machico aos jovens, numa  amena mesa redonda, como de mãe para filhos, quando a entrevistaram para o semanário estival “Domingo Jovem”, a cargo do Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira Seca.

Gesto nobre de uma figura de primeira grandeza, galardoada com vários prémios literários, jornalista e escritora de reconhecido mérito em Portugal – gesto nobre, sublinho, revelador daquela timbrada simplicidade que caracteriza as almas grandes, ao receber jovens de uma comunidade, suburbana, quase rural! Ficámos eternamente gratos!

Ocorria o centenário da morte de Eça de Queirós. Helena veio falar-nos do memorável cultor do romance português. E de Machico. Transcrevo alguns excertos:

É sempre um prazer estar em Machico e é sempre um prazer falar de Eça de Queirós, de quem sou uma leitora apaixonada. É daqueles autores que tenho sempre à minha cabeceira. Amanhã, falar-vos-ei  dele na conferência já agendada. Quanto a Machico, gosto de cá estar, tenho vindo sempre aqui de férias. Recordo quando ia tomar o chá àquela quinta “Paradise”, distintíssima, requintadíssima, lindíssima, a mais bonita que havia na Madeira.

À questão – “Tem-se dito que nos seus romances perpassam cenários e personagens do mundo queirosiano” – responde:

Eu não sei se isso é verdade, oxalá que o seja. Quando saiu “O Último Cais” disseram-me que fazia lembrar os romances do século XIX. Eu fico sempre muito sensibilizada porque acho que no final do século XIX se escreveram obras magníficas. Não só em Portugal, como Eça de Queirós, mas também outros escritores franceses e russos, como Tolstoi e Dostoiewsky. Acho que a literatura oitocentista foi de facto brilhante. E dizerem-me uma coisa dessas deixa-me perfeitamente lisonjeada, fico satisfeita, embora acho que é uma generosidade.

Sobre os prémios alcançados, observa com exacto realismo:

É grande a sensação de receber prémios fora da Madeira. Temos de admitir que a nossa terra é muito pequena, não significa muito no espaço nacional. É verdade que recusei-me a receber a “Orquídea de Prata”, uma distinção regional, porque achei que não  fazia sentido nenhum vir de Lisboa receber um prémio de escritora numa ilha, a minha ilha, onde fui tão mal vista como jornalista. Quanto ao prémio da Associação Portuguesa de Escritores, deu-me muita alegria e foi muito significativo, pois fiquei perfeitamente entalada entre Saramago (que recebera no ano anterior) e Vergílio Ferreira (no ano seguinte ao meu).

Tendo-lhe sido proposto o desafio de escrever um romance sobre o grande sonetista machiquense Francisco Álvares de Nóbrega, o “Nosso Camões Pequeno”, Helena Marques acedeu com gentileza e agrado:

É possível, de facto, mas isso exigiria uma grande investigação, até uma presença física, exigiria mesmo que eu viesse para cá, mas nesta altura será difícil, porque sou uma avó cheia de netos, não a tempo inteiro, mas sou uma avó disponível, sempre que é preciso. Todavia, não ponho de parte essa ideia, de maneira nenhuma. Acho que é muito interessante. Acho que Machico, desde as lendas de Machim e Ana d’Arfet, tem muito interesse. Muito obrigada pela ideia.

Acerca do livro e das leituras, define-se:

A minha relação com o livro é muito física, como as pessoas têm uma relação física entre si. Eu tenho que sentir o papel na mão, tenho que poder mexê-lo, abri-lo quando me apetece, fechá-lo quando quiser, sem ter que passar pela fase de ligar ou desligar. Eu tenho com os livros uma relação muito física e muito emocional, quer dizer, gosto de voltar atrás, de reler uma passagem que me impressionou muito e há muitos anos. Acho que nunca conseguirei converter-me à leitura pela internet. Quanto aos mais novos, comento com muita mágoa o desgosto da juventude pela leitura, vai marcá-los nos homens muito negativamente, tenho muita pena. Acho que é uma perda, é fechar o acesso a um mundo fascinante, que está ali à nossa mão, é só ir buscar, está aberto a toda a gente e a que os jovens estão a fechar-se sem razão, por desconhecimento, por uma antipatia instintiva, e que não é baseada sequer numa experiência traumatizante (‘ai, li uma coisa horrorosa, nunca mais quero saber de livros’). Não é isso. Não têm vontade. Uma mágoa.

Que mensagem para os jovens e para a Madeira?

A minha mensagem para os jovens e para a Madeira seria o “Regresso à Leitura”. O que significa que os livros dão prazer. E isso é fundamental: que o livro nos dê prazer, mesmo que seja um livro muito sério, um livro que pretende atingir objectivos éticos muito elevados, mas tem que dar prazer, tem que ser exposto de maneira que dê prazer às pessoas. E é esta uma grande responsabilidade para os escritores.



Revisitar esta entrevista (para muitos talvez inédita) e reaprender a sua mensagem – eis   a nossa homenagem a Helena Marques. Em vez do “Requiem” de crisântemos espalhados sobre a lousa que o tempo há-de crestar, preferimos trazê-la de novo à nossa companhia, a “Deusa Sentada”  à volta da  ‘Távola Redonda’ de há vinte anos, entre os jovens que ainda o são hoje e sempre serão, à imagem e semelhança daquela que, sendo esposa, mãe e avó estremada, nunca deixou de brilhar como estandarte da  vida, da beleza, da eterna juventude.

Para a família, as condolências e o bálsamo deste recanto da Ilha.

Porque, nunca é demais repeti-lo: “Morrer é só deixar de ser visto”!

 

21.Out.20

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