segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ENTRAR “A-GOSTO” E SAIR “A-GOSTO”

 POSTAIS DE VERÃO 5



Entrar e sair. Subir e descer.

Abrir e fechar.

Procurar e achar. Nascer e morrer.

Tão sinónimos quanto antónimos. Tão iguais e tão diferentes.

Há sempre uma porta que nos chama – e é a entrada. E há sempre uma porta que espera por nós – e é a saída. Entrei no ventre da minha mãe e dele saí para reentrar no túnel da vida e voltar a sair no arco redondo com uma luz ao fundo.

Felizes os que procuram o túnel – solar ou lunar – e dele saem quando querem ou quando sonham.  

Mais importante, porém, que entrar e sair, abrir e fechar, nascer ou morrer – mais importante, mais belo e feliz é fazê-lo A-gosto, Com-gosto, Por-gosto e Para-gosto.

Em cada atalho, em cada muro, em cada mar, em cada corpo e cada alma, hás-de encontrar a porta que te espera, o túnel que te abraça. Entres como entrares – voluntário ou compulsivo – fabrica lá dentro  a tua porta, afina-a, oleada e leve,  nos gonzos de cada palavra e de cada gesto, para  quando saíres (porque um dia será o dia e será a hora) possas sair Com-gosto e Por-Gosto teus e Para-gosto do mundo em teu redor, aquele mesmo mundo que te abriu a porta.

E os nossos projectos?!... Sejam eles sonhados A-gosto, iniciados Com-gosto, erguidos Por-gosto e concluídos Para-gosto e gáudio de quem queira aceitá-los como porta de novo-aberta para o Futuro.  

Tal como este altaneiro  Luar do Mês Oitavo do Ano da Graça de Dois mil e Vinte, porque entrou a-gosto em franco plenilúnio e  hoje mesmo sai, também  a-gosto, caravela iluminante, transportando no seu bojo a anunciada lua-cheia de Setembro!

Cantando com Florbela:

“Que seja minha noite uma alvorada

Que me saiba perder para me encontrar”.

 

31.Ago-01.Set.20

Martins Júnior


sábado, 29 de agosto de 2020

O MONTE SINAI E A SARÇA ARDENTE NO VALE DE MACHICO

 

Postais de Verão 4

                                  


Noite sem palavras e Noite guardadora de todas as emoções.

Palavras inaudíveis nas mãos invisíveis daqueles jovens que arquearam as caravelas crepitantes no dorso do basalto.

Palavras gritantes nas chamas mudas desentranhadas da terra.

Palavras vivas saídas das memórias sepultas.

Palavras filhas da terra, que para o seio dela voltam em lava e cinza, aguardando o ano inteiro pela sua páscoa de um Agosto novo.

Santo Graal escondido nas pregas da montanha, desde a primeira noite da Descoberta.

Fénix Renascida – OS FACHOS – espelho do brasão da filha de Tristão Vaz, Branca Teixeira, reincarnada neste vale majestoso, que foi seu e hoje nosso.

Alma de um Povo, ajoelhada na catedral de outrora, tal qual saíu das mãos do Supremo Criador.

Porque é no silêncio curvado que os nossos olhos se erguem e sonham e cantam a inenarrável saga dos nossos antepassados:

                                       


Os Fachos na serra

Altos a brilhar

São a voz da terra

Que fala a cantar

 

Cantigas de amor

Pão e vinho novo

Bendito o Senhor

Pela voz do Povo

 

29.Ago.2020, Noite dos Fachos em Machico

Martins Júnior

 

  

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

"LEVADAS" QUE SOMOS…

                                     Postais de Verão 3

                                   

     

Deram tudo quanto tinham…

Para matarem as sedes distantes, a pedra apertou-as ao seu seio duro. E de rios que eram, ficaram veias ténues, esguias e mudas, quase secas…

Levam águas e mágoas, trazem espigas e pão.

Arrastam candeias nocturnas, pés gretados e ainda o cheiro à nitroglicerina adunca e ao sangue dos que ali ficaram…

Trazem saudades, deixam lilases, semeiam poemas…

Levadas que somos… que as construímos… que as amamos…

Por nós, nenhuma terra terá sede e nenhuma flor há-de murchar!

 

27.Ago.20

Martins Júnior

 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

TARANTELA DE AMOR ENTRE UM MAR DE CARAMUJOS

                                                                         

Que alvoroço aconteceu

Lá nas bandas de Machico

No coração da Ribeira ?

Caravelas encheram

O mar da Madeira

Será de Abril vinte e cinco

Ou por milagre real

 Será apressado Natal

O vinte e cinco da ‘Festa ?’

 

Festa é

Mas outra  e maior

Canta a espuma branca da maré:

Maturação de um amor

Onde o lagar é um festim

Que não tem fundo nem  fim

 

Veio o sol de madrugada

À noite o luar aceso

Dizer que é terra prendada

Mais doce que o vinho em mosto

Aquela que houve a dita

De ter a graça infinita

De um ‘Vinte e Cinco de Agosto’

 

 Vieram as aves marinhas

Cegonhas e andorinhas

Nem faltaram os marujos

Abraçados às sereias

E os próprios caramujos

No azul das marés cheias

Vararam calhaus a rodos

E juntos cantaram todos:

VIVA O ANO 36

A MAIS BELA DAS SURPRESAS

NESTE PALÁCIO DE REIS

NESTE BERÇO DE PRINCESAS !

 

Revivendo o ‘vinte e cinco de Agosto’ de 1984

Parabéns e confinados beijos

 

25.Ago.20

Martins Júnior

.

 

 

domingo, 23 de agosto de 2020

“QUEM ÉS TU?”... “QUEM SOU EU?”…

                                                                         

Todo o dia dois batentes graves e fundos bateram à minha porta e perseguiram o subterrâneo de mim mesmo:

“Quem és tu?”  e   “Quem sou Eu?”

O primeiro veio da boca angustiada de Madalena ao Romeiro, na preciosa construção dramatúrgica de Almeida Garrett, Frei Luis de Sousa: “Quem és tu, Romeiro?”.  E ele logo respondeu: “Ninguém!”. O enigma da resposta era o que mais atormentava o coração de Madalena e era a que ela menos esperava.

O segundo surgiu, em discurso directo, da interpelação do Nazareno aos seus mais próximos colaboradores: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Este é o batente que há mais de dois mil anos estala sobre o planeta e ainda hoje foi lido em todos os templos do orbe terrestre. Sem, no entanto, conseguir-se resposta adequada. O que, em síntese, equivale à resposta do Romeiro: “Ninguém!”.

E tal como a definição do Romeiro envolvia o grande mistério de muitas vidas (do cavaleiro D. João de Portugal, da sua mulher Dona Madalena de Vilhena, do putativo marido Manuel Sousa Coutinho e sua filha Maria) assim também – mas numa escala infinita - o designativo “Ninguém!”  de Jesus de Nazaré esconde um mundo mais vasto, a história da própria humanidade e a metamorfose da vida dos mortais. Não se pode descrever o percurso humano e civilizacional sem que nos confrontemos, conscientemente ou não,  com esse herói, quase fantasma,  omnipresente no princípio, no meio e no fim do Homem sobre a terra.

Aqui reside o drama e, para quem se interroga de verdade, aqui começa o tormento. “Quem és Tu, Senhor?” – perguntava atónito Paulo de Tarso. E Ele devolve logo com nova interpelação: “Quem pensas que Eu sou?”. Se observarmos, mesmo que a olho-nu, a geovisão dos regimes, instituições e atitudes comportamentais das diversas sociedades, verificamos que a personalidade de Jesus de Nazaré, tal como o Amor e a Verdade, são os fonemas mais sublimes e, paradoxalmente, os mais esfarrapados, mais distorcidos e vilipendiados no comum dos dias. Parafraseando Pedro Casaldáliga que afirmava ser a democracia uma palavra actualmente profanada, não estarei longe da verdade se disser que Jesus corre também o risco (se é que já não o ultrapassou) de tornar-se um vocábulo desfasado do seu étimo original, enfim, um nome profanado.

E tu, quem dizes que Eu sou?”

Alexis Carrel, já em 1903,  ao livro com que acedeu ao Prémio Nobel da Medicina, deu o título “L’Homme cet Inconnu” – Esse desconhecido, o Homem. Mais tarde,em 2001, o teólogo Juan Arías repetia o mesmo título ao seu “Jesus, Esse Grande Desconhecido”.

É o Grande Desconhecido, esse Jesus de Nazaré. Para não cair em certas aberrações que por aí proliferam, limito-me apenas a confessar que quase me ataca uma vaga de temor incontido quando me proponho falar, pronunciar sequer, o nome de Jesus, tais os usos e abusos, aproveitamentos e apropriações, desvios e deturpações com que levianamente (ou não!) embrulham o Seu nome. Supostas liturgias, devoções, igrejas, religiões, assistências de corpo-presente, intervenções políticas, grande parte de tudo isso não passa de lixo caricatural, farisaico, do rosto do Nazareno…

Ils ont changé ma chanson, ma” – soa-me sempre ao ouvido a voz de Dalida, como se fosse a de Jesus de Nazaré a queixar-se irremediavelmente: “Eles cambiaram-me, trocaram-me por outro, por dinheiro, por vaidade, por poder e arrogância, por nada e por ninguém!”.

“Quem és Tu, Senhor?” – sou eu agora que pergunto e fico-me em escuta, enquanto, para conforto meu, rememoro a confissão de Fiodor  Dostoiewski:

“Para mim, Jesus é o que há de mais belo, mais profundo, mais amável e adorável, mais perfeito. E se me viessem dizer que a Verdade não estava com Jesus ou que Jesus não estava com a Verdade, pois eu preferia ficar com Jesus do que ficar com essa Verdade”.

“Maranatah!”

23.Ago.20

Martins Júnior

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

“SOLDADOS DERROTADOS DE UMA CAUSA INVENCÍVEL”!!!

                                                                

Agarra-o, não o deixes fugir! Segura-o, não o deixes cair!

         Eis o clamor, a palavra de ordem dirigida a todos os migrantes que passam por este planeta, sobretudo os vindouros E hoje a cada um de nós, também.  Não deixem fugir Pedro Casaldáliga. Não o deixem cair. Se cair na terra, não  lhe importa nem lhe dói, porque toda a vida ele deu-a à terra. Não o deixem cair no esquecimento! Precisamos dele. É urgente que ele não morra! Esquecermo-nos dele é esquecermo-nos de nós próprios.

         Porque, se “A Liberdade é uma Luta constante”, como titulou o seu livro Ângela Davis, então precisamos dele ao nosso lado. Todos os dias. E todos os viventes. Não apenas os escravos indígenas do Mato Grosso, mas todos quantos têm direito à Vida e à Verdade. Os mestres e pedagogos que sentem nas mãos a força – e a tremenda fragilidade – de conduzir multidões. Refiro-me hoje àquela porção de humanos que decidiram entregar os verdes anos (e os maduros, toda a vida) à nobre causa de evangelizar, uma missão consignada à Igreja. “Evangelizar sem colonizar”, já advertia Pedro Casaldáliga!

         Por mais estranho que pareça, Pedro encontrou na Igreja oficial, estandardizada, um dos grandes obstáculos a vencer. Reflectiu, contestou, concretizou. Contrariou muitas decisões das cúpulas, recusou-se a certas praxes ornamentais (e deformadoras), ousando mesmo afrontar o Vaticano. sempre  com a dignidade que nele superava a coragem e a impaciência. Há, porventura, quem “se escandalize” por ver um eclesiástico, muito mais um bispo,  entrar em conflito ideológico ou meramente logístico com a Igreja. É a interpretação de ‘club’, de partido ou de associação com fins lucrativos que muitos devotos têm  da Igreja.

         Mas para Pedro Casaldáliga a Igreja não é clã de elites ou monarquia hereditária. A Igreja é um corpo vivo ao serviço do povo. Por isso tem de agir, tem de actualizar o seu código de conduta em função dos seus destinatários, que são ao mesmo tempo utentes e construtores da mesma Igreja. Tal como o Mestre ensinou e fez. O bispo de São Félix de Araguaia, Mato Grosso, começou logo pela base visível: Em vez de mitra usa chapéu de palha, como os nativos. Em vez do báculo banhado em ouro, transporta um bordão sertanejo. E em vez do anel de ouro ‘ostenta’ um círculo de  tucum (palmeira indígena), mas que se tornou símbolo da ‘Teologia da Libertação’.

Ele entende que os cristãos devem ser “fermento na massa” e constituírem-se eles próprios co-responsáveis e dirigentes dinâmicos das suas comunidades. Em consequência, ele é frontalmente contra o sistema de nomeação de bispos residenciais sem que seja escutada a comunidade a que se dirigem. Aliás, até ao século V, a lei e os costumes ditavam o seguinte procedimento: “O povo pode recusar o bispo que não escolheu”. Está bem expresso nos documentos da Patrística, como refere o grande teólogo Yves Congar. “A Igreja deveria envergonhar-se de usar o poder para condenar e excluir, quando o seu estatuto fundamental é incluir e escutar”- era um dos pontos altos do programa episcopal de Pedro Casaldáliga. Precisamente na linha evangélica da inclusão, Pedro ele defendia a ordenação sacerdotal de mulheres e fazia-o com sólida fundamentação teológica-pastoral. Para completar a sua visão holística da Igreja, ele advoga a abolição do celibato obrigatório dos padres, conhecedor profundo que era da biologia e antropologia e, ainda mais, da autenticidade da vivência da fé, bem como do futuro da Igreja.

Pagou caro a sua liberdade de pensar e agir, com maior incidência no âmbito da disciplina eclesiástica. Mas expôs ao vivo a contradição das estruturas da Igreja Vaticana, em dois momentos históricos: o primeiro, quando foi ameaçado pelos latifundiários, o Papa Paulo VI enviou à ditadura militar a seguinte intimação: “Quem tocar em Pedro toca em Paulo. Quem bate em Pedro bate no Papa, bate em mim”! Grande Paulo VI! O segundo momento, quando mais tarde foi chamado ao Vaticano (era já Papa João Paulo II) para receber a ordem de não falar mais em público, Pedro Casaldáliga recusou-se a assinar o documento de condenação sentenciado pelo Papa!...

Bispo Missionário, Vigilante atento à comunidade, Defensor dos Escravos contra a Ditadura económica, política social, Poeta das dores e dos cânticos do seu povo-irmão, Vidente do Futuro, Pedro Casaldáliga, Homem-Dom e Dádiva ao mundo, jamais o deixaremos cair. Ficará connosco, como bordão resistente na grande Caminhada! Para não fraquejarmos, nas horas de desânimo. Porque os nossos olhos, mesmo em lágrimas, fixar-se-ão naquelas palavras suas, quais estrelas fulgurantes a rasgar as sombras sazonais:

“Nós somos soldados derrotados de um Causa Invencível”!

         

         21.Ago.20

Martins Júnior

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

“DESCALÇO SOBRE A TERRA VERMELHA”

                                                                        

Maior prova de amar não há como dar a vida por quem se ama. E maior testemunho de servir não é possível como o da entrega de alguém à causa que abraçou.

         É hoje que, por feliz coincidência, trago a prova maior, abrindo o pano do grande teatro da história para apresentar :” DESCALÇO SOBRE A TERRA VERMELHA”.  E é o próprio protagonista que se apresenta:  Descalço, porque sem compromisso possessivo de qualquer interesse pessoal. Sobre a  Terra Vermelha, porque é de suor e de sangue a terra que piso”.

         PEDRO  CASALDÁLIGA!

É dele que vou continuar a falar. Sem parar. Até ao fim. Porque falar de Pedro Casaldáliga é como entrar no denso sertão do interminável Mato Grosso – a  Terra Vermelha, que lhe foi entregue como bispo – tal a vastidão do seu talento, da sua resistência, do seu estro poético, da eloquência inquebrável diante de tribunais, latifundiários, caciques e policiais em tempo da ditadura militar brasileira, entre 1968 e 1985. E até em confronto com o Vaticano, aliado do capitalismo de então. Ele mesmo o denuncia: “Capitalismo com rosto humano? É impossível!”. … Quanto mais com rosto cristão!...

O signo que mapeou todo o seu percurso entre os índios e explorados do Brasil nunca o perdeu de vista: Servir! Causou terramoto social a  primeira de ordem do seu programa pastoral: “Evangelizar sem Colonizar”. E sabia bem dO que falava. Ele catalão, de fibra e gema, enviado da cosmopolita Barcelona para “terra de ninguém”, onde o ancestral código colonialista, enraizado em toda a América Latina, impunha-se, como dogma e lei, a todas as formas de poder, quer económico, quer social e, sobretudo, religioso. Portugal, na vanguarda. Daí que “Evangelizar sem Colonizar” estalou no imenso território colonizado como uma irredutível declaração de guerra.

Foi o que inevitavelmente teve de acontecer. Ao serviço dos camponeses, cuja única fonte de subsistência era a terra que habitavam, eles, seus pais, avós, bisavós, os seus antepassados! Contra eles, indefesos, desarmados, arremessaram-se os latifundiários usurpadores, com o proteccionismo dos governantes, dos mercenários, dos militares. Quem os defendia, quem dava a cara pelos pobres ‘deserdados’ da terra? O bispo Pedro!

Por isso, teve de responder em cinco processos de expulsão do país. Várias vezes ameaçado de morte  pelos invasores e seus capangas, nunca fraquejou. Inclusive, manifestou-se publicamente pela revolta de Chiapas, no México. Um dos seus biógrafos razão tinha para afirmar: “Ele não é apenas um defensor da vida, mas a representação viva da resistência ao autoritarismo”.

Gente da fibra de Pedro Casaldáliga não suporta águas turvas, ambiguidades performativas, as religiosas sobretudo, simulacros de verniz em antros de podridão explosiva. E desassombradamente gritou ao mundo e à Igreja_ “Hoje, a democracia é uma palavra profanada”. Para ele, o caminho da autêntica realização humano-cristã estava na emancipação da Pessoa, detentora de direitos e deveres, e não em benesses de circunstância,  indignas e, por isso, falaciosas. Aculturou o povo. Como sintetiza a velha fórmula, em vez de dar o peixe, ensinou a pescar. A Lutar!

Daí que não escapou ao farisaico e puído baldão atirado pelos invasores, latifundiários sem escrúpulo: “comunista”. Não se intimidou. Seguiu em frente, desbravou a floresta, apoiado no famoso pregão do seu colega nordestino, Hélder da Câmara: “Quando alimentei os pobres chamaram-me santo sou um bom  - Mas quando perguntei por que há tanta gente pobre chamaram-me comunista”.

Nem depois de morto, deixaram Pedro Casaldáliga descansar o merecido sono de 92 anos de resistência…  Eis a prova: Um deputado federal disse a seguinte frase: “O bispo desencarnou no inferno há poucos dias. Ele desencarnou, o capeta que o tenha em um bom lugar, pois lugar de comunista para mim é no inferno”. Inacreditável!

Para alcançar, porém,  este patamar de consciencialização e assunção do seu lugar de “Evangelizador-não Colonizador”, teve de subir os socalcos de um outro calvário dentro da própria Igreja Oficial. É o que trarei no próximo encontro convosco.

Pedro Casaldáliga repousa, há oito dias, na campa rasa de Araguaia, Mato Grosso, na mesma tumba para onde eram jogados os índios e camponeses, Mártires da sua luta.  Os ossos, o crânio e o coração que tanta luz projectaram na densa floresta humana queremos nós que se transformem em força motriz de quem assume o seu decidido lugar, o nosso também,  na grande marcha da história!     

 

19.Ago.20

Martins Júnior

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A PRECE-OFERTÓRIO DE UM BISPO!

                                                                           

Toda a semana vou ficar de pé, junto à campa rasa de Pedro Casaldáliga, o bispo dos índios escravos de Mato Grosso, no Brasil – “irmão de todos os nus”, diria Zeca Afonso – que fez do seu longo percurso existencial um cântico à Vida e uma luta pela Libertação do seu povo. Começo hoje por uma breve, mas vigorosa amostragem do seu estro poético ao serviço desse ideário emancipador. Pedro Casaldáliga escreveu assim o Ofertório da Eucaristia, que ele próprio intitulou “MISSA DOS QUILOMBOS”:  

 

“Na cuia das mãos

trazemos o vinho e o pão,

a luta e a fé dos irmãos,

que o Corpo e o Sangue do Cristo serão.

O ouro do Milho

e não o dos Templos,

o sangue da Cana

e não dos Engenhos,

o pranto do Vinho

no sangue dos Negros,

o Pão da Partilha

dos Pobres Libertos.

Trazemos no corpo

o mel do suor,

trazemos nos olhos

a dança da vida,

trazemos na luta,

a Morte vencida.

No peito marcado

trazemos o Amor.

Na Páscoa do Filho,

a Páscoa dos filhos

Recebe, Senhor.

 

 

–Na palma das mãos trazemos o milho,

a cana cortada, o branco algodão,

o fumo-resgate, a pinga-refúgio,

da carne da terra moldamos os potes

que guardam a água, a flor de alecrim,

no cheiro de incenso, erguemos o fruto

do nosso trabalho, Senhor!

 

O som do atabaque

marcando a cadência

dos negros batuques

nas noites imensas

da Africa negra,

da negra Bahia,

das Minas Gerais,

os surdos lamentos,

calados tormentos,

Acolhe Senhor!

 

—Com a força dos braços lavramos a terra

cortamos a cana, amarga doçura

na mesa dos brancos.

 

— Com a força dos braços cavamos a terra,

colhemos o ouro que hoje recobre

a igreja dos brancos.

 

—Com a força dos braços plantamos na terra,

o negro café, perene alimento

do lucro dos brancos.

 

—Com a força dos braços, o grito entre os dentes,

a alma em pedaços, erguemos impérios,

fizemos a América dos filhos dos brancos!

 

A brasa dos ferros lavrou-nos na pele,

lavrou-nos na alma, caminhos de cruz.

Recusa Senhor o grito, as correntes

e a voz do feitor, recebe o lamento,

Acolhe a revolta dos negros, Senhor!”

 

—Trazemos no peito

os santos rosários,

rosários de penas,

rosários de fé

na vida liberta,

na paz dos quilombos

de negros e brancos

vermelhos no sangue.

 

 

Recebe, Senhor

a cabeça cortada

do Negro Zumbi,

guerreiro do Povo,

irmão dos rebeldes

nascidos aqui,

do fundo das veias,

do fundo da raça,

o pranto dos negros,

Acolhe Senhor!

 

Os pés tolerados na roda de samba,

o corpo domado nos ternos do congo,

inventam na sombra a nova cadência,

rompendo cadeias, forçando caminhos,

ensaiam libertos a marcha do Povo,

A festa dos negros, acolhe Senhor!

 

A oração de um bispo-irmão dos oprimidos do sertão!

Não há paralelo possível com os discursos redondos, vazios, de mitrados e purpurados da Igreja Cristã e Ocidental…

De pé, em comunhão com Pedro Casaldáliga, sepulto aos 92 anos de idade!

 

17.Ago.20

Martins Júnior