terça-feira, 29 de agosto de 2023

“LENDAS E NARRATIVAS” DO MILAGRE – UMA SEMANA INTEIRA SOB O BISTURI DE SÃO ROQUE E O BISTURI QUE ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS

                                                                                


           Para a conclusão dos considerandos descritos no último blogue, trago o título de uma das melhores obras de Alexandre Herculano, precisamente para detectar uma tendência secular do povo crente em matéria de “milagres”, qual seja, a de dar mais crédito às lendas que às narrativas. É  o caso das mil vezes “Virgens Marias” das azinheiras, das furnas, dos céus, das estrelas e, na história do Funchal, a “Nossa Senhora do Calhau” – e de toda a hagiografia cristã.

          É também o caso de São Roque. O florilégio das lendas sanroquenses multiplica--se por diversos cambiantes, sobremaneira na tragédia das epidemias, mormente na peste bubónica. No Funchal de 1521, o sorteio para  Padroeiro da cidade ditou o seguinte resultado: São Tiago Menor como Patrono Principal e dois outros como patronos secundários: São Roque e São Sebastião.

          Há, porém, a narrativa – esta menos imaginativa, no entanto mais realista, escrutinada, científica. E diz assim: O jovem de Montpellier abandonou os bens, toda a riqueza do património familiar, partiu para a Itália, fustigada sob uma mortífera crise sanitária e com o bisturi que trazia consigo livrou da morte muitas vítimas da peste negra.

Não obstante os rudimentares conhecimentos da ciência médico-cirúrgica,  a narrativa histórica remete-nos para um plano intelectual muito sério, em si mesmo, que se transforma num apelo irresistível, incontornável: a causa motora do fenómeno miraculoso atribuído a São Roque. Advirá ela de uma estirpe extraterrestre, invisível e mágica  ou estará factualmente na ponta do seu bisturi? Por outras palavras: o fenómeno chamado milagre radica dentro ou fora do ‘milagrado’? E ainda: dependerá de forças exógenas ou, antes, nasce de uma fonte endógena inscrita no mais íntimo do composto psicossomático que define o ser humano – a vontade motivadora, o empenho, a persistência, numa palavra, a Fé?!

É o próprio Nazareno que esclarece, ao despedir-se de um feliz contemplado: “Foi a TUA FÉ que te curou” – subentendendo: Não fui eu, foste TU!

Muitas, quase todas, orações-pedidos-requerimentos feitos a Deus revelam um grave desvio de direcção e até configuram uma ofensa ao próprio Destinatário. Exemplifico com um caso, por muitos entre outros: “Senhor, dai-nos a paz”. Se pudéssemos ouvir a resposta, não seria muito diferente desta, que é uma evidência: “Mas isso não é comigo. É convosco. Acaso sou Eu o carcereiro da Paz?... Ninguém mais que Eu, Pai de todos, deseja a Paz entre vós. Mas ela está só nas vossas mãos”.

Recorrendo ao Velho Testamento, quando o povo hebreu estava esmagado sob o regime esclavagista do Faraó, o Senhor Deus Ihaveh não desceu pessoalmente ao Egipto. Ordenou peremptoriamente a Moisés: “Vai tu – tu mesmo – vai libertar o Meu Povo escravizado! Não tenhas medo, enfrenta o Faraó”!

 O Supremo Arquitecto deu ao Homem e à Natureza – deu, delegou, passou procuração inata – o poder de realizar aquilo que as mentalidades primitivas designavam por milagres. Olhemos o reino das ciências, da medicina, da tecnologia, da psicanálise, da arte. Está nas mãos dos humanos muito daquilo que os humanos pedem a Deus.

São Bento, justamente cognominado o “Pai da Europa”, desde o século IV, inscreveu como talismã e norma da sua Organização monástica; Ora et Labora – reza, mas trabalha! É-lhe atribuída esta máxima de intensa espiritualidade: “Faz tudo, como se tudo dependesse de ti. E depois, só depois, espera tudo como se tudo dependesse de Deus”.

Até que funduras conceptuais e até que altitudes ascético-místicas levar-nos-

-ia o “bisturi de São Roque”?!...    

Mas não caberão num simples blogue tais desenvolvimentos. No entanto, durante toda a semana fui tomado pela mão do grande teólogo Andrés Torres Queiruga, no seu fabuloso livro REPENSAR O MAL ((Ed.Galaxia, 2010,Vigo) de que respigo alguns breves excertos acerca da fenomenologia do ‘Milagre’. Ei-los:

1 – Análise teológico-metafísica:

       Suponhamos que por um motivo diferente, digamos por uma petição devota ou por intercessão de um santo, Deus decide fazer um milagre. Isso significaria, nada nada mais nada menos, que a negação da Infinitude do seu amor e do estar sempre em acção, porque - permita-se-me falar assim – tal seria motivado por uma causa secundária e externa, isto é, Deus não realizaria esse acto de amor se não fosse essa causa secundária e estranha a Ele próprio. Sendo assim, o seu Amor deixaria de ser Infinito e já não seria o Amor sempre em acção.    

2 – E nesse caso, dar-se-ia uma imagem distorcida de Deus. Porque se os milagres fossem possíveis a Deus e os realizasse em determinadas ocasiões, a conclusão seria terrível. Com efeito, são tantas e tão graves as necessidades e sabendo-se que à sua omnipotência nada lhe custaria multiplicar os milagres, então esse deus apresentar-se-ia como um criador avarento, indiferente e cruel face ao sofrimento da imensa maioria das suas criaturas. A distorsão da sua imagem agravar-se-ia para um incompreensível favoritismo que a uns diria “sim” e a outros  “não”. Pior ainda se o ‘favor’ dependesse de convencer Deus com ofertas, pagamentos, sacrifícios e recomendações de intercessores.

3 –  Respeitando embora  as palavras piedosas e até veneráveis, é preciso falar com clareza, pois o discurso habitual conduz-nos ao cúmulo de um verdadeiro  escândalo para a sensibilidade comum. Concretizando: Na mesma enfermaria do hospital, estão doentes em fase terminal e, graças a uma novena mandada celebrar por um familiar devoto, um deles resulta milagrosamente curado. A surpresa inicial pode parecer uma confirmação da fé e o valor da oração. Mas seguramente não lhe tardará  a crítica, primeiro, da parte dos outros doentes: porquê a ele e não a mim?

E da parte do próprio doente miraculado: tanto tempo que Deus me vê a sofrer e só agora  me curou porque um familiar que me ama de verdade O convenceu. Não poderia curar também os outros?... Ademais, vejo todo o pessoal sanitário fazendo todos os possíveis para aliviar o nosso sofrimento e Deus nada faz, quando nada lhe custaria fazê-lo.

          4 – Citação de Barry L.Withney (livro What are they saving about God and evil (New Yok (1989):

          Esperar que Deus intervenha, violando as leis que Deus criou, apareceria como implicando que Deus não foi capaz de criar leis adequadas desde o princípio. E isso sugeriria que Deus é menos que perfeito e negaria efectivamente a própria natureza de Deus como suprema perfeição.

          Lições de Abismo – comentaria o notável escrito brasileiro Gustavo Corção perante reflexões tão seguras e corajosas – daquela coragem que só a Verdade produz!  É o próprio Professor de Teologia, Andrés Torres Queiruga que o reconhece, quando apõe ao seu escrito a seguinte ‘confissão’:

          É normal que a sensibilidade do leitor ou da leitora, não inferior à minha, sinta um forte incómodo ante esta linha de raciocínio (confesso que duvidei muito se devia escrever ou não estas páginas). Mas escondê-lo seria negar a evidência.

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          Eis a justificação de uma semana que o ‘bisturi’  de São Roque do Funchal me ofereceu, com tal forçosa incisiva que me obrigou a uma introspecção aprofundada na leitura e no silêncio. Para continuar.

          Não se invoque mais o nome de Deus em vão! E para serenar os ânimos termino com uma definição soberana, com que Andrés Torres Queiruga encerra as suas esclarecedoras reflexões: “Nada é milagre e tudo é milagre”!

 

          21-29.Ago.23

          Martins Júnior      

domingo, 20 de agosto de 2023

O BISTURI DE SÃO ROQUE – UMA ANATOMIA HIPOTÉTICA DO MILAGRE

                                                                  


        Acontece no entroncamento onde se juntam o fim de uma sema semana e o início de outra: a passagem do LIVRO, desta vez coincidente com a evocação de uma personalidade histórica, nascida em 1295, cujo culto difundiu-se largamente em França (Montpellier, sua terra natal), Itália, Brasil, Lisboa e, mais perto de nós, Açores e Madeira: São Roque.

          A convite do pároco de São Roque do Funchal, Padre José Luís Rodrigues, usei da palavra na solene cerimónia litúrgica da festa do Orago da freguesia. É deste acervo didático-celebrativo que recorto aqui breves tópicos, contracenando-

-os com os textos que hoje são lidos a todo o orbe

Claudicada seria qualquer referência ao jovem de Montpellier sem recorrermos ao ‘Imperador da Língua Portuguesa’, Padre António Vieira, que nos deixou quatro famosos “Sermões”, ao seu estilo super-exemplar da oratória sacra, sobre São Roque. Por isso que não é tarefa de superfície tocar ou dissertar sobre o Patrono da freguesia, Co-Padroeiro do Funchal conjuntamente com São Tiago Menor e Primeiro Padroeiro de Machico, por decisão do Município, “desde a era de 1728, em que a peste afligiu esta ilha da Madeira” ( Anais do Mnicípio da antiga vila de Machico, pag.168).

Na centralidade de tão propalado culto está o atávico ‘instituto’ – para uns realidade divina, para outros puro mito oriundo do medo e da fragilidade humana – a que chamamos Milagre. A criatividade cultual dos crentes atingiu patamares imaginativos tais que até catalogou ‘especialidades milagrosas’ para cada Santo: a uns, as doeças pulmonares, a outros as ósseas e cardíacas, a outros as mazelas  oculares e otorrino. Há também os ‘especialistas’ para as diversas idades e profissões. São Roque foi proclamado patrono dos cirurgiões e, por inerência, o grande protector nas epidemias, historicamente contra a peste bubónica na Europa e nas ilhas, com maior incidência no Funchal e em Machico.

O Milagre!... Devo confessar que sempre me intrigou o quase-dogma de que o Deus Criador intervém directamente na obra da criação, um Deus ex-máquina, um Deus-Bombeiro, um Deus-Supervisor-Programador justo e atento. Sobretudo, a partir da manhã de 15 de Agosto de 1967, quando saímos de Mocímboa da Prais, em Cabo Delgado, rumo a Nambude: a viatura onde pretendia seguir viagem (por sugestão do comandante da coluna militar, mudei para outro ‘unimog’), passados uns 60 minutos, vi apavorado a dita viatura ‘voar’ pelos ares incendiada por uma enorme mina anti-carro escondida na picada. Levantá-los do meio da floresta, atirá--los para dentro da ‘berlié’, sepultá-los – onze covas! – abalou-se-me o peito e atónito interroguei-me: “Porquê eles e não eu?”, alguns deles casados, com filhos, outros deixaram crianças na barriga da esposa, as mães deles certamente rezaram e fizeram promessas à Senhora de Fátima para que voltassem à terra, vivos e sãos. Porquê eles e não eu?”.  Não há explicação atendível!... A vida é um bem precioso e único para todos e cada um!

É nas situações de dependência e absoluta fragilidade que entra Sua Divindade o Milagre – que mais não é que o nosso desejo projectado para outrem, concreto, tangível, mas sobretudo esotérico, invisível, supra.terrestre.

Porque o caso é demasiado profundo e longo, deixarei para o próximo dia o seu desenvolvimento, dentro de duas vertentes incontornáveis, já afloradas nestes textos. Primeiro: Jesus, o Taumaturgo da Galileia, nunca disse a nenhum dos bafejados pela cura: “Fui que te curei”. Segundo: São Roque, diz a história, realizou muitas curas, interpretadas como milagres, por meio do bisturi que levou consigo na viagem de Montpellier a Roma.

 

17-18.Ago.23

Martins Júnior

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

PARA UM NOVO PREFÁCIO DO LIVRO: “O PODER DAS MULHERES”, EM DIA DE ANIVERSÁRIO



Sopro gigante do mar bravio

galgou a ribeira-rio

mordeu a encosta de amoras e espinheiros

e abraçou a Terra Seca

dos ilhéus primeiros

Aí nasceu

um tronco-Mulher

sabor ao sal marinho

e fescor do alto das montanhas

 

O apelo verde das alturas

E a vertigem azul de oceânicas lonjuras…

 

Um dia

o tronco fez-se ao largo, foi caravela

da Baía de Machim até à Torre de Belém

nas ondas revoltas o seu amor partiu e nela

rasgou-se a vela

quebrou-se o mastro onde brilhava o astro

de mais alto e mais além

 

Naufragar é preciso

para vencer toda a dor

e derrubar os tridentes do velho adamastor

 

Reergeu-se o tronco em alto-mar

refez-se a vela ensopada em sal amargo

mas o verde da montanha foi mais forte

fez-se de novo ao largo

e aos gemidos latentes da morte

com voz potente Ela bradou:

“Aqui estou

Tronco redivivo de Mulher

Sei para onde vou

E o que a minha alma quer”!

 

          17.Ago.23

          Martins Júnior   

terça-feira, 15 de agosto de 2023

O DIA DAS MIL SENHORAS… E DAS MIL FÉS, UMA POR CADA UMA!

                                                                            


    “Haja alegria e animação” – pego neste refrão dos arraiais populares regionais em todas as festas da Senhora - mais notório neste 15 de Agosto – e quero encaixá-lo antes e depois do arrazoado que me propus apresentar-vos hoje.  Faço-o, porque são indissociáveis os impulsos simultâneos da Fé e da diversão dos festejos sacro-profanos dos povos latinos. Mesmo que vestida de amargura, de semblante dolorido, inconsolável, lá vem esta semana a “”Senhora da Agonia”, de Viana do Castelo, em cuja celebração as manifestações mundanas, desde as folclóricas às mais sofisticadas, ultrapassam as de carácter religioso. Assim, entre nós, ilhéus.

          Chamam-lhe, ao 15 de Agosto, o Dia das Sete Senhoras, tantos quantos os seus solenes festejos na Madeira e no Porto Santo. Mas quem contasse os santuários, ermidas, capelas e altares encontraria as Mil Senhoras  e muitas mais. Para cada entorse orgânico ou psíquico, lá está Ela incrustada na alma do crente  e na parede da casa: a das Lágrimas e a da Alegria, a da Saudade, a dos Paralíticos, a dos Aflitos, a do Amparo. Para cada profissão, há a sua mão protectora, caso da Senhora dos Navegantes. Para cada lugar e cada país, Ela é puxada e repuxada para ser entronizada entre bandeiras patrióticas, a da Aparecida, a da Guadalupe e a nossa Fátima, que toma o nome da filha de Maomé, topónimo dado pelos muçulmanos  quando ocuparam aquela parcela do território português. E, para nós, madeirenses, a Senhora do Monte, único título dado em todo o mundo a Maria, Mãe de Jesus.

 

          Têm ainda dourado baldaquino aquelas Senhoras que, por inerência nacional e por alheia apetência calculada,  ganham o direito à escolta dos notáveis do reino, da região, do concelho, da junta, da aldeia. Ei-los, no cortejo processional, perfilados, altivos como círios sem pecado nem culpa.

          A Senhora – que é uma e única – não tem mãos a medir para transmutar-se nas mil dobragens e encenar correctamente os mil papéis que os crentes lhe inventaram. São mil as fés, mil de milhões de fés. O Nazareno Taumaturgo àqueles que se achavam curados, nunca disse: “Fui eu que te curei”. Pelo contrário, reafirmava sempre: “Foi a tua fé que te curou, que te salvou”!

          E a mesma sintomatologia se observa entre os devotos e as miríades de Marias a quem se dirigem. Quem recorreu à Senhora da Piedade tem a fé de que ela é mais poderosa que a Senhora das Dores. E quem pôs a vela no altar da Fátima crê firmemente que ela é mais sensível e generosa que a Senhora do Loreto. E quem escolheu a do Loreto não tem dúvidas de que quem lhe fez o ‘suposto’ milagre foi esta e não a de Fátima. Multipliquemos a equação.

E quanto à Senhora do Monte ou das Babosas, onde estaria Ela que não susteve o carvalho assassino? Ela que se compadece de um braço partido ou uma enxaqueca irritante (e por isso recebe a respectiva paga) como permitiu a morte de 13 (treze) vítimas inocentes que ali vieram “pagar a promessa” … a promessa de uma morte repentina?!... Para aquelas e aqueles que a acham Mãe solícita e benfazeja, treze cadáveres caídos no Largo do Monte (não foi na Ucrânia) nada lhes dizem? No dia em que ali vieram só para saudá-la e gratificá-la?!...

Que poder é esse, Senhora?...

No Dia das SETE SENHORAS, das centenas, milhares vezes sete Senhoras, uma pergunta impõe-se: “Que nos quererá ter dito a Senhora do Monte com a tragédia de 15 de Agosto de 2017 ?...

Para que tudo não fique reduzido a folclore !!!

 

          15.Ago.23

          Martins Júnior

domingo, 13 de agosto de 2023

NUM PLANETA JOVEM E NUM PAÍS ADOLESCENTE – UM PAPÁ QUE TAMBÉM É MAMÃ

                                                                   


        Propositadamente uni a ponte dos pilares ‘Ímpares’, entre 11 e 13, porque o que tinha escrito para o dia 11 estende-se como um todo contínuo e renasce das fontes do dia 13.

          Refiro-me aos melhores conteúdos do Papa Francisco na JMJ e que tiveram retumbante sucesso dentro e fora dos pomposos  hectares em que se desenrolou o megaevento. Faço-o, sobretudo, para poder interpretar e contrapor as teses supostamente dogmáticas daqueles que atribuem ao actual Chefe da Igreja um acentuado ‘deficit’ de conhecimentos teológicos, acusando-o de ligeireza na hermenêutica bíblica e até de heresia e apostasia, na opinião de bispos e cardeais da Cúria Romana e da América do Norte.

          Começando pela forma, Francisco Papa usa um tom coloquial, próximo dos interlocutores, sem nunca recorrer aos artifícios tonitruantes da retórica dos oradores da praça sacra. Ora, quem consultar o texto que hoje é lido em todos os templos católicos de todo o mundo, verificará que “não é no furor altissonante do vento, no ímpeto destruidor do terramoto, nem na explosão do fogo devorador que Deus se manifestou a  Elias, mas sim na brisa suave’ que se fez no terreiro da cabana onde se encontrava o Profeta. (I Livro dos Reis, 19, 9 sgs.). O tom da voz do Sumo Pontífice não é do inquisidor justiceiro, arrasador. É a expressão do amor materno quando se dirige ao filho transviado ou à filha amargurada.

          Quanto ao fundo essecial da sua mensagem, não tem outro caminho senão o de um pai esclarecido que acende no espírito do adolescente a chama do ânimo personalizado, a coragem de enfrentar os desafios da vida: “Não tenhas medo”. Há mais de dois mil anos, Alguém nos confins da Palestina e em plena e agitada tempestade do Mar de Tiberíades bradou aos pescadores transidos de medo dentro de um barco a naufragar. “Não tenham medo. Eu estou aqui”. É este também o apelo do Nazareno, lido hoje, dia 13, urbi et orbi, narrado no LIVRO, Mateus, 14, 23-33).

          Para os supostos intelectuais da Fé, carcereiros do Dogma, prefeririam discursos inflamados, tiradas proclamatórias, nefelibatas de uma crença que se rebola dormente nas nuvens de incenso e ascese quase autista. Contra esse código de distância pseudo-sagrada, imposto pelo sectarismo do Templo de Jerusalém,  insurgiu-se o Mestre da Galileia e, por isso, não descansaram os Sumos-Sacerdotes enquanto não O liquidaram fisicamente. Revendo a ambiência e as mensagens do Papa Francisco reconhce-se directamente a fisionomia de todos aqueles que, como Jesus de Nazaré, desceram às profundezas do ser humano e aí, personalizadamente, dava a cada um asas de subir e persistir na grande jornada da Vida.

          Um ligeiro pormenor, apenas: não havia necessidade de ‘obrigar’ Jorge Bergoglio a alardear uma tão vasta cultura lusa, que obviamente não tem, quando citou logo no primeiro discurso Camões, Pessoa, Sophia de Melo e até Saramago. É por demais evidente que ele não tem tempo para isso. Aquilo cheirou a outro perfume: o de dar a entender ao público português que quem lhe escreveu o discurso foi o nosso Cardeal Tolentino Calaça Mendonça. Tudo bem, mas a prova por excesso é tão frágil e ilusória como a prova por defeito.

 

          11-13.Ago.23

          Martins Júnior     

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

QUANTOS NOMES TEM O ÓPIO DO POVO ?!...

                                                                    


Não sou infodependente, mas confesso a minha paixão pelos jornais, mais que pela rádio e televisão. Nacionais ou estrangeiros, de todo o formato,, atiro-me instintivamente ao papel volátil, sobretudo os seus cartoonista  e colunistas – mesmo os que detesto pela sua linha editorial e são os que mais leio.

Embora sabendo que, como Charles Peguy, “o jornal de ontem já é mais velho que a Odisseia de Homero”, aprecio a originalidade, a paginação, os cambiantes gráficos (porque por aí também se vêem o  dedo e a pegada ideológica do director ou do proprietário/dono do jornal e dos jornalistas) cultuo, como um privilégio,  a criatividade  linguística, de acentuada tez semântica, tal como lobrigo a olho nu a mediocridade, as fake news, as omissões estratégicas, o desrespeito pelo público.

Apraz-me relevar hoje a manchete de um periódico português que reza assim: “O ÓPIO DO POVO ESTÁ DE VOLTA”.

Ainda na ressaca optimista da JMJ, com o milhão e meio de peregrinos em êxtase diante do Papa, seríamos levados a interpretar aquele título como o eco luso do alemão Karl Marx: “A Religião é o Ópio do Povo”. Pura ilusão! A gravura que ilustra a engenhosa e peregrina manchete – Eusébio, Peyroteu, Pavão – diz tudo: é o futebol que está de volta. E aqui a metáfora não tem outro sinónimo senão o de ópio, droga, estupefaciente!

            E o mais revelador de todo este epifenómeno é que não se trata de uma ficção nem da mais esotérica virtualidade, pelo contrário, é a realidade nua e crua. Nem de propósito: as imagens do Benfica-Porto de hoje, em Aveiro, provam-no à saciedade.

            Prescindindo de grandes elucubrações psicanalísticas, o diagnóstico é a evidência: a multidão precisa de “ópio”, venha ele donde vier. Porque a multidão é mais, muito mais que a soma das partes que a compõem. É outro o seu ADN. E o combustível que a alimenta não se compadece com a serenidade vigilante de critérios objectivos. Exige uma vaga de fundo, avassaladora, que toque mais a emoção que a razão , uma espécie de furacão pentecostal que hipnotize a multidão e a varra para onde quer que seja. Ontem e hoje a religião, ontem e hoje o futebol, hoje e amanhã a campanha eleitoral, amanhã e depois a Inteligência Artificial, a voragem publicitária. Afinal, que somos nós senão ridículas marionetes nos dedos ossudos de ‘regies’ invisíveis?!

            Felizes aquelas e aqueles que dizem NÂO aos instintos gregários do rebanho e mantêm-se imunes ao ópio das multidões.

            Lembro José Régio, parafraseando o seu Cântico Negro: Poderei até não saber parra onde ou, mas “Sei que Não Vou por Aí”!

 

            09-10.Ago.23

            Martins Júnior        

terça-feira, 8 de agosto de 2023

TUDO TOMOU O SEULUGAR, DEPOIS QUE A BANDA PASSOU” – Chico Buarque

                                                                        


        É tão empolgante o climax do grande evento, quanto descoroçoante a valsa lenta da despedida. A que se hão-de comparar os dois ritmos do acontecimento? À canção de Sérgio Godinho, a Quarta-Feira de Cinzas que fecha a apoteose da Terça-Feira anterior?... Ocorre-me, para melhor caracterização, “A Banda” de Chico Buarque, em que se desenha todo o encanto da filarmónica popular que percorre a cidade, levanta o ânimo da ‘moça que contava as estrelas e parou, do velho que esqueceu o cansaço, subiu ao terraço e dançou, da meninada que se assanhou e até da moça feia que veio à janela pensando que a Banda tocava pra ela’ .

          Cada qual no seu canto e, mutatis mutandis, a euforia não tem limites na órbita de quem a vive e sente. A alegria da JMJ transbordou para todos, todos os que durante uma semana inteira se autocognominaram de peregrinos, desde os que exprimiam a exclusiva motivação dos seus passos – Jesus, Deus, a Fé – até outros mais empíricos, como aquele que à pergunta do jornalista “Está gostando de ser peregrino aqui em Lisboa?” respondeu: “Muito, muito, bons restaurantes, boa comida, boa bebida e mulheres bonitas”. Nem é de menosprezar também o desabafo daquela mocinha: “Estou ficando triste, que isto vai acabar”.

          A realidade é essa. Regressam às suas casas, trazendo na bagagem um capital único, intraduzível, “Capital Imaterial” (talvez a melhor definição que lhe deu o Primeiro Ministro de Portugal), um sentimento a que a juventude injecta ímpetos de bem-fazer, “sem medo”, como pediu o Papa, em prol do seu país, a benefício do mundo todo.

          Mas o avião que os levou trá-los de novo, os milhares de jovens, que pisam a mesma terra, que percorrem os mesmos caminhos e enfrentam as mesmas dificuldades. Os da Coreia do Sul com os furacões que afugentaram os milhares de escuteiros reunidos no seu Jamboree mundial. Os da Grécia com o calvário de carne e osso (não de madeira) dos migrantes no cemitério dos mares. Os de Espanha à beira de um ataque de nervos para formar governo. Os da Europa de Leste com a tragédia de vidas caídas sob as balas assassinas. Enfim, os de todos os continentes, com o aquecimento global, os incêndios, os paraísos fiscais,  a exploração do capital sobre o trabalho.

          E mais cá dentro, os jovens frente ao problema da habitação, da entrada para o primeiro emprego, da degradação física e mental do espectro da droga, a que se junta a disputa do voto nas próximas eleições, ettc., etc.. Pegando na expressão divulgada pelo cardeal Manuel Clemente e pelo Papa Francisco, direi que passaram do “mundo virtual para o mundo real”.

          E que farão eles e elas?... Perder o medo e Lutar ou acobardar-se diante de interesses egoístas, classistas? E que farão os seus monitores, chefes, catequistas, sacerdotes? Pô-los de mãos erguidas para que caiam do céu as oliveiras da paz, ou as sementes da justiça social?... Respondam!

          Recolho-me no optimismo esperançoso de que sejam eles e elas “fermento na massa” de um mundo novo. Mas trava-me o entusiasmo o refrão final da “Banda”  de Chico Buarque:

                                       Mas para meu desencanto

                                       O que era doce acabou

                                       Tudo tomou o seu lugar

                                       Depois que a Banda passou

 

                                       E cada qual no seu canto

                                       E  em cada canto uma dor

                                       Depois de a Banda passar

                                       Cantando coisas de amor

 

          7-8Ago23

Martins Júnior

domingo, 6 de agosto de 2023

O PODER INTEMPORAL DA PALAVRA !

                                                                             


        Fechou-se o pano, apagou-se a ribalta: para a adrenalina imberbe das nações, para a avidez faminta dos ‘media’,  para as ânsias de popularismo dos que habitam pódiuns presos pelos arames do voto. E também para a tiara imperial do Vaticano.

         Fechou-se, digo, mas logo corrijo. Agora é que tudo começa. Os fogos fátuos da JMJ terão agora a prova de ouro da sua existência original. Daqui  em diante é que se abre a validade garantida de um acontecimento quaternário. Até 2027, pelo menos, figurarão em hasta pública os axiomas, as frases out-door,  a eloquência salvífica do Papa de Roma, a originalidade (outros chamarão axcentricidade) dos seus oito discursos em proferidos urbi et orbi.

         FRANCISCO PAPA bem poderia repetir o que, pela boca do profeta, disse Iahveh, há   séculos  e que nos são propostas para este início de Agosto no LIVRO de ISAÍAS, 55,1-3:

         Vinde às águas, mesmo que não tenhais dinheiro, vinde, vós que esgotastes o vosso dinheiro naquilo que não sacia nem alimenta. Vinde, escutai-me e comereis o que é bom, saboreareis manjares suculentos.

           Há quantos séculos brota a água gratuita da Palavra que redime e salva!

         Confidenciava-me, anteontem, um colega sacerdote: Porque um Papa proferiu certas máximos e defendeu certos princípios e as multidões, os jornais, as televisões colocam-no nas alturas. E eu, que digo o mesmo e luto dia-a-dia, durante vinte anos, pelas mesmas causas, sou criticado e posto à margem das hierarquias e da opinião pública…

         HOMENAGEM à coragem do Papa Francisco. E a todos, os de longe no tempo e no espaço, e os de perto, aqui em Portugal Continental, aqui nas ilhas, também na Madeira, têm pugnado pelos mesmos ideais. E sempre têm conhecido o prémio da perseguição e do ostracismo. Não têm palco nem Império para fazer sentir o brilho da sua palavra e o testemunho da sua acção.

         Trago hoje a gravura do Courrier Internacional, publicado há quase dez anos, pouco após a eleição de Jorge Bergoglio para a cátedra de Roma, “Um Papa de Inferno”. Utilizei-a numa palestra feita aos alunos de algumas turmas da Universidade da Madeira, onde explanei a mesma ´tese´ que acabo de descrever sucintamente, mas proponho como ponto de reflexão.

         Que a presença de Francisco em Portugal reacenda a chama do Espírito de Renovação Global, a começar por cada um em particular.

 

5-6. Ago.23

Martins Júnior

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

O BRILHO DAS DEZ ESPIGAS PRIMEIRAS !!!

                                                       


 

Menina que nasceste nos meus braços

Fruto doce da Dor e do Amor

Que há nas raízes raras que não morrem

 

Para mim és o Milagre!

Por isso te chamo Vitória

Escrito na partitura e na memória

De um bandolim-irmão com que enterneces

Tábuas e mágoas

Corações e gerações

 

Nas tuas mãos já tens

As dez espigas primeiras

Louras como as tuas tranças

Límpidas como as tuas pupilas fagueiras

Lago  azul de todas as crianças

E palma de ouro de todas as mães

 

Dez espigas dos mil trigais

Que te esperam vida fora

Mais dez virão, dez vezes dez,

E já não estarei para ver

Que serás sempre o que hoje tu és:

Ternura no olhar, firmeza dentro do peito

Promessa de um mundo novo mais belo e perfeito  

 

03-04,Ago.23

Martins Júnior

terça-feira, 1 de agosto de 2023

NA APOTEOSE TOTAL, AS INCÓGNITAS DOS PROTOCOLOS

                                                                                 


 

Foi em Julho, transição para o Agosto promissor, que Lisboa viu largar as caravelas, desde Santa Maria de Belém, rumo às Índias do Preste João, de onde vieram as preciosas especiarias que fizeram da capital portuguesa o mais poderoso porto comercial da Europa e centro agregador da navegação estrangeira. Aconteceu em 1497.

Volidos cinco longos séculos, eis de novo Lisboa no centro do mundo e Belém cognominada “”Cidade da Alegria”. Invertem-se os factores geo-topográficos: quando antes se repetia que “todos os caminos vão dar a Roma”, agora  durante mais oito dias corrige-se o aforismo e sem risco de errar: “Todos os caminhos vão dar a Lisboa”. Não há quem aguente ‘impávido e sereno’ a euforia regurgitante que salta de centenas de milhares de jovens que tomam conta de Portugal e até nos fazem perguntar como é que a baixa ribeirinha de Lisboa não vai ao fundo com o peso mundial que lhe cai em cima.

O grande protagonista visível tem nome: Francisco Papa, que se apresenta como o PEREGRINO DA PAZ.

É plurissémica, universal e, por vezes, contraditória a nomenclatura sublime, quase sagrada atribuída ao apostólico Peregrino. E surgem, indistintamente, certas interpelações face ao multiforme ritual que o Protocolo lhe estabeleceu, talvez contra a mais intimista das suas convicções.

Entre muitas, há uma – nada despicienda - das questões, que se pode formular nestes termos.

Sendo o Papa, ‘Representante de Cristo na Terra’, Pontífice da Fé e Pastor de uma Confissão Religiosa, a Igreja, por que razão, chegando a Portugal e pisando a ´Terra de Santa Maria’, não se dirige prioritariamente à Sé Patriarcal, pelo contrário, os seus passos primeiros encaminham-se para Belém, não ao presépio do Menino Jesus, mas ao Palácio, onde mora o principal Magistrado da Nação, Chefe Supremo das Forças Armadas e Lídimo Intérprete da Política Portuguesa, Presidente da República, portanto, de um reino deste mundo ?!...

A pergunta toma outro volume e maior conotação, ao vermos anunciado publicamente que o Primeiro Ministro dirigir-se-á à Nunciatura Apostólica em Lisboa para apresentar cumprimentos ao Papa.

Quer num caso quer noutro, omitem-se os nomes dos titulares, apenas os cargos que ocupam, pela simples razão de que, fosse qual fosse a sua identificação pessoal e seja qual o país visitado pelo Papa de Roma, o Protocolo seria cirúrgica e rigorosamente o mesmo. Mais perto de nós, o Papa Bento XVI, visita ao Porto, encerrou a sua presença em solo português na espectacular varanda da Câmara Municipal.

Porquê?

Aos que monitorizam e se incomodam com este aparato contraditório –  reino espiritual versus reino temporal – a explicação reside na definição do estatuto do Sumo Pontífice de Roma. Ele próprio condensa em si mesmo a simbiose dos dois reinos: ao mesmo tempo que se apresenta como Sucessor de Pedro, o Pescador, Pastor da Igreja, ele está também investido do poder de Chefe de Estado do Vaticano.

Portanto, o Papa dará prioridade ao seu estatuto de Chefe de Estado e, logo ao desembarcar em  Figo Maduro, tem obrigatoriamente marcado o rumo directo a Belém. Por seu lado, a ida do Primeiro Ministro à Nunciatura tem uma justificação óbvia: a Nunciatura Apostólica é a sede da Embaixada do Estado do Vaticano em Portugal.

Para os mais curiosos, no seu legítimo direito de serem informados, aqui ficam em termos simplistas as razões – com ou sem razão! – dos primeiros passos de Francisco Papa em Portugal.

 

31Jul-1Ago.23

Martins Júnior