segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O VAGÃO DA MORTE DENTRO DA NOSSA CASA…



         A locomotiva é o Tempo. O maquinista fica bem instalado no “sindicato” dos publicistas, opinadores, repórteres de imagem, donos dos media. O vagão, de tão pequeno (cabe na sala, na cozinha, no quarto da casa) chega a ser maior que todas as carruagens da composição: chama-se televisor.

         Para quem me acompanha na imparidade dos dias, achará estranho o discorrer deste que não passa de um desabafo, quase um fastio, uma repulsa instintiva àquilo com que a pequena caixa nos presenteia em troca da guarida que lhe franqueamos em nossas casas. Conforta-me neste repúdio a convicção de que o mesmo perpassa por muitos consumidores do mesmo écran. Além disso, lembro que estamos a fazer um tríduo anual em cujo percurso é a morte que se nos apresenta: 31 de Outubro, vigília dos heróis anónimos, nossos antepassados - 1 de Novembro, denominado de “Todos os Santos” - e, no dia seguinte, “Os Finados”, Dia da Saudade.

Se, por um lado, curvamo-nos afectuosamente sobre a memória daqueles de quem a campa nos faz verter uma lágrima de saudade, por outro, contrasta-nos e revolta-nos a exploração das tragédias que grassam por esse mundo fora, os mórbidos requintes da fragilidade humana, os revérberos explosivos das magmas vulcânicas ou das placas tectónicas e seus efeitos.

Não está em causa a notícia, mas a exploração dela. A repetição exaustiva das mesmas cenas, do mesmo sangue derramado, dos mortos espalhados na estrada, do esmagamento das vítimas – é todo este massacre cruento que o mini-macro-vagão mortuário transporta diante dos nossos olhos, dentro das nossas casas. As estações rivalizam entre si, ambiciosas de qual faz a mais trémula autópsia do desastre. Algumas até fazem da corrida uma maratona febril para chegar e arvorar-se em flecha: ”Démos primeiro”!

É a tragédia nas Filipinas, aluviões na Venezuela, fogos na Califórnia, asfixia na Coreia do Sul, furor no Irão, barbárie em Cabo Delgado, fome esquálida nos aldeamentos afro-asiáticos e, por todos, o interminável tártaro russo na Ucrânia. Centenas, milhares. O que se pede é que não multipliquem até aos milhões, até à neurose colectiva. Basta! Poupem-nos!

Há, porém, o outro cúmplice: o receptor! Nunca o emissor investiria no produto se não tivesse a certeza dos apetites, também sado-masoquistas, também mórbidos, do receptor, paradoxalmente, o adquirente do televisor e senhorio do quarto ao qual deu asilo. Parece que há dentro do nosso cérebro um labirinto obscuro que abraça o absurdo, a vertigem do horribilis casus, que nos leva à atração pelo caos e pela patologia do abismo sangrento. Tenha-se em conta o filme de Mel Gibson sobre a paixão e morte de Cristo.

Não chegará aos resguardados centros televisivos este meu desabafo, muito menos a minha contestação. Mas se for possível bater à porta do ‘vagão cangalheiro’ colocado na parede do nosso quarto, aconselharia desligar a ‘estação das desgraças’ e seus congéneres de ‘tesournhos deprimentes’. Para bem da higiene mental doméstica e salvaguarda da saúde pública!

  Do desvio periférico que acabo de partilhar convosco, reentro no optimismo homeostático em que procuro situar-me todos os dias, sem recusar olhar frontalmente para os dramas da condição humana e, se possível, ajudar à sua solução. Prescindindo do vagão-cadáver dentro de casa, caminho lado a lado com a realidade da morte – a minha Irmã Morte, dizia Francisco de Assis – sobretudo nestes três dias, com a Ode Triunfal do 1º de Novembro e, no dia seguinte, os lilases da Saudade na auréola dos que, embora longe, coabitam  à nossa beira.

 

31.Out.1-2Nov.22

Martins Júnior

 

 

sábado, 29 de outubro de 2022

“UM PASSO ATRÁS PARA DAR DOIS PASSOS À FRENTE” --- A LIÇÃO BILENAR DO NAZARENO

 

         Voltar ao LIVRO é encher a semana e preencher todos os dias do ano. Porque dali emergem renovadas fontes de inspiração que se traduzem em maior visibilidade da estrada e novo fôlego para vencê-la.

         Hoje e amanhã, trata-se da economia de risco nas relações humanas, cujo activo incontornável chama-se capital-coragem. Ganha-se a ciência e cultiva-se a arte do correcto e oportuno investimento deste capital. É uma aprendizagem para toda a vida. E são muitos, talvez a maioria, os que nunca chegam a entendê-la. Há ainda os que a confundem com calculismo, artimanha, espionagem: são os peritos natos do maquiavelismo profissional, em que “o fim justifica os meios”. E aplicam-no, o capital-coragem, com fria audácia, persistente ou intermitente, ao serviço de causas duvidosas. É o ‘bunker’ privilegiado de uma certa casta de políticos,  das máfias, do crime organizado.

         Outro, porém, é o investimento do capital-coragem. No topo dos lucros a obter está prioritariamente a definição de um objectivo superior, o qual será sempre a dignificação da condição humana, pela saúde, pelo pão, pela educação, pela justiça. pela reabilitação do indivíduo e da sociedade. A prossecução ou a luta pelo objectivo proposto terá necessariamente duas alavancas, sem as quais tudo será debalde: a coerência e a persistência – coerência de acção e resiliência positiva que, em linguagem comum, toma o nome de paciência expectante, mas sempre dinâmica. A todo este compósito se resume o precioso capital-coragem e só os espíritos robustos conseguem obtê-lo e rentabilizá-lo.

         É-nos oferecido, hoje e amanhã, o protótipo perfeito do capital-coragem e do seu correcto investimento. Basta consultar o LIVRO e encontrá-lo-emos em Lucas 19, 1-10.

         O líder das multidões, dos excluídos, dos pecadores, dos pobres, das mulheres sinalizadas, tem contra si o poder religioso e os detentores do dinheiro: os fariseus e os quadros superiores das finanças públicas, entre os quais se conta Zaqueu, “príncipe dos publicanos”, o equivalente a director geral de Contribuições e Impostos. “Muito rico, mas ladrão”, odiado pelo povo. Em termos classistas e perante a opinião pública, um abismo os separa: Jesus, amado pelo povo; Zaqueu, odiado pelo mesmo povo.

     No entanto, o Nazareno não é fundamentalista e vê mais além, perscruta a profundeza da psicologia humana e não hesita em quebrar as barreiras que os ‘lobies’ sociais impedem de recuperar e reabilitar quem intimamente o deseja. Zaqueu situa-se nessa margem, quer restituir o que roubou. E aqui está o Nosso Mestre entre a espada e a parede, entre a transparência e a hipocrisia, no limite, entre a perda da popularidade e a recuperação de um ser humano. O povo não vai perdoar-lhe qualquer aproximação a Zaqueu.

Mas decide-se. Recorre ao capital-coragem que traz infinitamente consigo e, desassombradamente diante da grande multidão, interpela Zaqueu e diz-lhe: “Hoje, quero jantar em tua casa”. O povo desilude-se, nem quer acreditar, dispersa-se contrariado por esta traição do Mestre.

Mas Jesus não recua, entra em casa de Zaqueu e, à mesa, deu-se o grande sobressalto, terramoto de alma entre quatro paredes. Zaqueu abjurou os crimes perpetrados contra terceiros, jurou restituir “quatro vezes mais”, enfim, regressaram de novo  a saúde e a alegria onde já estavam mortas. E abriu-se o clarão de um novo dia no panorama social de toda a Jerusalém.

“Um passo atrás para dar muitos à frente” – já o fez o Filho do Carpinteiro de Nazaré. Há dois mil anos. Com o capital-coragem e duas alavancas, coerência e persistência, ao serviço de uma causa maior: o lugar cimeiro da Pessoa na construção da Felicidade Colectiva. A grande tarefa dos Estados, das Escolas, das Famílias!

 

29.Out.22

Martins Júnior  

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

DA “GREAT-BRITAN” À “SHORT-BRITAIN” --- ou --- A DECADÊNCIA DOS IMPÉRIOS

                                                                          


De Portugal em desagregação. Fernando Pessoa dizia:

Ninguém sabe que coisa quer

Ninguém conhece que alma tem

Nem o que é mal nem o que é bem

Tudo é incerto e derradeiro

Tudo é disperso, nada é inteiro

Ó Portugal, hoje és nevoeiro

Se a muitos países e estados, quase todos, se pode adequar o lamento pessoano, com maior evidência salta aos nossos olhos  o espectáculo decepcionante (de marionetes, diria, se se não tratasse da segunda maior economia europeia) que nos tem proporcionado o Reino (des)Unido, desde que optou pelo ‘Brexit’.

Não sendo esta a minha faixa de rodagem preferida, a verdade é que ninguém pode ficar indiferente à italianizante (e insustentável) leveza de um Estado que em seis anos conheceu cinco primeiros-ministros, todos do mesmo partido, canelando-se e revezando-se uns aos outros como num jogo de saltimbancos da feira, o que dará razão aos epítetos de que ninguém sabe que coisa quer, tudo é disperso, nada é inteiro.

Sem o mínimo propósito – seria supinamente ridículo – de interferir na política da Velha Álbion, apraz-me detectar a porosa fragilidade dos tronos e a estrondosa capacidade dos titulares da governação em minar e esboroar a solidez do poder que receberam dos seus constituintes, os eleitores, acrescendo ainda a, eticamente, abusiva teimosia de contrariar a vontade dos mesmos eleitores expressa publicamente, com manifesto prejuízo dos cidadãos. Passemos, pois, em revista determinados e recentes indicadores-chave demonstrativos do depauperamento político daquele que foi o Grande Império Britânico ou, por outras palavras e em termos actuais, a ironia  deslizante da Great-Britain para uma decadente e desfigurada Short Britain, onde tudo ficou mais curto, efémero, mais inseguro e com humilhante perda da hegemónica  identidade patriótica.

         Primeiro, o desfile dos cinco oficiais comandantes da esquadra conservadora: David Cameron, Theresa May, o inimitável Boris Johnson, a doce e vaporosa Lis Truss e desde ontem  - a amora rica em cima do bolo! -  o ‘estrangeirado’ Rishi Sunak. Ninguém duvidará que os cinco, colados todos juntos, não passariam de um enfezado espeto face à estatura política de um Tony Blair, de uma Margareth Thatcher ou do histórico Winston Churchill, concordemos ou não com o seu ideário governativo.

         Para a secular longevidade aristocrática da Great Britain não deixa de ser um auto-vexame o paradoxo de uma Rainha, de 96 anos de idade e 70 de reinado ter empossado uma nova primeira-ministra que durou apenas 45 dias no posto!... Dir-se-ia que a soberaníssima e  nonagenária Rainha deu à luz um nado-morto. Na imponente ‘maternidade’ chamada Commonwealth,  ex-Magno Império Britânico…

          Por outro lado, neste repetido ‘ping-pong’ a dez mãos (as dos cinco já citados), e perante o clamor da maioria das sondagens (até da opinião de alguns parlamentares conservadores) favoráveis a eleições gerais antecipadas, como solução única para sair deste ensarilhado marasmo governativo, que é que decidem os tories? Servindo-se da maioria no Parlamento, teimam em prolongar esta ficção agónica de nomear um primeiro-ministro ‘instantâneo’, pela diferença de 165 votos, uma aberração comparada com os 65 milhões de cidadãos do Reino Unido. Com razão, Miguel Esteves Cardoso observou: “A rapidez foi ditada pelo instinto de sobrevivência dos conservadores ingleses. A grande vítima dessas andanças não é este ou aquele político conservador - é o próprio Partido Conservador. É um partido despedaçado”.

           Mas, enfim,  no nº 10 da Dowing Street já se assentou Rishi Sunak, o imprevisível Super-Rei, porque mais rico que o próprio monarca Carlos III, o que indicia, desde logo, o teor programático preferencial da futura governação. Mas a maior originalidade – deprimente e vexatória para o ‘puro sangue’ da orgulhosa  nobreza britânica – o super-rei não lhe corre nas veias a génese  identitária do ‘puro sangue’  inglês. É asiático-hindu, fruto serôdio de uma  enorme farm lá dos confins do mundo, colonizada pelo senhorio e feitor inglês. Ai, quantas voltas estarão a dar na cova os heróis navegantes da temerária Armada Inglesa, descobridores e povoadores das Índias! E que ressalto vitorioso não terá dado Mahatma Gandhi! O escravo apeia o grande senhorio e toma-lhe o trono, o colonizado ocupa agora o palácio do colonizador!

          Mais delicado, porém, é o Nevoeiro que se acumula entre a esmerada cortesã tradição feminina e a nova ‘Primeira Dama’. Bye, Bye, olhos azuis,  louras madeixas, jóias genuínas da joelharia Rainha Vitória ou Princesa Diana.  Agora, as pedras preciosas são do metal sonante das libras em cachão transbordando de um tesouro oriental.  Doravante e enquanto durar este ‘arranjo’ conservador, os ingleses terão de rever-se num outro figurino de First-Lady, a indiana e capitalista de risco, Akshata Murty.

Malhas que o Império tece! – volto a Fernando Pessoa.

É verdade que o mundo debate-se hoje com dramas muito mais tormentosos que as vicissitudes intestinas do Reino Unido. Mas não deixa de ser um ‘sinal dos tempos’ a mudança de paradigmas tradicionais e a surpresa de opções inovadoras no cenário político internacional. E se, por um lado, é patente a fragilidade orgânica de uma Great-Britain em notório resvale para outra Short-Britain, por outro lado vislumbra-se uma nova era e uma nova ordem mundial em que os verdadeiros valores patrióticos já não assentam no heráldico património hereditário, nem na cor da pele, nem no credo dos seus titulares. Aconteceu com Barak Obama nos EUA. Mas este é outro caso.

Não obstante os pouco recomendáveis episódios da actual novela conservadora de Londres, fica-nos como espectadores um olhar crítico e conclusivo: Quando o monocolor poder da máquina partidária emperra e entrava o interesse público, tem de ser o povo eleitor a re\pôr o país, a região, a cidade em marcha.

 

27.Out.22

Martins Júnior  

terça-feira, 25 de outubro de 2022

NA HORA DO PÓDIO DE UM CORREDOR MAIOR ----------------------O TEMPO E O MODO --------------- O Tempo de Viver e o Modo de Estar

                                                                                        

     A campa rasa é uma alcatifa verde-moço e o caixão de pinho um mausoléu real. E enquanto desce à tumba, ergue-se o troféu invisível do herói centenário, filho genuíno da terra, enfim regressado ao seio da terra-mãe. Homenagem justa de um país – a minha também – ao Prof. Adriano José Alves Moreira1

         Para lá de todos os panegíricos ~  necessários mais em vida que  depois dela – a minha reflexão incide sobre as “sete vidas” (numeral bíblico que significa muitas e mais) do viajante-bandeirante que atingiu a meta só a poucos predestinada. “Em 100 anos ele foi tudo” – assim sintetizou Marcelo Rebelo de Sousa. E, para ser tudo, correm-se riscos, inclusive o de ser, dizer, fazer o mesmo e o seu contrário. Tudo depende das circunstâncias, já nos informou Ortega y Gasset. É a esta conjuntura que eu chamo o Tempo (de viver) e o Modo (de estar). Consoante o Tempo (o meio, o lugar, a envolvente) aí molda-se inevitavelmente o Modo (a resposta comportamental, o status, no limite, o carácter e a personalidade). Só os espíritos fortes são capazes de resistir.

O Prof. Adriano Moreira ”foi tudo”. É a sua marca distintiva, mais que um simbólico ex-libris,  constitui a sua identidade singular, o monumento com que ficará para a história. Fora de dúvida, poucas personalidades ganharam uma aura tão vasta, autêntica banda larga, omnímoda, versátil, quase contraditória.

Mas quem terá sido o grande obreiro desta tão rica simbiose personalista?... Mestre TEMPO, não duvido, assessorado pelo voluntarismo decidido do protagonista. E porque “100 Anos” é muito tempo, acompanhemos  pari passu o Tempo (os momentos) e o Modo (as respostas) ou os papéis sociais que Adriano Moreira foi chamado a desempenhar, monitorizando e catalogando-os numa escala cronológica correspondente:

1º - Se o Prof. Adriano Moreira morresse aos 26 anos, (1948), ficaria na história como o jovem advogado corajoso que ourou afrontar o Ministro da Guerra, do Gabinete de Salazar, quando patrocinou o  processo da família do general Marques Godinho condenados pela ditadura, valendo-lhe, por isso, a prisão no Aljube.

2º - Mas se morresse aos 40 anos (1961-1962), ministro do Ultramar, ficaria para sempre com o labéu de colaboracionista fascista que reabriu a hedionda colónia penal do Tarrafal.

3º - Se, acaso, deixasse o mundo no ano seguinte, (1963) em plena guerra de África, teria firmado lugar cimeiro na história política do país, porque rompeu com o ditador quando este recusou as propostas reformistas do seu ainda ministro do Ultramar, acerca da guerra colonial.

4º - Daí até 1974, fez a travessia do deserto, nunca mais foi reabilitado nem sequer pelo seu amigo (depois ex-amigo, arqui-inimigo) Marcelo Caetano. Ao tempo, o seu legado teria sido a cátedra como docente universitário. E assim terá ficado até ao fim se não fosse a Revolução dos Cravos, para a qual em nada contribuiu nem consta que a tivesse obstruído.

5º - Se, de 1974 a 1977, Adriano Moreira tivesse acabado os seus dias, no seu epitáfio constaria apenas um novo e intrigante estatuto: “Exilado de Portugal pelos revoltosos de Abril”.

6º - Mas o Tempo, que é imprevisivelmente inexorável e generoso, emendou o lance e, pela chave da Democracia nascente, reabriu-lhe as portas do país que ele sempre amara. Voltou e respondeu à chamada, não como ‘filho pródigo’, mas como simil inter pares, Deputado entre os Deputados, Mestre entre os Mestres, Senador entre os Senadores. Até que o Tempo catapultou-o para a galeria dos centenares laureados.

Em Adriano Moreira, o Tempo e o Modo deram-se as mãos. Com sucesso. E também com aquele espanto do vulgo que vê e desconfia de tão inusitada transição entre duas margens radicais,  a ditadura e a Democracia. Na mesma onda paira o historiador Ramada Curto quando afirma: “Existe um entusiasmo aparentemente consensual em torno de uma figura de quem a investigação histórica demonstrará o oportunismo e a irrelevância”.

Na mira do historiador distinguem-se, em contraponto, todos aqueles que, vivendo o mesmo Tempo cronológico, optaram por um outro Modo ideológico-interventivo e mantiveram-no até ao fim, mesmo à custa da própria liberdade. Mas esta é outra e magna saga a desbravar!

Enquanto ao plano zero habitável descem silenciosamente100 anos de altitude existencial assinalada, aqui deixo, com a minha homenagem, o legado de um Homem das “Sete Vidas” balanceadas entre o Tempo e o Modo.

Guardo com particular emoção o discurso de apresentação, em Lisboa,  do livro do Pe. Prof. Anselmo Borges, na presença de Ramalho Eanes e Marcelo Rebelo de Sousa, perante uma assembleia do melhor escol da intelectualidade do país. Uma lição de aprofundamento teo-filosófico sobre a realidade presente e futura do mundo que habitamos. Um transbordante sopro de juventude e optimismo. Aos 95 anos!

 

25.Out.22

Martins Júnior      


domingo, 23 de outubro de 2022

CARTA ABERTA AO PADRE JOSÉ LUIS RODRIGUES

                                                                       


       

           Colega e Amigo

         Não são os crimes de guerra perpetrados contra o massacrado povo ucraniano que me levam a escrever estas letras que de há muito trago dentro de mim, nem mesmo o tenebroso apagão causado pela destruição das centrais eléctricas que deixaram às escuras cidades inteiras.

         É de um outro apagão que venho questionar o meu amigo. Eu só queria saber  qual a .mão criminosa e que obscuras forças levaram a sangrar de negro esse inspirador mural de sol e saúde que todos os dias JLR desdobrava perante o mundo, via redes sociais.

“Não dizes, eu adivinho” – faço minhas as palavras de Carlos do Carmo. Mas, permite, colega e amigo: mais alta que as sombras viscosas atiradas sem direcção e mais poderosa é a luz vertical, galvanizadora, que emana do teu talento e da tua criatividade, expressa em áreas tão diversificadas, desde a poesia ao conto e ao romance, à incursão teológica e à análise social, através de artigos, ensaios, homilias, conferências.

Não precisas que to diga, mas esta é a verdade: no panorama intelectual regional, a tua voz assoma como trombeta brilhante e vigilante, sempre em cima dos acontecimentos, com um tacto jornalístico de primeira água e um olhar prospectivo sobre a realidade envolvente, sem te deixares  ficar cativo dos apertados arames insulares, mas, pelo contrário, agregando ideias, personagens, iniciativas, enfim, caudais inovadores vindos de fora.

Se não agora, tenho a certeza que os dias do amanhã hão.de render-te graças pela visão estruturalmente profética que tens da Igreja de Jesus, o Nazareno. O que mais notório e eloquente há em ti é a coerência entre a visão e a palavra. No magro universo da instituição eclesiástica regional – um deserto de cultura e aprofundamento teológico e, em contrapartida, um espectáculo barroco de feira vistosa – é sempre a tua voz, a única, que tem a coragem de sinalizar os desvios tortuosos de dois mil anos de cristianismo e seiscentos anos de regionalismo católico-apostólico-romano, agravado nos tempos que correm. Não só para mim, mas para muitos, tu és a extensão mais fidedigna da estatura ideo-teo-sociológica do Papa Francisco na Madeira.. 

Colega e Amigo

Contra esta força holística, espiritual e humana, “não há machado que corte a raiz ao pensamento”. E contra este caudal de energia e acção, não há mão nem braço capazes de apagar o mural luminoso que todos os dias tens trazido ao mundo.

Há o bournot viral, é certo,  há os drones Kamikase furtivos, uns telecomandados pelas hierarquias, outros anónimos, acéfalos. E há, ainda, o reino dos roedores do esgoto, as toupeiras do charco, as rémoras parasitas que só sobrevivem à custa das migalhas que caem da mesa da gente limpa e que eles transformam em esterco. Desses dizia já desde o século XVIII o nosso grande Álvares de Nóbrega, são aqueles que “convertem em peste a chuva de ouro que sobre o mundo entorna Júpiter Sagrado”. Em nome da causa animal, dêmos-lhes ração de entretenimento. E sigamos em frente. Porque “os cães ladram e a caravana passa”.

Colega e Amigo

A vida é breve e o que há-de ficar não é a folha que as mãos daninhas quiseram apagar, mas aquelas que escrevemos, algumas, as mais duradouras, com o sangue das nossas veias, os murais  de escrita franca que todos os dias colocas dentro das nossas casas e das nossas vidas. E se, para algo servir, dedico-te quase meio século de ostracismo, exilado na própria terra. Mas estou vivo e muitos detractores não. Lamento que já não me possa ver.

Devo também ao meu amigo uma partilha dessa vida.

VALE !

 

23.Out.22

Martins Júnior      

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O INTRADUZÍVEL PROJECTO MUSICAL DE CRISTINA VIEIRA E NUNO FILIPE

                                                             


-  O Tempo, diz.me o que é o Tempo?

-- Se não me perguntarem, eu sei o que é o Tempo. Mas se me perguntarem, já não sei dizer o que é o Tempo.

Neste histórico dilema e na resposta anómala do filósofo, está todo o abismo entre o sentir e o dizer, entre a emoção e a palavra. E porque a palavra trai ou apouca – sempre! – o pensamento e a emoção, por isso mesmo é preferível dar largas à sensibilidade e deixá-la ficar  “Naquele engano  d‘alma ledo e cego, que Fortuna não deixa durar muito” - como  bem o sentiu Camões no coração de Inês de Castro, ‘aquela que depois de morta foi rainha’.

Assim estou eu aqui  de corpo extático e alma em êxtase esvoaçante ao ritmo crescente do projecto musical de  Cristina Vieira e Nuno Filipe. Ritmo crescente é a linha definidora desta pauta ascensional que nasce da força telúrica da água, do monte, da lenha e das penas aos molhos – penas que soltam  lágrimas caídas dos olhos de multidões curvadas como servos da gleba na terra de senhorios – esses senhores que matam quem lhes trabalha a terra.         

            Ninguém como nós, madeirenses, saberá sentir e interiorizar a mensagem desta criação artística, uma ária plangente, um grito abafado que pretende atravessar vales sombrios, subir socalcos até alcançar as nuvens longínquas e aí verter um pranto antigo. É patente que este projecto foi inspirado numa situação endémica da Madeira, o ‘leonino contrato da colonia’, sob cuja canga gemeram gerações seculares, que a voz de Cristina Vieira condensa neste dramático soluço:

Os molhos deitam-me ao chão

Quase não consigo andar

Já me dói o coração

 

            Quantas vezes vi e ouvi eu este amargo desabafo da boca de homens e mulheres com quem, por missão, tive de contactar, vítimas da exploração do campesinato sob o jugo da colonia, actualmente e em boa hora já abolido!

            Por tudo isto e por muito mais que  subentendo sem palavras, ousarei classificar esta jóia musical como um portentoso clamor revolucionário sob uma veste de lilás macerado pela dor – uma dor sublimada pela voz etérea, intangível da Cristina e pelo estro criador do Nuno Filipe.

            Por hoje – e porque ‘as palavras estão gastas’ -- deixem-me ficar neste estado de alma, dolente e vigilante, em que a melodia me tem trazido cativo dias e meses ininterruptos. Comigo está também Sebastião da Gama, desde quando escreveu:

            Ai, linda, longa melodia imensa…

 

            21.Out.22

            Martins Júnior

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quarta-feira, 19 de outubro de 2022

NOVO FUNCHAL-JAZZ EM VERSÃO DE ARRAIAL REGIONAL

                                                                    


 DOS JORNAIS:

Paulo Cafofo promete dar um murro (soco) em Lisboa para conseguir o ferry entre Madeira e Lisboa.

Miguel Albuquerque, em Los Teques, promete gritar para conseguir o voo TAP entre Madeira e Caracas.

 

No trapiche do país

já não há quem nos acuda

rússias ucrânias brasis

ninguém no mundo ajuda

tudo é triste tudo é infeliz

numa ilha surda-muda

chamem artistas da feira

para alegrar a Madeira

 

E logo a preço de saldo

saltaram dois da cartola_

Vamos dar corda à tarola

Um concerto Funchal Jazz

Disseram à parceria

Um faz o solo do Grito

Outro o Murro à bateria

 

Vai começar o dueto

De Paulito e Miguelito

Cá em baixo quem manda é o Soco

Lá em cima estica-se o Grito

 

Raque raque Reque reque

Al-Bu-Ku e Al-Bu-Keque

Ka-Fo-Fu KaKofonice

Kafofone  Ka-Fo-Fo-Fice

 

Ferry ferry já soquei

e quando vem eu já sei

rép rép rap rap

grita tu prá tap tap

 

Algo não bate certo

No desalmado concerto

Em casa não ensaiaram

E nem sequer se falaram

 

Mas lá fora vale tudo

Lá fora é que é bonito

Milagre da hipocrisia

Abraçam-se o Soco e o Grito

 

(refrão)

 

Tás-me estragando o concerto

tamém falhaste esse soco

se tocas mais alto que eu

levas já um chuto no coco

 

Miguelito acerta o passo

Não grites desafinado

se bufas assim tão aéreo

passa o micro prao calado

 

(refrão)

Rép rép rap rap

 

Mas o mar é que tem culpa

destas ilhoas maldades:

um abana-se em Los Teques

outro nas Necessidades

 

Grito-soco ou Soco-grito

a ordem é arbitrária

por mais que mudem de tom

e troquem de indumentaria

sempre o murro

cheira a esturro

sempre o grito

é espeto frito

 

(último refrão)

 

nquanto o ferry não anda

e enquanto a Tap não voa

ninguém se livra do jazz

entre Funchal e Lisboa

entre um murrito paulito

e um chutito miguelito

 

 

19.Out.22

Martins Júnior

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

PATRIMÓNIO IMATERIAL CONTRA A POBREZA

                                                                                 


No cardápio das pobrezas, é a material e orgânica a que mais nos toca e aflige, a que nos desespera e também a que mobiliza multidões contra os governos das nações, como aconteceu hoje em todo o mundo. A este propósito, solidarizo-me com todos os movimentos contestatários que saíram à rua e destaco uma palavra de ordem expressamente proclamada por um dos manifestantes: “Se os governos não têm força (legal e institucional) para impor-se às multinacionais, tem de ser o povo a exigir justiça e preços justos”.

         Mas há outras tipologias da pobreza. “O estigma do pobre” (dizem os analistas que se estende por cinco gerações) nunca será extinto se não houver um amplo laboratório de estratégias integradas, orientadas directa ou indirectamente para atacar o síndroma de onde sai o purulento vírus chamado pobreza.

E são tantos os antídotos que estão ao nosso alcance, não apenas os materiais, mas sobretudo imateriais. Não se tira do fosso da miséria, seja quem for, dando-lhe apenas um prato de comida ou uns trocos cirúrgicos para gastos. O pobre - o ser humano – não se resume a um exclusivo produtor-consumidor de bens perecíveis, mesmo que necessários à sua subsistência. Ele é muito mais: é sensibilidade, é sonho, é esperança, é literacia, é conhecimento, é amor, numa palavra, é espírito…

E aqui faço-me um ponto de ordem: é pela autonomia do espírito que se consegue conquistar a autonomia do corpo. Alargando o âmbito de acção: a ciência, a biologia, a educação, o pensamento, a auto-consciência, o associativismo, enfim a arte, são os “gps’s” mais seguros para chegar à vitória da justiça e derrubar os monstros destiladores da pobreza. Um percurso mais longo e perseverante, mas sem sombra de dúvida o mais eficaz e duradouro. E esta tem sido, justa e criteriosamente, a luta da “Rede Europeia Anti-Pobreza”, dirigida em Portugal pelo Padre Jardim Moreira e, por estes dias, presente na Madeira.

Educação, Ciência, Arte, a trilogia que define o Espírito e mobiliza toda a sociedade, em todo o tempo e lugar. As armas que ajudam a libertar o corpo e a erradicar as viroses que empobrecem o mundo.

Eis a razão que me obriga  a saudar o VII Festival Internacional de Bandolins da Madeira, em que tivemos a honra de participar no último fim de semana. O Teatro Municipal Baltazar Dias ornou-se o epicentro da cultura musical da Madeira porque abriu as portas e o seu palco monumental às periferias da Região, juntando em cena colectividades musicais dos mais diversos concelhos e freguesias, acrescendo ainda o privilégio de uma tão gostosa partitura humana, composta de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos em inesquecível concerto da Divina Arte.

Os nossos mais efusivos cumprimentos à dupla perfeita Norberto Cruz - Lidiane Duailibi, que todos os anos, no palco do “Baltazar Dias”, transforma o Outono em Primavera.

Assim, também, um modesto contributo para elevar o espírito e erradicar a pobreza!

 

17.Out.22

Martins Júnior

sábado, 15 de outubro de 2022

INQUEBRÁVEIS BRAÇOS LASSOS DE MOISÉS !!!

                                                                         


“Como os braços de Moisés se iam tornando pesados, trouxeram uma pedra e colocaram-na por baixo para que ele se sentasse, enquanto Aarão e Hur, um de cada lado, lhe seguravam as mãos. Assim se mantiveram firmes os braços de Moisés até ao pôr-do-sol e Josué desbaratou Amalec e todo o seu exército”     

                                         (LIVRO DO ÊXODO,17, 8-13)                                  

 

De nada lhe valeu ao povo hebreu

o feixe atado dos dedos em ogiva suplicante

nem as mãos gretadas esfaimadas

à espera de um pingo de água em seca extrema

 

E a vara e a voz

que muralharam o furor do Mar Vermelho

sumiram-se inertes no areal do deserto

 

Nunca as lágrimas trouxeram peixes

ao lago de Genesaré

e as preces não removeram um só tijolo

das torres de babel

 

Faltavam  braços de Moisés…

Força braçal

raiz mental que derrubou os velhos faraós

 

Enquanto se alçarem aos quatro ventos

e aos canos das metralhas

serão tuas e nossas todas as batalhas

 

Do teu cansaço faremos a nossa força

da nossa força a tua alavanca

 

15.Out.22

Martins Júnior

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

15 DE AGOSTO E 13 DE OUTUBRO – MADEIRA E VENEZUELA, A MESMA SENHORA, AS MESMAS TRAGÉDIAS E A MESMA PERGUNTA ATÉ HOJE SEM RESPOSTA

                                                                              



Fenómenos há que, pela homogeneidade da sua mensagem pacífica, nem de longe nos toca nem abala a subtil contradição que os pode afectar e, como explosivo escondido, é capaz de destruir num momento a harmonia   sagrada que envolvia OS DOIS fenómenos.

Os dois fenómenos:

1.     Em 15 de Agosto de 2017,  Dia de Nossa Senhora do Monte,  sósia (a mesma!) de Nossa Senhora de Fátima, com uma veste regional,. Rios de fé,  salpicada de lágrimas, emoções, juras de confiança absoluta na Padroeira. No entanto, um tronco sonolento ali escondido desperta de um letargo de séculos, apaga as velas promitentes e mata repentinamente 13 peregrinos que cantavam louvores à Senhora.

                                                             




        2, Em 13 de Outubro de 2022 em Los Teques, hoje mesmo,   inaugura-se uma basílica dedicada a Nossa Senhora de Fátima, réplica da existente em Portugal. Foram 9 milhões de euros oferecidos (mas extraídos) pelos portugueses, continentais e insulares, fruto das suas poupanças de emigrados.  No entanto, antecipando-se à gloriosa e aristocrática homenagem à Senhora, uma dura catástrofe natural abate-se sobre o território de Tejerrias, sacrificando vítimas inocentes..

A estes episódios contraditórios, muitos outros acrescenta-os  a História dos Homens e das Religiões.

         Podem os hermeneutas, teólogos e místicos, doutores e canonistas apresentar tratados e concílios como os que enchem os alfarrábios do Vaticano- Mas ao homem comum e à mulher crente não lhes resta senão uma oração interrogante diante do altar da Senhora do Monte, Senhora de Fátima, de todas as Senhoras:

           Senhora que tudo podeis

         Mãe que tanto nos amais

         Por que não seguraste aquele tronco no Largo do Monte?

         Por que não mandaste parar as águas assassinas de Tejerrias?

         Responde-nos: Que significa este massacre em cima dos vossos mais devotos fiéis? A última gota de sangue necessária à salvação?... Ou o castigo de uma fé mal esclarecida?...    

         Ficaremos à espera da resposta… até ao fim do mundo.

         Por isso, imploramos:

         SENHORA, ESCLARECE E AUMENTA A NOSSA Fé!

 

         13.Out.22

         Martins Júnior