segunda-feira, 31 de maio de 2021

ATRAVESSAR A PONTE PELA MÃO DE UMA CRIANÇA…

                                                                        


        Entre Maio e Junho assentam todas as pontes sobre todos os rios…

No tabuleiro linear, a curvatura do arco esconde um velho octogenário conduzido pela mão de uma criança. De uma margem à outra são todas as gerações que atravessam a ponte milenar dos tempos passados e futuros.

Sou eu um dos viandantes anónimos demandando um outro sol e uma paisagem nova que a criança traz consigo. E fico sem saber se é o velho que leva o infante ou se é o infante da nova era  que conduz o velho, pela mão e pelo sonho...

E enquanto não alcanço o outro lado caem cá dentro, mais pesadas que os passos no lajedo, duas bátegas intermitentes, sem eco nem termo:

“Diante de uma criança sinto-me cheio de ternura por aquilo que ela é, mas cheio de respeito por aquilo que ela pode vir a ser” . (Louis Pasteur).

“Não há nada mais terrível que o olhar de uma criança” (Antero de Quental).  

 

31.Mai/01.Jun.21

Martins Júnior

sábado, 29 de maio de 2021

TRINTA ANOS DE UMA NOVA VIDA!

                                                                     




Quem ousou dizer que não é possível  ao Povo, dito miúdo e, para o engravatado status quo, considerado inculto, transfigurar-se de dentro para fora, reinventar-se, erguer-se às cumeadas da ciência e da ecologia?... Quem disse que homens e mulheres, pés descalços e xaile aos ombros, seriam incapazes de mudar mentalidades e passar de um ‘obrigatório’ ofício de matadores ao superior estatuto de redentores das espécies?...

         Pois, se alguém o disse enganou-se redondamente. Bastaria rumar ao extremo leste da ilha, nos idos de 1990, e aí constatar in loco e ao vivo a revolução cultural que se operou na mente e no coração das gentes do Caniçal.

Refiro-me ao novo olhar daquela população sobre o mundo dos cetáceos, então ‘turistas’ bemvindos àquele mar e que deixavam em terra produtos e divisas nacionais e estrangeiras, fundo de maneio à economia local e regional. A indústria baleeira ali sediada foi, sem sombra de dúvida, um generoso sustentáculo de muitas famílias de pescadores. Era o tempo da caça às baleias, uma vida dura, agreste, cheia tanto de perigo como de arte, desde o foguete-pregoeiro da presença do mamífero gigante até à destreza do arpoador, de quem se exigia uma perícia superior ao do cavaleiro tauromáquico. Recordo (acompanhei vária vezes, não sem um arrepio até à medula) o arrastar do real monstro marinho pela rampa acima para ser ‘barbaramente’ esquartejado (logo o sangue escorrendo rampa-abaixo)  e, depois, destinado às fases processuais de transformação industrial.

         Não vou ocupar-me do histórico, longo e rico, da indústria baleeira na ilha. Apenas desejo colocar no vértice civilizacional daquela freguesia a metamorfose assumida pela população que, após a proibição oficialmente decretada, viu com espanto entusiástico e plena concordância a deposição do ’machado de guerra’ e, em seu lugar, erguer-se um  trono onde ficou perpetuada a homenagem aos cetáceos. Na altura, recordo-me de ter dito que

“ o Caniçal fora o cadafalso da baleia, doravante será o altar da baleia”. Compete aqui relevar que ‘alma, coração e vida’ deste projecto foi Eleutério Reis, líder nato no ramo baleeiro e primeiro director do Museu. Pela sua acção dinâmica, incansável, o Museu da Baleia foi um polo aglutinador de biólogos e investigadores marítimos, cineastas e publicistas de Portugal e estrangeiro.

         Foi ontem a comemoração do trigésimo aniversário da instituição, agora instalada em digno e, até, sumptuoso estabelecimento público. Uma efeméride que brilhou pela sua simplicidade endémica, tal como no dia da sua abertura (e não inauguração), há três décadas. Seja-me permitido sintetizar a transformação ideo-empírica da população relativamente aos cetáceos numa única frase que então pronunciei perante entidades oficiais e pescadores: “Até ontem, a baleia foi pão para o corpo; a partir de hoje, será pão para o espírito”.

         Aproveito a oportunidade para agradecer à Câmara Municipal de Machico o exemplar que, pela mão da vereadora da Cultura, drª. Mónica Vieira me foi entregue,  de uma bem cuidada edição (“TRINTA ANOS, Memórias”, da actual  direcora, drª. Ana Teresa Menezes de Nóbrega), respigando, com a devida vénia, um excerto da imprensa madeirense, onde  a jornalista Eker Melim escreve: “O presidente da edilidade dirigiu palavras de elogio a Jorge Moreira, ex-presidente da CMM, que foi quem tomou a iniciativa deste museu”.

         Pouco importa o meu discurso para o caso. Mas devo partilhar o meu íntimo prazer intelectual e moral ao ler esta reportagem de há 30 anos. Com efeito, foi no meu mandato que se construiu a primeira sede do Museu, mas quem lançou a ideia fora o meu antecessor, dr. Jorge Moreira de Sousa. Para melhor esclarecimento, éramos de posições político-administrativas completamente opostas. Mas nada me impediu de dar o seu a seu dono. E a construção da vida e da sociedade deveria pautar-se por este guião: Cada qual faz a sua parte. E, fazendo cada um a sua parte, fica a obra completa!

         Já o dissera Fernando Pessoa: “Deus quer, o Homem sonha, a Obra nasce”.

 

         29.Mai.21

         Martins Júnior

         (Na gravura, Eleutério Reis, Martins Júnior, João Carlos Abreu, então secretário regional de Turismo e Cultura, convidado oficial, assinando o Livro de Honra).  

quinta-feira, 27 de maio de 2021

A FORÇA QUE VENCE TODOS OS “LUKASHENKOS” … DE LÁ E DE CÁ!

                                                                              


Porque “nada de humano nos é estranho” – sejam quais e onde o tempo e o lugar – por essa mesma razão pressuponho que a minha anterior mensagem sobre o “Estado-pirata” do leste europeu terá suscitado interpretações e reações contraditórias: de um lado, um consenso generalizado  contra um tal (que fora) vigia ou gestor de quinta soviética, Lukashenko,  pelo desvio de um avião com 121 pessoas a bordo e, por outro lado, eventuais discordâncias pela aproximação que fiz a situações ocorridas nesta ilha, em passado não muito distante.

Desde logo, apresento a minha declaração de princípios: tudo quanto de importante (exaltante, entusiástico ou trágico) chega aos nossos olhos e ouvidos nunca poderá semelhar-se a pitorescos episódios de novela para fruir-se, a partir do sofá, como sobremesa do protocolo doméstico. Antes, porém, deve servir de guião condutor de um olhar analítico sobre o vasto mundo e, muito cirurgicamente, sobre o piso que cada um de nós habita: o país, a região, a cidade, a aldeia. Pessoalmente detesto o academismo romântico de quem descreve e adormece cavalgando a neblina matinal ou, por outras palavras, quem calça as luvas virgens das vestais do templo para ascender ao sétimo céu sem mescla de cheiro ao húmus de onde saiu.

Respeitando a idiossincrasia identitária de cada emissor-escritor e de cada receptor-leitor, pouco me diz a literatura desencarnada, descomprometida, inócua ou seráfica – “nem carne nem peixe” - dos arrumadores de palavras e colecionadores de citações caçadas nos jardins suspensos do mercado babilónico.

É por isso que o caso “Bielo-Rússia”  não é local, é global. O desvio do avião para prender um jornalista, sacrificando 120 passageiros de 18 nacionalidades, abala-nos a consciência, remexe-nos as entranhas. A repressão transnacional, a ditadura obsessiva, a dominação asfixiante sobre o jornalismo e a opinião pública, tudo isso faz soar os alarmes de todo o mundo e as buzinas e campainhas dos pequenos territórios. Do nosso também! E interpelar sem medo: “E se fosse cá dentro?... E se for cá dentro?... E quem sabe se não andarão por aqui resquícios daquelas unhas  dos répteis-raça-lukashenkos?”...

Rousseau deixou-nos este pré-aviso assustador: “O homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”. Nesta sociedade estamos nós, desde os altos magistrados das nações ao mais humilde e anónimo  aldeão das furnas. Paradoxalmente nesta sociedade também estamos nós, os que podemos purificar o ar que os outros respiram. Nós, os dotados de discernimento e verbo e acção, que podemos neutralizar os bidões de crude que os ditadores, todos os dias e sob diversas manobras (inclusive com ‘cavalos de Tróia’)  ameaçam despejar sobre as nossas cabeças, cegar os nossos olhos. Nós, os que nos recusamos a adormecer sobre as almofadas ou sobre as pedras que outros nos deixaram, porque estamos de passagem, hoje pertence-nos, amanhã será de outros, e é mandato nosso legar-lhes um mundo melhor do que o que encontrámos, um ambiente mais respirável, um governo mais humano e honesto, uma Igreja mais crística e  libertadora.

Citei estas e subentendi outras instituições, porque em todas elas, no sopé mais rasteiro, lá está o eiró viperino da ditadura mal disfarçada, pronto a sufocar, paulatinamente e com o semblante convidativo da serpente do éden, os incautos - às vezes, os melhores - enfim, toda a grei. Depende, pois, de nós, Sociedade, unir-nos para travar o rasto e a cabeça do perigoso réptil.

Escrevi no último blogue: “Escusavam-se as sanções da EU, da ONU, de todo o mundo civilizado, se houvesse na Bielo-Rússia um povo esclarecido, uma Sociedade sã e vigorosa. A urna do voto seria a “basuca” fatal contra a ditadura do antigo vigia-feitor de uma quinta soviética. Não seriam necessários heróis, nem mártires, nem jornalistas presos às mãos de um Estado-pirata.

Haja coragem de transpor para cá as induções que escorrem de lá. Gostaria de fazê-lo. É meu imperativo fazê-lo. Porque depende de nós não dar um naco de isco ao molho de eirós que minam a nossa democracia. “Juntos, temos o mundo na mão”! Sem protagonismos nem heroísmos.

Presto homenagem àquele Homem que, em 26 de Maio de 1521 (fez ontem  500 anos!) foi condenado como herético, pelo conluio entre o Papado e o Sacro Império Romano-Germânico, de Carlos V, na denominada Dieta de Worms. Condenaram Martinho LUTERO, mas os seus correligionários ainda hoje o mantêm vivo e até reabilitado pelo próprio Vaticano.

Não há força maior que a do Cidadão organizado e esclarecido.

 

27.Mai.21

Martins Júnior

 

   

 

terça-feira, 25 de maio de 2021

BIELO-RÚSSIA, BIELO-RAM, BIELO-COVID: ONDE ESTAREMOS NÓS SEGUROS?

                                                                     


O  Planeta volta a estar vulcanizado. Se não damos pelas placas geotectónicas que revolvem a profundidade, chegam-nos quase à pele as lavas que escorrem à nossa beira, seja em Marrocos e Ceuta, seja em Israel, seja por terra ou por mar.

Mas o que nunca se esperaria neste primeiro quartel do século XXI é a trepidante insegurança no ar que nos cobre e nos envolve. Os actos de pirataria aérea remontam ao reino das ditaduras, contra as quais os terroristas – assim taxados pelos regimes totalitários – afrontavam quase suicidariamente os detentores do poder absoluto. Hoje, porém  (e ontem foi, em 24 de Maio!)  é outro o terrorismo, o de um Estado, dito democrático, porque eleito pelo povo, um Estado pertencente à nossa família europeia, sentado à nossa mesa, comendo do nosso orçamento. Para onde fugiremos, se nem no azul dos céus nos achamos seguros?...

É incrível o desaforo de desumanidade reinante no ditador pró-soviético Lukashenko que não tem um pingo de remorso em mandar ‘sequestrar’ 121 pessoas, de 18 nacionalidades, que pacificamente  se dirigiam ao aeroporto de Vilnius, na Lituânia, e fá-las aterrar de emergência em Minsk (BieloRússia), sob a assustadora escolta de um MiG-29, da era soviética.

Tudo porquê?... Na versão oficial, devido a uma suspeita de bomba a bordo, a mesma que engendrou o gélido Bush para justificar os bombardeamentos no Iraque. Na versão real, a prisão de um jovem de 26 anos, jornalista anti-regime, que viajava no mesmo avião!!! Como é possível? Em que mundo, em que Europa estamos nós?

Transcrevo aqui o pensamento da filósofa americana Judith Butler, em recente entrevista ao jornal Le Monde: “Com a morte de George Floyd, operou-se uma reviravolta a nível cultural e será preciso observar atentamente as consequências e comportamentos institucionais que daí resultam”.

Os órgãos máximos da EU já tomaram medidas severas, como as que já conhecemos. Ninguém, sobretudo nós europeus, poderá ficar indiferente a uma barbaridade tribal de um indivíduo, vigia de uma quinta sob o regime soviético e, depois da independência, apoiado nas eleições para a presidência da Bielorússia, a qual detém desde 1994, com o manifesto apoio de Putin.

Um vulgar guardião-vigia de quinta do regime, catapultado a ditador desenfreado numa Europa restituída à Liberdade e à Paz desde 1945! Onde é que eu já vi coisa semelhante?...  Ocorre-me à memória o caso de um obscuro sargento do exército alemão, mais tarde transformado no maior assassino da história. “Se bem me lembro” (parafraseando Vitorino Nemésio), também não consigo  esquecer que, nos primórdios do 25 de Abril de 1974,  numa minúscula Bielo-MAD-RAM aconteceu, entre outras, esta cena precursora de um tal vigia-de-quinta Lucashenko: um competente professor, distinto escultor, foi mandado coercivamente para o aeroporto, tomar o avião e, sem mandado judicial nem processo formado,  foi literalmente expulso da ilha!

Onde quero eu chegar com estas aproximações à tômbola da história?

Simplesmente a isto: não bastam as retaliações da EU e do mundo civilizado para refrear os instintos maquiavélicos dos ditadores. É preciso mais. Aliás, as sanções institucionais nem seriam necessárias, se houvesse esse ‘mais’. Qual será esse ‘mais’ adicional, estrutural? O Povo,  o Eleitor, o Cidadão comum, enfim, a consciência colectiva de que a soberania está no Povo! O resto deixo à consideração de quem me acompanha nestas páginas.

Apenas, uma última precaução: em tempo de confinamentos preventivos (e necessários à saúde pública) cuidado, muita vigilância, porque sob o manto protecionista, pode estar embuçado o pró-ditador Bielo-COVID que, sem escrúpulos, visa sub-repticiamente anestesiar a consciência e a força soberana da identidade de um Povo!

Repetindo Judith Butler: “É preciso observar atentamente os comportamentos institucionais”!

 

25.Mai.21

Martins Júnior  

domingo, 23 de maio de 2021

A BIODIVERSIDADE DO(s) ESPÍRITO(s)

                                                                      


Domingo foi o Dia do Espírito para a numerosa multidão dos crentes. É uma das festas mais ancestrais no panorama religioso dos portugueses, pois remonta ao Rei D. Dinis que acedeu ao pedido da Rainha Santa, a das rosas, para erguer um templo em honra do Divino Espírito. Alenquer foi o lugar predestinado e aí concretizou-se o sonho régio de Santa Isabel. A devoção adquiriu cambiantes caprichosos, quer no Continente quer nas ilhas. Pegou com facilidade no ânimo dos madeirenses e com maior exuberância cresceu, nem sempre com os melhores nutrientes espirituais. Deixemos, porém, este segmento para outa altura.

Hoje, sendo Dia do Espírito, adiciono-lhe o plural declarativo: Dia dos Espíritos. Porque, assim como estamos vivendo com naturalidade e, paradoxalmente, com assombro, a evidência da biodiversidade do Planeta, também se há-de reconhecer e relevar a Biodiversidade do Espírito.

Onde fui eu buscar esta interpretação extensiva, talvez imprevisível a olho nu?... Precisamente ao LIVRO, nosso GPS hebdomadário, no texto de Paulo de Tarso, em Carta dirigida aos habitantes de Corinto, capítulo 12:

 

De facto, há diversidade de dons espirituais,

mas o Senhor é o mesmo.
Há diversas operações,
mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.
Em cada um se manifestam os dons do Espírito
para o bem comum.
Assim como o corpo é um só e tem muitos membros
e todos os membros, apesar de numerosos,
constituem um só corpo,
assim também sucede com Cristo.

 

Vale a pena consultar o texto integral da Carta, para nos apercebermos da citada diversidade de dons e talentos incarnados em cada espírito - que é o nosso! - construído neste laboratório de vasos comunicantes, formando este ‘maravilhoso mundo novo’ que dá pelo nome de composto psico-somático. Conquanto invisível, intocável, o Espírito percorre toda a rede vital que atravessa o organismo, desde o cérebro cimeiro até à planta radicial dos nossos pés. E é em todo este percurso existencial, concreto, que se ´despe´ o Espírito, numa nudez tangível, persuasiva, poderosa como a força de um íman irresistível. Poucas vezes damos por isso, sendo certo que é esse o pódio que  coloca o Ser Humano como ‘Rei da Criação’! Apetece aproximar-me de Fernando Pessoa para ouvir-lhe repetir: “O bonómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente a dar por isso”

Em cada um de nós fumega uma parcela da chama do Espírito.

E de cada um de nós depende que ela esmoreça ou que ela se incendeie em catadupas de luz à nossa volta. Do Espírito incarnado no corpo dependem todas as células transformadoras e todos os motores que põem o Planeta em perpétuo movimento, muito maior que o amplo movimento de translação sideral. Ninguém está a mais nesta circunavegação planetária, desde o génio de Einstein até ao camponês, de pés descalços e enxada na mão, a irrigar as terras para alimentar a humanidade. “Diversas são as operações, mas é o mesmo o Espírito que actua em tudo, para o bem comum”insiste o Apóstolo das Gentes.

Extraordinário, fulgurante o grande e único escopo do Espírito: “O bem comum”  !!! … Deixo apena como sugestão esta afirmação peremptória de Paulo de Tarso, definidora da autêntica identidade do Espírito. Só merece o estatuto de portador do Espírito quem no mínimo que, faça, sinta que colocou uma pedra, um tijolo, uma estaca na construção do todo global. Por outras palavras, seguiríamos na esteira do génio das sínteses, Pierre Teilhard de Chardin, caminhando todos até perfazer o Alfa e o Omega da grande Ogiva da História.   

 

23.Mai.21

Martins Júnior

sexta-feira, 21 de maio de 2021

HOMENAGEM AOS “VENCIDOS VENCEDORES”

                                                                          


Nunca foi cronologicamente tão inoportuna, objectivamente tão desadequada e qualitativamente tão deprimente uma fasquia como esta que, todos os anos, empresas parceiras dos mesmo interesses expõem no estendal das folhas diárias para gáudio de uns (os privilegiados) e escárnio de outros (a maioria).

         Os advérbios modais que acabo de enunciar estão bem à vista: perante um ano escolar atípico, como 2019/2020, marcado pelo depauperamento insuperável da arte de ensinar e aprender, em virtude das condições anómalas impostas pela pandemia, qualquer campeonato académico seria, no mínimo, inoportuno. Consequentemente, o objecto da causa – resultados finais – sairiam desadequados, para não dizer, falseados. Em termos de produção efectiva e justeza de apreciação (falo da profundidade de análise e não das ‘caravelas portuguesas’ à tona de água) a tabela classificativa não poderia ter saído tão deformada e tão fútil.

         É a Educação vendida a metro. É a função do lucro marginal em pleno campo da economia do mercado escolar. Nem me demoro na dissecação crítica que  docentes e sociólogos já fizeram e que se sintetiza na veleidade (direi mesmo, desonestidade) de comparar o incomparável, como seja a dicotomia privado-público, com a mais que escandalosa geometria variada que lhe está subjacente.  Apenas limito-me a transcrever a análise de um director de escola, relativamente bem posicionada:

         “Nesta escola, primeiro debruçamo-nos sobre os condicionamentos económicos do aluno, depois pesamos os factores sociais que o determinam e, só depois disso, enfrentamos o seu processamento académico”. Melhor ninguém diria! Focalizada sob a tríplice objectiva deste campo laboratorial, a Educação nunca será suficientemente revelada, nem sequer valorativamente apreciada, se tais parâmetros forem obliterados ou, pior, deliberadamente escamoteados.

         Dois items, porém, pretendo destacar: Enquanto em determinadas escolas de elite se arregimentam os futuros presidenciáveis, os ministeriáveis, os neo-banqueiros, noutras verga-se a cerviz dos cidadãos de amanhã para servirem de escabelo e tapete aos privilegiados. Por outro lado, não entendo por que legítimas razões tem o governo obrigação de subsidiar os colégios particulares, onde nada falta, em prejuízo de tantas escolas públicas onde tudo ou quase tudo escasseia.

         Passo ainda mais importante a considerar nestas fasquias oficiais é saber distinguir o que pretende a Escola: fabricar robôs ou formar homens e mulheres para a futura freguesia, para a futura cidade, para o futuro país?!

         E aqui reside o núcleo essencial da avaliação dos programas educativos, nos quais avulta a prestigiante figura do Docente. Por isso, expresso a minha mais elevada consideração por milhares de professores que cumprem conscientemente os princípios constitutivos do seu mandato: EDUCAR!

Do étimo e-ducere, isto é, conduzir/construir, partindo de uma margem estreita para o largo rio da vida – louvo o esforço dos construtores do amanhã que, em  inúmeros casos, erguem do chão ingrato da sociedade crianças e jovens para fazer deles gente válida, Povo gigante, seja qual o seu lugar nos quadrantes sociais. E destes não vão falar os empolados ranking’s.

Serão os vencidos nas tabelas classificativas feitas, como as sondagens, ao gosto dos patronos. Mas, na verdadeira Contabilidade Nacional ou Regional, serão os lídimos Vencedores deste campeonato !!!

 

21.Mai21

         Martins Júnior

          

quarta-feira, 19 de maio de 2021

NEM SÓ DE ALCATRÃO SE FAZ UM BOLO DE ANIVERSÁRIO: OS 581 ANOS DA PRIMEIRA CAPITANIA DA MADEIRA

                                                                            


         Ainda que possa transparecer uma nesga de exacerbado patriotismo natal, o que desta crónica resulta é a constatação de um filão quase genético que percorre a alma das gentes de Machico. Nessa fonte – que até lembra a ‘Fonte de Hipocrene’, a nascente mítica onde bebiam os poetas da velha Atenas – dessedentaram-se várias gerações de artistas, cultores da Língua de Camões, entre os quais o ‘Nosso Camões Pequeno’: Francisco Álvares de Nóbrega.

         Se quem vive à beira-mar traz no coração um búzio de mil sons, quem percorre as verdes montanhas do vale tem revérberos de mil cores transportados num raio de sol. É assim o Povo de Machico. Demonstrou-o, à saciedade, por ocasião das comemorações do ‘8 de Maio de 1440’, com inteira justiça arvorado em “Dia do Concelho”, após muitas e participadas sessões de debate e esclarecimento nas cinco freguesias do município.

Teria de assinalar-se a gloriosa efeméride evocativa da ‘Carta de Doação da Primeira Capitania, Machico, a Tristão Vaz Teixeira, pelo próprio punho do Infante Dom Henrique’.

Assim foi. Não apenas pelas restrições do momento, mas porque revelou o ADN cultural , inscrito nos genes dos sucessivos descendentes de Tristão Vaz, navegador e poeta. E daqui se extrai a razão do título-supra. É que na Ilha, os megalómanos dominadores da grei costumam a desfraldar bandeiras despregadas, a foguetear os ares límpidos com a polvorosa largada de tiros de artifício e embebedar o zé-povinho com as lantejoulas líquidas que pendem dos céus e os metálicos estalos que caem sobre a cabeça da gente. Não dispensam, antes impõem, o ambulante e mirabolante bolo apoteótico, confecionado à base de alcatrão e betão ciclópico, onde montam o palanque das inaugurações. E foi o que não aconteceu na sede do concelho.

Pelo contrário, Machico respirou o doce e profundo aroma da cultura, de muitos cambiantes e inspirações. Quem ali passasse em toda a semana das comemorações pressentiria que algo pairava no ar, a partir do próprio chão de calçada roliça, e que confortava o espírito dos transeuntes. Mencionarei sucintamente alguns episódios desta narrativa dos 581 anos do nosso Machico.

O Painel, em azulejaria de fino recorte, no Largo dos Milagres, evocando e homenageando o trabalho braçal das gentes de Machico, perpetua a trajectória laboriosa de todo um passado histórico, desde os homens do mar, às bordadeiras, ao homem serrano cultor da terra e fabricante do pão global. No Solar do Ribeirinho, em meio de um recinto estrategicamente ‘bordado’ a pedra branca, descrevendo uma enorme toalha de mesa, a ilustradora e autora Rafaela Rodrigues lançou o seu bem concebido livro infanto-juvenil, dedicado a uma das principais profissões de que se ocupavam as mulheres de Machico: “A Bordadeira”.

Na área dos arranjos florais, foi de uma beleza edénica a decoração do centro da cidade, primorosamente distribuída no Largo do Município, sob os olhares de Tristão Vaz Teixeira, obra-prima do talentoso escultor-violinista Anjos Teixeira. Merece também particular relevo o livro da doutora Zita Cardoso, consagrada difusora das terras de Machico e do seu povo. A história do Externato liceal, ali implantada por Emídio Queiroz Lopes e Ariete Teixeira de Aguiar, nos recuados tempos em que tal segmento de ensino era inexistente no concelho, constituiu um ponto alto das comemorações.

A sessão solene do Dia do Concelho, propositadamente descentralizada para a vila-extremo leste da Ilha, o Caniçal, primou pelo carácter idiossincrático do seu programa, dando a palavra aos legítimos representantes do povo, os partidos com assento na Assembleia Municipal e dispensando assim intromissões ‘extra-vagantes’ que quase sempre  desvirtuam a autenticidade genuína dos aniversariantes, as populações machiquenses.

Finalmente – finis coronat opus, ‘o fim coroa a obra’ –  no aniversário 581º da Capitania, há-de ficar inscrita em letras de ouro a publicação dos “ANAIS DO MUNICÍPIO DA ANTIGA VILA DE MACHICO”, um precioso documento há tanto tempo aguardado pelos munícipes e pelos estudiosos da história local e regional, ao qual já fiz referência no momento oportuno!

De relevar que todo este monumento de polivalência artístico-histórica foi corpo, sangue, alma e vida de gente de Machico e a colaboração de abalizados especialistas, sobretudo na edição dos “ANAIS”. Sem sombra de pretensos exclusivismos locais, a verdade é que imperou nestas comemorações um genético amor ao nosso torrão natal, à pureza original da (deixai-me assim classificar) “Machicidade”, isto é, o carácter de ser, de pertencer a Machico, a Primeira Capitania outorgada pelo Infante Dom Henrique, em 8 de Maio de 1440. A Capitania do Funchal foi criada dez anos depois, em 1450. Podem reescrever a história. Não podem, porém, apagá-la!  

E a prova maior desta torrente patriótica que uniu os proponentes e patronos da iniciativa, com a Câmara Municipal à cabeça, a prova está no Hino a Machico, “A Pátria do Autor”, como bem classificou o já citado Francisco Álvares de Nóbrega. A concentração dos vários agrupamentos do concelho, desde Banda Filarmónica, Grupo Coral, Tuna de Câmara, Grupo Folclórico do Caniçal, juntando diversos escalões etários, sob a direcção de Felipe Gouveia e a especial participação de João Caldeira, Sérgio Pão, Nuno Nicolau e Nelson Sousa  há-de permanecer como testemunho perpétuo de um Povo que soube fazer um tronco unitário de cultura e beleza autóctones de Machico-Concelho. Vale bem a pena revisitar o vídeo então publicado.

Bem hajam !!!

  

19.Mai.21

Martins Júnior  

segunda-feira, 17 de maio de 2021

ENTRE CANTOS E PRANTOS – UMA HISTÓRIA EE CONTRASTES

                                                                       


                                             

Após o sol sabatino do coração de Maio – era sábado e era  dia “15” – com a multidão de abraços e ‘glamores’ dentro e fora das redes sociais, arrisco-me hoje a ser condenado na via pública, sobretudo pelo pesado código pio-inquisitorial dos crentes mais crentes deste mundo. Mas é a lei da vida, o inato jogo de contrastes em que inevitavelmente nos tornamos actores-à-força.

Foram os contrastes do dia que motivaram ‘a história que vou contar’. Com efeito, assim foi: no mesmo dia em que diante de mim se brindava à inauguração  da alcova de futuros nascituros  (é esse o horizonte de um novo casamento) – logo de seguida dirigi-me ao berço derradeiro da vida para oficiar no cemitério local a despedida final de uma anciã de 84 anos, a vizinha mais próxima do templo da Ribeira Seca, a minha mais chegada vizinha. E foi nessa hora que me acudiu à mente e agitou as cordas do coração a tal ‘história que vou contar’.

Era uma vez…

Era uma vez, num recanto marcado por uma intensa ruralidade, explorado por séculos de mandantes e senhorios. Um dos senhorios da terra – e da alma dos devotos – possuía o talismã dos divinos arcanos, a diocese. O titular da diocese entendeu expulsar o padre que lá estava. O povo do lugar opôs-se decididamente. O bispo ameaçou fechar a igreja e, perante a oposição popular, recorreu ao governo que enviou forças policiais encerrar as portas e vedar o passo a quem ousasse pôr o pé  no adro.

Mas o insólito aconteceu. Morreu o vizinho mais próximo. Era um pobre trabalhador das britadeiras, sufocados os pulmões pela poeira dastrituradoras. A polícia não deixou entrar o caixão na igreja nem sequer atravessar o adro que mediava entre a casa e a estrada. Nem igreja, nem adro, nem padre. Que fazer?... Há então uma voz de mulher sessentona e líder: “Vamos todos em procissão até ao cemitério. Já que não deixam vir o nosso padre, vamos pela estrada abaixo, fazendo a nossa oração. Sem cruzes, sem pendões, sem padre. Não é o padre que salva o morto”.  O caixão foi transportado por quatro homens que tiveram de atravessar o recinto desportivo da paróquia, sobranceiro ao adro guardado pelos polícias. Chegados à estrada, lá foram a pé, vizinhos, operários, trabalhadores rurais, percorreram os cerca de três quilómetros até ao cemitério, onde encomendaram o defunto. 

Dizem que foi o maior funeral de sempre em toda a freguesia e concelho. Quem participou no acto, há 36 anos, ainda hoje exclama com emoção: ”Nunca rezei com tanta fé e tanta força como nesse dia pela estrada abaixo, Eu e toda a gente”.

    Por certo que ninguém perguntar-me-á o porquê desta reminiscência, junto à sepultura da octogenária, minha vizinha mais próxima. Já imaginaram, talvez. Se não, eu desabafo: a história tem nomes, números e datas. E o defunto de há 36 anos era precisamente o marido daquela que vim acompanhar neste último sábado de contrastes, de emoções e de sérias interrogações.

         Perdoem-me esta cedência à fragilidade emocional, mas devo dizer que foi este o momento mais forte do dia. Da semana. E, em parte, de toda a vida. Pelas profundas e inquietantes incógnitas que nos interpelam, entre as quais qual o efectivo conteúdo funcional de muitas exéquias, sobretudo as de marcada sumptuosidade faraónica?!... Tente cada qual segurar uma candeia acesa sobre “a mina escura e funda… o  trem da minha vida”,  na voz da imortal Elis Regina.

         Mas, tão forte quanto a mensagem interrogante, é a expressão de um povo que soube ultrapassar os mitos e a suposta sacralidade de certos ritos com que instituições retrógradas teimam em manietar o legítimo curso da inteligência humana…

         17.Mai.21

         Martins Júnior

sábado, 15 de maio de 2021

CLÁUDIA & NUNO

                                                                 


Maio é Mar

de pétalas infinitas

 

Em 15 – Coração de Maio

todas as rosas se chamam Cláudia

e todos os cravos têm nome de Nuno

 

Em 15 – Coração de Maio

rosas e cravos de todo o mundo

desaguam em delta

desfolhando o Amor

abrindo corolas

de um Planeta Maior

 

15.Mai.21

Martins Júnior

quinta-feira, 13 de maio de 2021

HOMENAGEM OU PERMUTA?

                                                                             


         Os extremos tocam-se: princípio genérico, extensivo tanto à  geometria concêntrica elementar como à circulatura global da condição humana. Não precisamos de consultar os teóricos da filo-sociologia para nos apercebermos da conjunção astral que envolve inelutavelmente a vida-em-sociedade. Basta abrir os olhos e ver.

Vimo-lo esta semana, prenhe de emoções tamanhas que, com maior ou menor intensidade, arrastaram as multidões. Os fenómenos de comoção gregária aí estão, em locais e motivações diversas, mas possivelmente até com os mesmos agentes concretos. Não me admiraria nada se me viessem dizer que, entre os peregrinos de Fátima,  lá fosse alguém queimar uma vela (ou um molhe delas) pela vitória verde-branca do  clube favorito no campeonato nacional.

E se levarem a mal esta tão contraditória (talvez escandalosa!) aproximação, permitam-me partilhar o que os meus olhos viram na Capela das Promessas da Senhora da Aparecida, no Rio de Janeiro, em 1972: entre as promíscuas promessas que os peregrinos lá deixaram, dava nas vista uma enorme cruz de madeira (mais de 6 metros, seguramente) aproximei-me e, para meu espanto, li um bilhete grosseiro que dizia assim: “Eu carreguei aos ombros este cruzeiro desde (lá dizia a região) se o Brasil ganhasse a copa do mundo”. Nunca se sabe o que vai no coração e na mente de cada um!

Aqui reside a minha grande incógnita perante os milhares de crentes que têm a ousadia blasfema de apregoar: “Eu vou lá (seja qual o santuário), vou lá pagar uma promessa”. Dando de barato e sem sequer questionar se Deus precisa disso – cruzeiro, vela, archote, dinheiro – apenas me toca as entranhas e as revolve pensar que aquele gesto, aquela fé aparente deixa de ser homenagem pura e nua, para transformar-se num acto de permuta, mais explicitamente, numa expressão de requintado egoísmo. “Toma lá, Senhor, Senhora, porque me fizeste um favor, uma graça, um sucesso”. Por outras palavras: “Se não me fizesses o que eu queria, eu não estaria aqui, no teu santuário”.

 Confrange-me - e muito mais ao Senhor ou à Senhora – que se destrua a homenagem, o apreço, a estima e apenas sobressaia o mercado de troca: “Dou-te se me deres”!

Preferiria ficar por aqui e deixar tudo o mais à reflexão de cada um. No entanto, não resisto a confidenciar publicamente a minha oração à Senhora, quer se chame de Fátima, quer se alcunhe dos Prazeres, dos Remédios ou do Calhau:

“Senhora, admiro-te por aquilo que és e não por aquilo que me dás. A tua coerência, a tua coragem, a tua sensibilidade de Mulher e Mãe! E mesmo que nada me dês, gosto de ti e quero escutar o teu conselho”.

13.Mai.21

Martins Júnior

terça-feira, 11 de maio de 2021

LEÃO MARQUÊS DE PORTUGAL E ELREI “FOOT” DELÍRIO DOS PORTUGUESES

                                                                  


    Venham daí filósofos e sábios, acordem sociólogos e psicanalistas, ergam altares salomónicos os incuráveis pedéfilos, desde os de sola rapada aos sardanapalos da corte adoradores irrecuperáveis dos pés e chuteiras, venham e digam que secretas pulsões removem as placas tectónicas de um povo convulso, que esquece as dores e mazelas, o covid e a fome, as moratórias e as falências – para fundir-se em bebedeiras de arroubos lunares de levitação hipnótica e transformam um país num imenso manicómio de visionários sem freio!!!

Desde manhã, tarde e noite, ligar o televisor ou abrir a telefonia, não se achava maneira de fugir ao tsunami imparável de uma arena colossal, onde vermelhos e pretos, verdes e amarelos e, por osmose, azuis e laranjas punham em delírio os “heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal”. É, sem dúvida, o espelho de um povo despido de si mesmo.

Refiro-me aqui, não apenas ao “Leão Marquês” que hoje, em alucinante redondel, destrona o Marquês Leão de Pombal”, mas a todo o fenómeno foot, que toma conta dos neurónios, enfurece as multidões, mercadeja nas feiras francas os escravos milionários, esconde crimes e corrupções. Pelo muito apreço que tributo ao saudável desenvolvimento atlético do cidadão, causa-me um asco insuportável constatar que, desde a antiguidade clássica, um tão nobre instrumento de compleição holística – Anima sana in Corpore sano – se tenha abastardado em degradantes espectáculos de gladiadores dentro do campo e numa horda de quase bárbaros fora dele, completamente acéfalos, escoltados e “algemados” pelas forças-da-ordem pública.

Lá vão eles (ontem uns, hoje estes, amanhã aqueloutros) entronizados ambulantes, os heróis para os ‘patriota-foot’. Para os que fazem da bola uma religião, lá vão eles, os santos mártires da pátria, sob o pálio do céu vasto. E para os doentes crónicos do relvado, lá vão os milagreiros da vacina tutelar.

Pelo que vi nas redes sociais, o Me-too da verde Laurissilva vestiu todo o país: o mar é verde, a terra é verde, o vento é verde e até o padre da Calheta passará a usar esverdeados paramentos e – brade aos céus! - vai mandar pintar de verde as rubras bandeiras do Espírito Santo!... É o mito que corre.

E sem prejuízo da justificada euforia dos ganhadores, vejo-me eu próprio hoje também rendido ao “Teo-Foot”. Vencido, mas não convencido! Vencido pela notícia, mas convencido de que o Desporto deve ser mais, muito mais, outra fasquia e outro horizonte que não a alucinação cega e surda, a corrupção encapotada, o paraíso tóxico de milhões perdulariamente atirados aos anfíbios profissionais que gravitam à mesa dos orçamentos transacionados do Banco Foot.

 

11.Mai.21

Martins Júnior   

domingo, 9 de maio de 2021

CADERNETA DE ANTIGOS ORIGINAIS E CROMOS MODERNOS – UM PASSATEMPO SEMANAL

                                                                               


         Entre uma semana e outra, há sempre um intermezzo reparador de energia e sabor múltiplo que, umas vezes, é pedra dura atirada à mornaça do lago, outras vezes é passatempo de caderneta lúdica e álbum de recordações. Hoje, dediquei-me a esta segunda modalidade. E fui encontrá-la num texto bimilenar do LIVRO, que me acompanha em cada domingo. Trata-se de um super-passatempo que mexe com 20 séculos de história. Gostaria de apresentá-lo no mesmo estilo infantil com que as crianças coleccionam cromos e paisagens.

ORIGINAL 1 :

Há um Comandante de Companhia (na altura, com cem militares, por isso designa-se por Centurião), pagão e colonialista, porque representante do Império Romano na zona portuária de Jope, Israel. Do lado oposto, há um agitador pacífico, chamado Pedro, proletário, pescador de profissão, mas dotado de palavra e convicção, o qual conseguia concitar a simpatia de muitas centenas, milhares de adeptos do Nazareno. A cena passa-se no século I da nossa era. Pedro recebe um ordenança de Cornélio (assim se chamava o Chefe) com esta mensagem: “O meu Comandante Cornélio quer receber-te em sua casa”. Pedro hesita, certamente pede o parecer dos Doze – e resolutamente acede ao pedido.

CROMO I:

Sou daquele tempo (e ainda subsistem resquícios desse tempo) em que o dogmatismo eclesiástico proibia quaisquer contactos e/ou “contaminações” com quem quer que fosse de outro credo, de outra seita ou de outro pensamento alternativo considerado herético. A Inquisição ainda fumegava.

ORIGINAL 2:

“Cornélio vê Pedro aproximar-se e, emocionado, caindo-lhe aos pés, prostra-se de joelhos diante do pescador apóstolo. Mas Pedro segura-o pelos braços e diz-lhe: “Que é isso? Levanta-te, porque eu sou um simples homem como tu” (Actos, 10, 24 sgs.).

CROMO 2:

 Será que a vista humana cataratizou-se e com tal gravame que já esqueceu os tronos papais, carregados por homens possantes, com o auto-proclamado Sucessor de Pedro passeando-se, pavoneando-se no cadeiral cravejado de joias, enquanto dividia o vento em quatro partes de repetidas bênçãos às multidões crédulas em seu redor ?!... O Papa Francisco, Não!!!... Mas os cardeais, a púrpura, a cruz peitoral em banho de outro, o aristocrático anel, o grotesco barrete de seda, a mais fina?!... E daí, os herdeiros-suporte e candidatos, sediados nos paços episcopais, nas nunciaturas ditas apostólicas e subalternas?!...  Ridículos cromos e não menos ridículos comparsas de uma Ópera bufa!... É só comparar com o original.

ORIGINAL 3 :

Ao sair da casa do pagão Cornélio, Pedro presta ao povo ali presente uma espantosa declaração: “Acabo de descobrir e reconheço agora esta grande verdade: Deus não olha à categoria ou à posição das pessoas. Em qualquer nação, em qualquer lugarejo, quem pratica o que é justo é aceite por Ele”. (Actos,34 sgs.). Ponto final!

CROMO 3:

É o mais crucial e poder-se-á desenhá-lo com uma pesada incógnita: No meio de tanto devocionismo e teatralidade sacra, teremos nós ouvido da boca dos julgadores oficiais e oficiosos esta declaração: O único passaporte para sermos aceites por Deus e entrar no seu  Reino é só este: Ser Justo???!!! Tudo o mais é paisagem acessória e, por vezes, prejudicial.

Deixo à consideração dos meus acompanhantes o desenvolvimento desta enorme conclusão. Não a minha, mas a de Pedro - o original de há dois mil anos.

No entanto, ficam aqui alguns tópicos tremendos: Deus não vai perguntar qual a posição social que temos, ou qual a religião ou quais as fés e as missas e as preces e as capas e os incensos. Só isto: Tens sido justo em palavras e obras?... Isso basta!

No Dia da Europa, viesse um arcanjo extraterrestre hoje ao Porto e interpelasse, com voz tonitruante, os governantes e dominadores europeus ali reunidos: Estais a cumprir o Projecto Social Europeu? Quanto à justiça distributiva das verbas, quanto à educação, ao ambiente, à saúde, à ciência, ao emprego?!

Como não vem o arcanjo, sejamos nós a insistir, a proclamar nas casas ou nas ruas o Artigo Único de uma Constituição Planetária: Enquanto não houver justiça não haverá Paz, não haverá Religião, não haverá Deus no mundo!!!

Regressemos aos originais e esqueçamos os cromos.

 

09.Mai.21

Martins Júnior   

sexta-feira, 7 de maio de 2021

DE 8 de MAIO de 1440 a 8 de MAIO de 2021 – NAVEGANDO NA NAU “SÃO LOURENÇO”

                                                                 


Da fresta verde laurissilva  entre tis e folhados

Vejo-lhe assomar a proa mordida sacudida

Por seiscentos oceanos-anos de vencida

 

Ei-la a Nau São Lourenço, a da Travessa e da Tormenta,

Rasgando o ventre da encosta lenta

Roçando a quilha

Desde os baixios do cais

Até ao mais abraçado vale da ilha

 

Na amurada içaram velas, tangeram alaúdes

Dizem também que vieram escravos no porão

As canções juntaram-nas às fontes e açudes

Mas o sangue de escravos não!

 

Não foram agronautas, mesmo curvados ao chão,

Vergados à enxada

Escavando da terra o magro pão

Nunca venderam, não, à fé nem à coroa danada

A alma livre de quem não teme o Mar

 

Longa a viagem, dobrados os tornados

Ficaram mastros partidos nas arribas

Remos e braços decepados

Na voragem da montanha

E na crueza medonha, estirpe estranha

Dos donos de uma selva-ilha da velha cidade

 

 

Mas ei-la de novo, proa ao vento norte

Quanto mais duro, mais forte

Faz a nossa gente

Ficou-nos o leme

O astrolábio e a torre de menagem

Além-terra e aquém-mar

E enquanto houver viagem

E horizontes a alcançar

Argonautas agronautas supernautas

Reergamos os mastros, abramos as velas

Por Machico – 8 de Maio – de outras eras

Por um Povo nobre e audaz

Herdeiro de Tristão Vaz

 

7/ 8.Maio.21 – Dia do Concelho de Machico

Martins Júnior