terça-feira, 29 de junho de 2021

ANTÓNIO ARAGÃO E RIBEIRA SECA – DESTINOS CRUZADOS

                                                                       


          Escrever  em cima da água corrente ou ‘como quem canta ao vento que passa’ – é o que se me ocorre hoje perante a notícia de que em São Vicente da Madeira ficará jacente e cada vez mais emergente   o espólio do génio criador chamado António Aragão.

         A mágoa maior é a morte, não a física e visível, mas o universo invisível, intocável, a que comummente se chama património imaterial, que alguém viveu, sofreu, gozou, galvanizou – e deixou! A força semântica do “DEIXOU”  só ganha verdade e autenticidade se houver quem queira receber e segurar o legado transmitido.  No caso em apreço, urge dizer: “Até que enfim, após décadas de recusas, reticências e ostracizações governamentais face à produção multiforme de António Aragão, a sua obra tem o merecido trono no “Solar da Ribeira Seca”, na dita freguesia de São Vicente .

         Neste breve texto quero apenas aproximar a toponímia “Ribeira Seca – Solar”, em São Vicente,  de um outro topónimo “Ribeira Seca”, em Machico.

              Por muito encomiástica que  signifique a homenagem a António Aragão, em São Vicente, a verdade é que o meio eco-cultural popular que António Aragão  descobriu foi a Ribeira  Seca, de Machico. Recordo-me do esforço magnânimo de António Aragão e Artur Andrade  na pesquisa e gravação in loco das tradições e rimances populares, fruto da oralidade secular, os quais já estão reproduzidos no melhor disco até hoje produzido  sobre a genuinidade do cantar madeirense.

Parabéns aos promotores e aos artífices desta justa e bem merecida homenagem.ao enorme, gigante António Aragão!

 

29.Jun.21

Martins Júnior

 

 

  

domingo, 27 de junho de 2021

JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E IGUALDADE DE OPORTUNIDADES – UM IMPERATIVO EVANGÉLICO

                                                                              


O palco é rectangular, igual para todos. A bola - redonda, igual para todos. As mesmas medidas, as mesmas balizas, as mesmas marcas de grande penalidade, o mesmo relvado, os mesmos juízes, igualitários para ambas as partes, o mesmo ‘placard’ insensível e austero, igual para todos. Enfim, é o que se chama e personifica o nobre e justo princípio da “Igualdade de Oportunidades”.

Trago esta aproximação, aparentemente imprópria, para ilustrar, hoje precisamente, a mensagem que o Grande LIVRO pretende comunicar a todos os estádios da história humana. Em Sevilha, também poderá ler-se, hoje mesmo, e traduzir-se essa mensagem, de um lado tão cristalina e lógica, como tão longe de corporizar-se no campo das sociedades de todos os tempos.

IGUALDADE DE OPORTUNIDADES!

Limitar-me-ei a transcrição dos textos, deixando o volume das conclusões à consideração de quem os ler:

“O que sobra na vossa mesa é o que falta na mesa de outros…Fizestes bem em colaborar nessa campanha de solidariedade, porque um dia podem inverter-se as circunstâncias, isto é, quando sobrar aos outros e vos faltar a vós… Não se vos exige reduzir-vos à miséria para aliviar os outros, mas o objectivo necessário é este: a IGUALDADE!... Assim vaticina a Escritura: Àquele que muito colheu e muito ganhou, nada lhe sobejou. E àquele que pouco colheu, nada lhe faltou” (Paulo aos Coríntios, II, 8, 7.9.13-15).

É de uma latitude incomensurável este elogio que Paulo de Tarso faz aos cidadãos de Corinto. Estaríamos no melhor de todos os mundos: ninguém teria necessidade de olhar as mãos alheias para matar a fome. Viveriam todos do seu trabalho, do seu talento, do seu esforço acumulado e só em caso de anomalias pontuais agiriam as estruturas sociais para normalizar a comunidade. A este propósito, convém citar o nosso romancista, dramaturgo e observador crítico Almeida Garrett, nas Viagens na Minha Terra, no longínquo ano de 1846:

“Eu pergunto aos economistas, aos políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”. Responde Viriato Soromenho Marques: “Em 2014, um super-rico correspondia a  41.760.000 infelizes”.

TODOS DIFERENTES E TODOS IGUAIS!

A Igualdade, porém, não se alcança sem lhe integrarmos o seu complemento indissociável: a Diferença. Porque é essa a condição humana. Nem se esgota no pão, na mesa, no salário. Igualdade é árvore de múltiplos e variegados troncos, de poli-dimensionados ramos. De género, de côr, de cultura, de crença, de clima, de idade. É precisamente no trato da Diferença que emerge o brilho e agiganta a grandeza da Igualdade.

Sem mais delongas, o nosso Líder e Mestre revela-nos à evidência a Unidade na Diversidade, condição sine qua non para a construção de uma sociedade genuinamente igualitária. Analisemos Marcos, 5, 21-43:

Em presença simultânea, como diante de um júri solene, três estatutos, intrínseca e extrinsecamente, distintos: Primeiro, um Chefe da Sinagoga, chamado Jairo, pertencente à elite judaica. Segundo, uma mulher, subalternizada na cotação social da época e, para cúmulo, indigna de permanecer entre a multidão por uma incurável disfunção hemorrágica; Terceiro, uma criança de doze anos no leito da morte.

O popular Nazareno (popular, porque colado e comprometido com o povo da sua terra, marginalizado pela Sinagoga) teria uma oportunidade de ouro para provar a sua oposição ao autoritário poder judaico, consignado em Jairo. Quanto à mulher, por óbvias restrições sanitárias, poderia ‘esquecê-la’ e nisso ganharia a anuência geral. A criança, de doze anos, entraria no rol dos “párvulos”, já mortos. Na opinião dos circunstantes, “não valeria a pena perder tempo com ela”.

No entanto e contra todas as previsões comportamentais, o Mestre tratou-os a todos por igual: ao Chefe Jairo serenou-lhe o ânimo, à mulher restituiu-lhe a saúde e à menina restaurou-lhe a vida. Todos diferentes e todos iguais! Na Diversidade de estatutos, de géneros e de níveis etários, manteve-se a mesma Igualdade de abordagem e satisfação comum.

  Por aqui me quedo na letra, mas muito mais longe vai o paralelo entre o LIVRO de hoje e os regimes que vigoram nas famílias e nos indivíduos, nas nações e nas instituições, inclusive no Império da(s) Igreja(s).

É da Escritura: Digam o que disserem, perante Deus, uma só coisa é necessária, a Igualdade! De direitos e deveres! Em síntese: Igualdade de Oportunidades!

 

27.Jun.21

Martins Júnior

sexta-feira, 25 de junho de 2021

ENTRE OS CIPRESTES, O LUAR DE JUNHO…

                                                                     


 

Vi-o descer, em cordas, àquela ‘enxerga’ sem retorno. Desciam com ele também os meus olhos baços.

Ele não era tão jovem para viver nem tão velho para morrer. Não me contive, então,  que não dissesse mais por dentro que por fora: Que mágoa esta!... que nos deixa gelados… que nos aguça a revolta… que nos sepulta e nos emerge na mesma hora!... Que mágoa a deste corpo, quando recém-nascido,  inundou de alegria a nossa mãe… deste corpo que reinventou  caminhos nunca antes desenhados… que lutou contra ventos e marés… que se desfez e refez em tsunamis de amor…  e agora desce impotente, ignoto entre os anónimos de cada instante…

Vim para casa e abri, ao acaso, as folhas soltas dos herdeiros de Juno. Logo à porta Camilo Castelo Branco (1-1890), no primeiro corredor Franz Kafka (3-1924). Na alcova das parturientes sinto os vagidos Garcia Lorca (5-1898), as pupilas coloridas de Gauguin (7-1848) e o sonho febril de Charles Dickens (9-1812). Lado a lado (os séculos são dias…) enquanto agonizava abandonado o génio de Camões (10-1580), outro génio nascia, o de Pessoa (13-1888) e em 15-1970 pintava a última tela Almada Negreiros. Entre os herdeiros de Juno, surgia Adam Smidt (16-1723) e Saramago entrava no fatídico ‘Convento das Memórias’ (18-2010). Muito antes, mas também filhos de Juno, Blaise Pascal trazia da vulva da mãe a promessa de Les Pensées  (19-1623) e na noite da servidão brilhava no berço  de Nuno Álvares Pereira a armadura da libertação (24-1360). Reservadas para coroa real dos dias de Junho estavam em lista de espera os horizontes matinais de George Orwell (25-1903), de Jean Jacques Rousseau (28-1712) e do Petit Prince Antoine de Saint-Exupéry (29-1900). Desde tempos imemoriais, António de Lisboa, João Baptista e Pedro e Paulo emolduraram a silhueta do mês sexto!

Enquanto o fosso inerte engolia o corpo do meu amigo – nem tão jovem nem tão velho – inundava-me até aos ossos o oceano cinzento de todos os corpos que habitaram a mansão de Junho.

Soprei então as cinzas seculares e um braseiro intenso iluminou-me a fronte, sacudiu-me todo. Da sarça ardente, como a do Monte Sinai, saía a voz de todos os tempos: “Morrer é só deixar de ser visto”.

A voz tornou-se grito em linha recta, atou-me à cintura e catapultou-me ao infinito, envolto nesta mortalha de linho doce: Deixa que caia a luva do teu corpo, porque mais alto fica a epopeia das tuas mãos!

 

         25.Jun.21

         Martins Júnior      

 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

O MÊS DOS TRÊS “SSS” – SANTOS, SÉS E SARDINHA ASSADA

                                                                         


Grande poeta é o povo, já diz o velho rifão. E eu acrescento: Grande beato e Grande pândego é o povo!

         Diverte-nos até à náusea  o exercício de subir até ao pico alto  destes dias monótonos, alongar a vista e monitorizar os impulsos deste formigueiro ambulante em que todos nós também estamos metidos como voluntários-à-força.

         Com ou sem pandemia, o povo reedita a trilogia clássica da “velha senhora”, os três famosos “FFF” – Futebol, Fátima e Fado – tão colados aos genes do ‘puro sangue lusitano’. Com o macroclima pandémico, porém, ganharam novas estirpes e outras variantes, transmutadas que estão para novas formas, revistas e actualizadas: os “SSS”.

         É da ironia dos tempos modernos que eles nos falam. E de que me ocupo também neste entalho. Começando pelos “Santos”, está bem patente que eles mudaram de nome, de farda e de casa. Hoje, os carismáticos, os heróis, os mártires (alguns até já lhes aconteceu caírem mortos no próprio local de trabalho) numa palavra, os novos ‘santos’ já não estão nos altares, mudos, extáticos, amarrados, à espera de jaculatórias e óbolos pios. Não, hoje eles correm, saltam como saltimbancos, agridem, vociferam e, em vez de orações, rebentam-lhes em cima as paranoias dos crentes, as imprecações

e as ameaças mais absurdas a-céu-aberto. Em vez de túnicas, enfiam calções nas pernas nuas suportadas por chuteiras e pitões. A casa deles é uma outra, de linhas majestosas, aerodinâmicas. As novas sés catedrais e as novas basílicas estão nos estádios de futebol. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”…

         Os velhos Santos também têm assento na “faena”  agitada do grande teatro do mundo. Mas ficam nos bastidores. Quando lhes sai o nome da cartola do “compère”, eles não entram nem falam. Quem entra às cambalhotas e fala e canta e ri até à exaustão é a ‘rainha santa’, a sardinha, é o fogareiro, é o garrafão e… Viv’ó Santantónio, viv’ó San João e venha  o San Pedro para a reinação!... O cómico de toda esta rodada pegada é que nenhum deles aparece e deles ninguém fala. Quem exalta a eloquência de António de Lisboa, quem releva a verticalidade austera do Baptista ou quem se comove com a auto-crítica e o humanismo do Pescador da Galileia?!

          No ADN da nossa civilização cristã e ocidental, a beatice fica por sacralizar se não chegar a pândega a acolitá-la. E logo salta o código da boa vizinhança: a beatice beatifica a pândega.

         Sem pretensões de moralizar os costumes, está visto que o povo precisa de episódios pretextuais para divertir-se. E lá vêm os Santos. Ai que este ano não houve Santo António, ai que não há São João e o São Pedro – gemem e protestam os arraialeiros. Pois bem, ouso comentar assim essas lamúrias: Tal como os foliões estão-se borrifando para a identidade factual dos Santos, assim também os Santos estão-se borrifando para os arraiais que abusivamente se apropriam dos seus nomes.

         Nesta linha de pensamento, acho melhor que se autonomizem essas festas e se tratem pelo seu verdeiro nome: Festa dos bairros de Lisboa, Festa da sardinha assada ou dos martelinhos, Festa das gentes do mar ou afins. Ganharia mais músculo e autenticidade cada festival em seu lugar

         Em nota de rodapé, permitam-me associar a estas efemérides a evocação de São Tiago Menor, Patrono do Funchal. Mais genuínas ficariam  as comemorações seculares, ora em curso, se não fossem consignadas apenas ao hipotético ‘milagre’ contra a epidemia que assolou a capital madeirense no século XVI.  Assinalando com elevada consideração os textos já publicados, entendo que a personalidade de São Tiago Menor e a sua doutrina social transcendem incomensuravelmente os formulários estereotipados das ditas comemorações.        

              

23.Jun.21

Martins Júnior

segunda-feira, 21 de junho de 2021

CAPITAL REGIONAL DA CULTURA

                                                                       




 

Seja qual a sua extensão, à Cultura pode bem acoplar-se o velho brocardo latino – Bonum est diffusivum sui – o Bem comunica-se e difunde-se por si próprio, com em sistema de vasos comunicantes.  Todos o sentem e raros são os que não dão pela corrente energética quando ela passa à sua beira. É assim o Bem, é assim a Cultura.

Vem esta breve introdução a propósito de um movimento circular, auto-reprodutivo e  contagiante que em terras de Tristão Vaz cresce de dia para dia. Embora sem preocupações inaugurais e, por vezes, sem a merecida atenção dos agentes da comunicação regional, o certo é que têm sido consistentes os passos dados ao nível da Cultura, nos seus mais diversificados cambiantes. Desde a música à poesia, desde o desporto  ao teatro e à estatuária, desde a inspiração genuinamente popular à construção mais elaborada por parte das entidades locais, é de uma evidência indesmentível a proliferação de iniciativas, monografias, cerâmicas e azulejarias, quer no domínio da literatura infanto-juvenil, quer no âmbito da investigação erudita, de que são paradigma os “Anais do Município da Antiga Vila de Machico” de José António de Almada,  e  "Profeta – Um lobo marinho explorador“, da professora Ana Paula Spínola, recentemente editados pela Câmara Municipal.

Dir-se-ia que o ingrato terreno da pandemia não impediu, pelo contrário, fez emergir em Machico a sua ancestral vocação cultural, na esteira do grande “Camões Pequeno” Francisco Álvares de Nóbrega que, há mais de dois séculos, mesmo algemado nas masmorras do Limoeiro, sob o ferrete da Inquisição, escreveu os melhores sonetos que chegaram aos nossos dias.

Por todo este rasto de luz, o concelho mais oriental da Madeira, com toda a justiça, exceptuando o Funchal, merece o honroso título de “Capital Regional da Cultura”.

A confirmar este roteiro valorativo da terra e do povo, perpassa na opinião púbica local que a Junta de Freguesia de Machico, para assinalar o Dia histórico do Achamento da Ilha, em 2 de Julho, prepara a reedição da obra em epígrafe, “AQUELE ESPESSO NEGRUME – MACHICO E MACHIM NA ALVORADA DA ILHA”.

Para o signatário deste ‘Senso&Consenso’ trata-se de um episódio reconfortante, um misto de juventude e de saudade, ao recordar que um punhado de jovens estudantes respondeu à minha proposta de investigarmos a obra de cronistas, historiadores, poetas e dramaturgos que se debruçaram sobre esse Dia e essa Epopeia do Desembarque de Tristão e Zargo na baía de Machico, em 2 de Julho de 1419.

Enquanto autarca da Junta de Freguesia, mesmo sem quaisquer apoios das entidades hierarquicamente superiores, conseguimos enfeixar num único volume excertos preciosos de Zurara, Francisco Alcoforado, João de Barros, Damião de Gois, Francisco Manuel de Melo, Jerónimo Dias Leite, Gaspar Frutuoso, Manuel Tomás, Henry Major, Medina de Vasconcelos, Álvares de Nóbrega, Reis Gomes.

Corria o ano de 1982. Não obstante os ventos contrários então reinantes, o barco da escrita onde navegava tão prestigiante ‘marinhagem’ (os autores citados) chegou aos herdeiros dos Descobridores.

Parabéns antecipados à Junta de Freguesia de Machico, na pessoa de Alberto Olim e seu prestimoso elenco autárquico,  pela iniciativa que esperamos ver concretizada, pelo culto de uma tradição que vem de longe e, sobretudo, pelo viço jovem de fazer reviver, 40 anos volvidos, a vitalidade criadora de um povo.

Aos jovens de ontem, hoje cidadãos adultos, obreiros de um Machico Novo, o abraço de um reencontro promissor nos horizontes sempre renovados. Transcrevo, com redobrado entusiasmo, a mensagem escrita há quatro décadas:

“Que as páginas de antanho sejam caminhos de hoje! Que as letras de ontem sejam braços de agora, transportados em nosso corpo! Também somos chamados a escrever no chão positivo da vida a História do nosso querido Machico”!

 

21.Jun.21

Martins Júnior     

   

sábado, 19 de junho de 2021

ENTRE UM MAR DE DÚVIDAS E O PROMONTÓRIO DA CERTEZA

                                                                         


           Em cada semana mergulhamos sempre no refluxo das marés vivas que umas vezes nos remexem pedras e areias tidas como assentes, outras vezes despertam ânsias de desbravar mares ignotos. Tudo se passa no domínio recôndito do nosso consciente.

         Para ilustrar o que acabo de enunciar, chegam-nos às mãos as esclarecedoras páginas do LIVRO, lido e comentado largamente hoje e amanhã. Basta compulsar o relato de Marcos, capítulo IV para nos darmos conta das correntes e contracorrentes que se entrecruzam dentro de nós.

         Atravessavam o Mar de Tiberíades quando se soltaram os furores da tempestade. Os Doze gritavam e protestavam contra o seu Mestre que dormia à popa da lancha: “Estamos a afogar-nos e Tu ficas para aí a dormir?”. Imperou então a magia do Nazareno que mandou calar os ventos e amainar as ondas revoltas. Portento! Fenómeno! Mistério! “Quem será este homem a quem os ventos e os mares obedecem?”

         Após a bonança, sobra para nós um mar de incertezas. O Universo rege-se por leis naturais, as do Criador, que incluem catástrofes, maremotos, monstruosas aluviões que roubam vidas inocentes. Terá a Divindade o poder executivo de fazer suster tragédias tamanhas?... De ‘emendar os erros de fábrica’ da Criação?... É neste nódulo que confluem pareceres e definições de teólogos e escrituristas na análise intrínseca daquilo que designamos por “milagre”. Não serei eu a decifrá-lo, mas a grande dúvida emerge, imediata, enérgica, unívoca: “Então por que não exerce hoje o Nazareno (a Divindade) o seu potencial salvífico para evitar o genocídio que os elementos naturais provocam ao longo da história?!...

Enquanto tardam as respostas, vão engrossando os cortejos quase supersticiosos de ‘promessas’ e respectivos pagamentos, os quais em pouco diferem das sortelhas e sortilégios que os crentes vão buscar às bancas dos aprendizes de feiticeiro…

Amainada a tempestade, o Nazareno dá-nos um certeza, quando verbera nos Doze a falência de um valor essencial àquela viagem: “Qual a razão de tanto medo?... Onde está a vossa Fé?”.

Chegámos ao promontório de uma certeza. Por muitos e fáceis cambiantes com que possa apresentar-se o fenómeno Fé, há um sublinhado assertivo que o Mestre assinala nos seus prodígios: “Foi a tua Fé que te salvou!”. Como quem reconhece os “direitos de autor” e os devolve ao seu legítimo dono, o Mestre insiste que nos conteúdos da Fé entra o imprescindível contributo do crente - a sua força anímica, a sua coragem inquebrável, o seu empenho sem tréguas. Numa palavra, todo o seu Ser!

Nas jornadas que ora decorrem no Funchal, sob o genérico “Festival Mental”, descobrem-se sementes de Esperança, vitaminas de Personalidade,   células de uma Fé holística que nos remete para o pensamento do denominado “Pai da Europa”,  São Bento, desde o século VI: “Primeiro, faz tudo como se tudo dependesse de ti. Depois, só depois, espera tudo como se tudo dependesse de Deus”!

 

19.Jun.21

Martins Júnior

quinta-feira, 17 de junho de 2021

NO CORAÇÃO DE JUNHO VOLTOU A BATER O CORAÇÃO DO MUNDO!

                                       

                                  


         Foi preciso chegar ao coração do mês-coração-do-ano para encontrar aí no meio uma nesga de almofada onde reclinar o coração do mundo. Olhando em redor, o que mais se tem visto e sentido é uma quase paralisia geral que traz o indivíduo e a sociedade tolhidos, sufocados, numa palavra, confinados.

         No entanto, algo de novo veio reanimar as artérias geladas do planeta, a começar pelo nosso próprio país. As recentes e felicitantes notícias que a UE nos trouxe através de Ursula von der Leyen fizeram pulsar o ânimo dos portugueses na reconstrução global que o nosso Plano de Recuperação e  Resiliência mereceu das instâncias europeias.

         Seria, porém, redutor ficarmo-nos apenas pelo “sol na nossa eira e chuva no nosso nabal”. Moramos numa planície mais vasta, redonda e de múltiplas e tão diversificadas latitudes. Nunca estaremos bem se outros estiverem mal. Por isso, o que se passou anteontem em Genebra não pode deixar-nos indiferentes. Se os estertores lunáticos de Donald Trump  contra tudo e contra todos abalaram-nos até à medula dos ossos, na mesma e maior medida a Cimeira entre  Biden e Putin tiveram a força de um desfibrilhador taumatúrgico a relançar um novo e saudável ritmo para o coração da humanidade.

         Não é este o lugar para dissecar os contornos, os gestos, os silêncios ou as reticências deste encontro histórico. Nem tão-pouco proclamarei loas super-optimistas acerca do mesmo, porque o futuro, sobretudo, em política, é feito mais de dúvidas que de certezas. Todavia, dois incisivos  indicadores sinalizaram as mais de três horas de diálogo.

O primeiro, este precisamente, bem expresso na afirmação de Joe Biden: “Não há substituto para o diálogo frente-a-frente”. Tão diferente e abissal do que nos fora dado pelo anterior neurótico, com punhos tribais, ameaças, espuma pelos maxilares abaixo… Justamente pelo diálogo, os dois representantes, Biden e Putin,  deixaram claros os seus propósitos, sem hibridismos cinzentos, como de resto demonstraram as duas declarações finais, em separado.

O segundo, a nova ponte entre EU e EUA. Basta compulsar as tentativas – umas disfarçadas, outras despudoradas – de fragmentar a unidade dos 27, após a instigação americana no processo do Brexit. Agora, porém, com Joe Biden, deixará de pesar o monstro todo-poderoso que ameaçava minar os alicerces de uma  Europa.Unida.

 Finalmente, como cereja em cima do bolo, a revelação, hoje difundida pelos órgãos de comunicação de todo o mundo: O Senado norte-americano aprovou  a data de 19 de Junho como  novo feriado nacional, em memória do 19 de Junho de 1865, o Juneteenth, no Texas,  que culminou todas as intervenções do presidente Abraham Lincol  para considerar homens e mulheres livres os escravos afro-americanos.

No mundo conturbado e soturno em que vivemos, o mês de Junho, a meio do ano 2021, trouxe no coração, entre 15 e 16, uma nesga de luar e, talvez, a alvorada de um Dia Novo – também para nós, ilhéus. Saibamos ler a mensagem desta hora, que dela bem precisamos!

 

17.Jun.21

Martins Júnior


terça-feira, 15 de junho de 2021

IRONIAS E SÍNTESES DO MUNDO DESTE SÉCULO “PAN (EM) ET CIRCENSES”

 


PAN (DEMIA) E JOGOS

 


Assim vai o mundo.

Aos antigos, ao menos, davam pão.

Hoje contentamo-nos com pan (demia) e, à falta de pão, sobram-nos os euro-jogos.

Quem quer e quem ousa emergir do hibridismo pantanoso e divertido a que nos condenaram os deuses próximos que nos comem ao almoço, jantar e ceia? …

         15.Jun.21

         Martins Júnior

domingo, 13 de junho de 2021

PREVISÕES METEOROLÓGICAS PARA UMA ESTRANHA ÁRVORE

                                                                               


     

Início de uma semana marcada pelo olhar de um vidente, biólogo e agricultor de terras por descobrir. Como habitualmente, fico sempre atento ao LIVRO que, desta feita, vem em Marcos, capítulo IV.

         “A que hei-de comparar o meu Reino? Tão simples como isto: um grão de mostarda, a mais pequena de todas as sementes que a terra dá, mas em crescendo torna-se a árvores maior do jardim, ornada de ramos tão amplos e generosos que vêm fazer-lhe ninho todos os pássaros que há em seu redor”.

         Faço um  imperativo silêncio introspectivo, respiro profundamente e depois procuro com o meu olhar interior essa Árvore prendada pela previsão do seu plantador e cuidador omnipresente. Vou acompanhá-lo durante toda a semana e pôr-lhe-ei questões inadiáveis, incontornáveis, porque são tantas as árvores espalhadas no jardim da história, tantas que dificilmente lobrigo aquela à qual se referiu o Nazareno, nas suas previsões meteoro-sociológicas.

         Há-as opulentas de dorso troncudo, agarradas ao solo avaro. Há-as esguias e altaneiras, como misses dominadoras em desfile de figurinos botânicos, há-as pesadas de folhagem de oiro, oriundas de um filão aurífero escondido em terras de senhorio. E muitas outras há-as, tão sumptuosas que se confundem com o mármore das cúpulas e das colunatas barrocas, aonde nem os pássaros se aproximam com medo de serem devorados.

E onde está aquela, plantada e arroteada pelo seu Autor Primeiro?

 Árvore-Ecclesia, Assembleia-Reino, Igreja-em-Movimento Crescente! Em que solo? Com que fertilizantes? Com que folhas e flores e frutos?...

Iniciada com um punhado de trabalhadores, quase todos da beira-mar, regada com sangue de mártires, seiva libertadora de escravos que ganharam o estatuto inteiro de seres humanos, onde e como estará a Árvore?... Tertuliano, desde o século III, prognosticava: “O sangue de mártires é semente de cristãos”.

Mas a Árvore teve colonos que a enxertaram à medida dos seus desígnios de mercenários, colonizaram-na, leiloaram-na e até venderam-na a outros latifundiários e com estes fizeram pactos de condomínios reais, escandalosamente alheios ao seu Plantador original. Daí, proliferaram os troncos anafados, as folhas de metal sonoro em cofres bancários, os zimbórios de estilo judaico-cristão, enfim, estiolou-se a seiva interior de tal maneira que têm fadários redobrados aqueles que tentam restituir a Árvore ao seu húmus inicial.

Falo em linguagem parabólica, quase-gestual, tal como descreve o capítulo IV, supra-citado. E a minha inquietação consiste em descobrir o paradeiro da verdadeira Árvore, por entre as cópias fac-similadas que dela fizeram os homens e os crentes aceitaram sem qualquer esforço de discernimento. Evitando cair no pessimismo depressivo que assolou muitos dos que tentaram conscientemente alcançar as raízes da Árvore, também evitarei o tremendo equívoco de confundir a Igreja de Jesus Nazareno com os palácios pontificais, com os embaixadores vaticanos e seus apaniguados ou com a coreografia mundana do espectáculo pseudo-religioso.

Toda a semana fixarei a minha pesquisa e a minha inquietação  no único fertilizante prescrito pelo Autor e Cuidador da verdadeira Árvore: “Os adoradores autênticos do Meu Pai são aqueles que O adoram em espírito e verdade”. (Jo, cap.IV,23).         

 

13.Jun.21

Martins Júnior


sexta-feira, 11 de junho de 2021

“LIÇÕES DE ABISMO” - O CASO "MEDINA"

                                                                           


        Peço licença ao grande romancista brasileiro Gustavo Corção para adoptar um dos seus títulos mais famosos (1950) e colocá-lo como um escaldante talismã à entrada deste terramoto abissal que sacudiu o mundo civilizado, desde a consciência do cidadão comum até às mais sólidas estruturas dos Estados-Nações.

        O abalo é, por si só, tão estrondoso e demolidor que nem me dá tempo para análises cirúrgicas nem para julgamentos sumários. Apenas oito emoções transcritas em oito parágrafos.

 

1.     Foi preciso chegar ao século XXI para saber que, além dos algoritmos, dos cibernautas e ciberterroristas, há  "Estados" subterrâneos a minar, na mais ordenada e maquiavélica clandestinidade, toda a vida de um anónimo cidadão! Quem poderá viver descansado?...

 

2.      Contrariando o optimismo produtivo da burocracia de Max Weber, os factos demonstram que a democracia burocrata desumaniza e mata!

 

3.     O chefe nunca dorme, nunca pode dormir. Mais que expectante, ele veste dia e noite o animus de vigilante, umas vezes agarrando o microscópio, outras o telescópio de antecipação para a acção!

 

4.     ´De minimis non curat praetor’ – diziam os romanos que o pretor (comandante, presidente líder) não se ocupa de minudências aparentes. Só que há ‘coisas mínimas’ assolapadas e às quais fazemos vista grossa, mas no fim explodem e despedaçam o Império. Tolerância ‘Zero?!

 

5.     No mais fino pano cai a nódoa – ensina-nos a filosofia de costumes e adverte-nos o veredicto da história. O líder nunca se deve iludir, sobretudo se atinge o cume mais alto da montanha. Saiba que às grandes altitudes correspondem as mais fundas depressões marinhas. Tudo quanto de belo, sumptuosos e útil construiu durante uma vida  pode ruir num furtivo relâmpago oculto nas nuvens ou latente debaixo dos pés. ‘Noblesse oblige’.

 

6.     Por isso, nunca esqueça que há um carreira de tiro organizada frente à porta da própria casa, pronta a disparar quando menos espera. O jornalismo escondeu na aljava as granadas de mão, desde Janeiro até agora!...

 

7.     Os corvos e os abutres aguardam, desde o princípio do mundo, o cheiro a carne moribunda ou feita cadáver. Nada fazem no terreno, mas puxam a ferros o lucro nas secretarias…

 

8.     Para que tal jamais aconteça, só há uma estratégia: Vigilância e Cidadania! E isto é connosco.

 

11.Jun.21

Martins Júnior

quarta-feira, 9 de junho de 2021

TÃO PEQUENA PARA UM TÃO GRANDE IMPÉRIO: CENAS SOLTAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ENTRE MÃE E FILHA

                                                                                                                                              




  Não tarda muito e acordaremos todos em cima da campa rasa de Luís Vaz de Camões. Dão-lhe, ao 10 de Junho,  o épico e apoteótico  nome de “Dia de Portugal”.

         Quando os grandes acontecimentos passam no terreiro do nosso casebre e lhes seguimos as pegadas, eles perdem o brilho distante, parece que se desnudam e ficamos a descobrir-lhes as costuras e cicatrizes que de longe nos escapavam à vista desarmada. É o que desvendam, ontem, hoje e amanhã, os ilhéus herdeiros de Perestrelo, Zargo e Tristão Vaz. Basta um simples abrir e fechar de olhos para nos darmos conta do mito.

         Desde logo, o tremendo peso da Soberania materna no colo de uma frágil e esticada língua de terra-filha, perdida no oceano: os motores de guerra, as fardas luzidias nas medalhas acolchetadas ao peito, as bandeiras a secar ao sol da avenida, as botas cardadas estremecendo o asfalto, as trombetas “de Jericó”  em despique metálico com o troar dos canhões, enfim, uma tonelagem capaz de abalroar a minúscula canoa do Atlântico em volta.

         Mas a Ilha aguenta, porque  mais importante é o palanque – o ruído que rói a rolha da rádio, o olho mágico que se multiplica pelos campos e pelas cidades, pela metrópole e pelos continentes. É o palanque extático e é o palanque ambulante. Num, fisga a palavra patriótica, a de Portugal e, embrulhada pelo meio, a lamúria ‘matriótica’, a da Ilha. Oh, que emproado desfile de super-oradores, Cíceros e Demóstenes reincarnados! Oh que ribeiro de prantos infantis, hexa-seculares, enchendo as marés insulares! O outro palanque – o ambulante – comove e diverte ao mesmo tempo, tal o ridículo dos maldizentes de cá, agarrados por um cordão invisível, às ilhargas do Presidente Magno , dos Ministros médios e até das sotainas hierárquicas, tudo para que o Zé-Povo da baixa periferia  se embriague com esta premeditada ‘poncha’ verde-rubra, azul-amarela. Se os ecrãs deitassem cheiro, tresandavam ao olfacto do espectador as cenas de raspões e encontrões para ver quem se aperalta primeiro ao pé do Chefe…

         O máxi-Portugal de Lisboa enche o mini-Portugal do Funchal, inclusive vieram empolgar a Ilha as bandeiras de todos os países do Corpo Diplomático, representados pelo Embaixador do Vaticano, vestido ou revestido de Núncio Apostólico.

         Reconhecendo, embora, a presente comemoração como distinta e honrosa investidura nacional do nosso arquipélago (adjacente, assim lhe chamavam antigamente), assistir-se-á a um redobrado duelo de ‘violência doméstica’ entre a Nação-Mãe e a Ilha-Filha. Entrarão em fase mais aguda de pugilato político República e Autonomia. Nada de estranho desde a génese deste país, até porque, para haver Portugal-Nação, tiveram que terçar armas o filho Afonso e a mãe Teresa. O que de humilhante para nós vai ficar é o contraste entre a hipocrisia do ritual ora vigente e a ‘artilharia’ caseira  após o ‘regresso da República’ a Lisboa. É o costume...

         A este propósito, transcrevo a sensata ironia de Eça dirigida a Pinheiro Chagas sobre os falsos patriotas, a quem denominava de ‘patriotaças, patrioteiros, patriotadores, patriotarrecas’. Venha de novo Eça e substitua o prefixo pátrio por autonomisto, que quanto ao sufixo ficaremos muito bem elucidados.

         No Dia de Portugal, seja-me permitido erguer bem alto o glorioso padrão dos autênticos patriotas e lídimos autonomistas, os homens e as mulheres, jovens e idosos, que durante a vida aqui deram o melhor, os que no silêncio do seu lugar construíram a Nação e consolidaram a Ilha vulcânica, para o presente e para o futuro.

          Assim, Luís Vaz de Camões, em seu leito de morte, pobre e abandonado, em 10 de Junho de 1580 . Mas foi ele que perpetuou Portugal nas oitavas d’OS LUSÍADAS!

 

         09.Jun.21

         Martins Júnior

          

segunda-feira, 7 de junho de 2021

“LOUCO, DEMÓNIO… QUE NÃO CONHECE MÃE NEM IRMÃOS” – A HISTÓRIA QUE SE REPETE HÁ DOIS MIL ANOS”!

                                                                                   


        Quem queira argumento apetecível para protagonista  de um filme heróico tome os galões que compõem o título acima e logo terá trama suficiente para um sucesso (também se diz best-seller) de bilheteira. Dessa mesma substância se alimentam os episódios que avolumam a personagem ideal dos ecrãs:

Louco, porque não consegue comer nem dormir, assediado pelos que lhe batem à porta a pedir socorro. Demónio vivo, aos olhos dos carrascos todo-poderosos, porque o bem que faz ultrapassa as raias do humano normal, do política-e-socialmente correcto. Estranho, porque ao egoísmo étnico sobrepõe valores mais altos que a mediania omnívora.

Tudo isto qualquer argumentista pode encontrar no texto que no domingo passado serviu de mote  a milhões de comentários e escrituristas, cada qual à sua maneira. Vem no LIVRO e quem o narra é Marcos, capítulo 3, 20 e sgs.. É bem o retrato fidedigno do Nazareno nos melhores e nos piores entalhes do seu quotidiano.

Quem viu o extraordinário musical Jesus-Christ Superstar, de Andrew Llyd Webber , tocou-lhe  de certeza a azáfama trepidante do Mestre, afogado na multidão de homens e mulheres que o seguiam avidamente, esperando dele não só pão para a boca mas sobretudo alento de espírito para as suas sedes, lenitivo para as suas mágoas. E com tal premência que não havia tempo de comer ou de dormir. A própria família convenceu-se que Ele tinha perdido o controlo de si mesmo, enfim, que estava doido varrido. Depois, os doutores da lei, escribas, fariseus, sumos-sacerdotes orquestraram uma campanha capciosa (hoje diríamos, tipo máfia religiosa) para neutralizar o imenso sucesso do Mestre na cidade e nas aldeias circunvizinhas, injectando no povo o boato de que Ele tinha pactos satânicos com Belzebu e era, absolutamente, o demónio em traje humano. Finalmente, quando a “Mãe e os irmãos”  vieram ao local para retirá-Lo do meio  toda aquela gente que o rodeava mais que a um deus, Ele não conteve a indignação e respondeu como quem subalterniza a própria família biológica – “Afinal, quem é minha Mãe, quem são os meus irmãos?” – para recolocar em lugar cimeiro a família sociológica, a família ideológica, todos aqueles que cultivam os valores da vida e da solidariedade.

Não se esgotou no “Ano 33” a saga heroica do Nazareno. Ela repete-se, Ele está em agonia até ao fim dos tempos, bem  definiu Blaise Pascal. Muitos foram os homens e mulheres que, no seu tempo e lugar, subiram a mesma encosta pedregosa, sem comer nem dormir, atirou-lhes  o Status Quo os nomes mais insultuosos, desde estranhos, loucos e demónios. Só porque agiram como família ideo-sociológica do Líder Jesus de Nazaré.

O que acima trago escrito, faço-o como imperativo de consciência e afecto ao nosso Herói, Padre Mário Tavares Figueira. Fez ontem um ano que o seu corpo se foi. Tudo o mais ficou connosco. O seu espírito, a sua abnegação sem limites, a sua inteira doação às causas e à Casa-Comum. Também lhe atiraram os mesmos insultos – só porque fez o bem, só porque deu a mão aos que a injustiça e a exploração obrigavam a rastejar. Recordámo-lo aqui na Ribeira Seca, à mesma hora em que em Câmara de Lobos era evocada a sua memória.

Ele também ficará connosco até ao fim dos tempos !!!

 

07.Jun.21

Martins Júnior

sábado, 5 de junho de 2021

O AMBIENTE É UMA CRIANÇA…

                                                                     


          

No Dia Mundial do Ambiente prolonga-se e confirma-se o Dia Mundial da Criança, um tríptico cronológico, 1-3-5, que nos transporta para a simetria perfeita entre uma e outra sinonímia  e que me inspirou o  título deste blog de fim-de-semana: o Ambiente é uma Criança.

         E é-o, em toda a linha, porque no ambiente ecológico mais puro, tudo se renova, tudo renasce, desde as profundezas do oceano até à magnitude da esfera celeste. Mas, no jogo mais íntimo dos contrastes, não será menos certo afirmar que a Criança é o Ambiente, se por Ambiente condensarmos todos os segmentos e valências em que o homem nasce e cresce, desde a sua concepção no silêncio uterino do seio materno.

         Nesta mais ampla semântica ambiental, relacionada com a criança, tem sido paisagem idílica, emotiva - repetida e diferida por todo arquipélago da Madeira e Açores – que dá pelo nome sacro-romântico de “Primeira Comunhão”. Optei por este qualitativo, porque todo o ritual que envolve o acontecimento exala um perfume de encanto primaveril, em que a criança é rainha e a flor a sua dama-de-honor, grinaldas infantis e os pais em volta, formando o séquito de pajens improvisados. É, sem dúvida, a aliança mais genuína entre o sagrado e o romântico.

         Mas há quem não se deixe ficar embevecido na envolvência etérea do Tabor ou na revoada tangente do cenário primo-comungante. Por mais estranho que pareça, eu estou nesse grupo. Vejo algo mais além da beleza ternurenta dos neo-comungantes. Vejo e quase toco em plena evidência empírica a grande incógnita da pedagogia da Criança, no seu sentido holístico, em que se integra a educação espiritual, também designada educação religiosa. Sou daqueles que não se contentam com liturgias baptismais de bebés, com especiosas logísticas de Primeiras Comunhões ou com o ‘mestrado’ dos Crismas apa/amadrinhados. Recordo a judiciosa observação de um bispo, algures no continente português, acerca desta mesma questão: “Colegas (falava aos bispos presentes) não nos iludamos: o Sacramento do Crisma é, para grande parte dos jovens, a porta de saída da Igreja. Desaparecem, E se voltam é só para serviços pontuais e esporádicos”.

         O que decididamente me preocupa não é o acesso à Mesa Comunitária, bem como o espectáculo que a rodeia. O que importa, acima de tudo, é o que fica na substância daquele ‘Pequeno-Grande Ser’ que acede ao acto sacramental, ou seja,  o conteúdo espiritual  que deixe a Criança serena, segura e feliz. E mais: que ela deseje voltar ao convívio fraterno e interprete o sagrado, dentro dos limites da sua capacidade intelectiva, sem temores e sem ilusões.

É grande o perigo. Por experiência própria, garanto que é mais fácil dar uma aula ao 11º/12º ano do que dar uma catequese esclarecida e à medida de uma Criança. Porque se há campos propícios às chamadas fakenews, a religião ou as religiões são dos mais férteis. Muito cuidado e muita ponderação quando se fala do sagrado! A este propósito, cito Vittorino Andreoli, em “AO LADO DAS CRIANÇAS”: “Para a Criança, todo o mundo é mistério e cada ensinamento pode assumir as características de uma mensagem sagrada”.

Descendo ao chão da vida, jamais esquecerei o desabafo de uma das mães dos neo-comungantes: “O mais importante disto tudo é transmitir valores às crianças”.  Volto a citar o mesmo Autor: “A Religião ou o contacto com Deus não devem ser limitados ao âmbito restrito da missa dominical ou da oração em caso de necessidade, mas como trama de todo o tecido da vida”. Aqui entra a mundividência dos valores.

Ao ouvir aquela mãe, gente do povo, ocorreu-me a Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, em 6 de Janeiro de 2002, onde refere que “a educação religiosa deve lançar as bases sólidas para os valores espirituais e humanos, onde se aprende a ser pessoa e viver em relação comunitária e em espírito de serviço ao homem  à sociedade”. Na mesma direcção, poderia desdobrar outras tantas propostas que me preocupam na pedagogia espiritual dos mais novos. No entanto, prefiro trazer o testemunho de quem, antes de mim, teve as mesmas intuições transformadoras:

“Se a paróquia (Igreja) conseguisse comunicar o princípio evangélico de comportamento humano, cumpriria uma função diria quase terapêutica em relação a uma sociedade como a nossa, demasiado cheia de individualismo, narcisista e esquecida das oportunidades que o facto de pertencer a uma comunidade de exercer o direito ao amor e ao perdão oferece”. (Vittorino Andreoli).

No Dia Mundial do Ambiente, eis uma preocupação e um anseio perante o encantamento das Crianças convidadas à Mesa Eucarística, na esperança de que cresçam e se desenvolvam numa plena atmosfera de espiritualidade saudável.

 

05.Jun.21

Martins Júnior