sexta-feira, 31 de julho de 2020

LÁGRIMAS DE OURO, CÂNTICOS DE DIAMANTE


                                                                 

        Sessenta anos rolaram sobre a toalha de linho puro que entrelaçou as mãos dele e dela. Dois corações bordados na mesma tela ainda vivem nas paredes da alcova daquele amor primeiro e único.
         Era manhã de sol dourado e foi dia sem termo aquele de Julho, véspera de Agosto.
Hoje, volvidos sessenta anos, foi também véspera de Agosto. Mas foi outro o brilho do mesmo sol. Declinava o dia e em fim de tarde estival, era mais pleno e fundo o ar envolvente. No horizonte, além do mar, apertavam-se nimbos de lágrimas-ouro e escarlate…
A pequena ermida transfigurou-se e foi basílica em ogiva para comemorar seis décadas da grande jornada. Diante do altar aguardava o nubente, agora octogenário. A ‘noiva’, do mesmo percurso etário, ela é que não chegava… E jamais chegaria.  Alguns meses antes partira, para não mais voltar. A sua ‘festa´, talvez, seria o  reeditar do “Noivado do Sepulcro”, do romântico poeta Soares de Passos.
Mas ela estava ali, co-autora e protagonista da grande comemoração. A sua cadeira vazia, como num sortilégio de sonho, encheu-se, multiplicou-se, alcandorou-se com a presença de filhos e netos que ocuparam o lugar dela, a nubente-longe, a esposa-perto, a mãe e avó-omnipresente!
Sem palavras! Não há fórmulas nem liturgias que definam ou abarquem sequer este momento que toca o infinito, esta hora épica, misto de elegia fúnebre e marcha triunfal… A Dor e a Glória irmanadas no mesmo berço!... A morte a vida no mesmo abraço fremente e indivisível!
Por isso, sentindo embora cair dentro de nós lágrimas de ouro e saudade,  jovens e  crianças fizeram brotar no íntimo de todos os presente os cânticos de diamante e homenagem, ao ritmo da “Marcha Nupcial” de Frédéric Mendelssohn:
Viva quem casou por amor, Viva o Senhor
Foram felizes na Amizade e na Verdade
A vida é bela para quem assim
Amor que nunca terá fim   

31.Jul.20
Martins Júnior

quarta-feira, 29 de julho de 2020

SARAVÁ, BRASIL, NÃO PODEMOS SILENCIAR!!!


                                                             

Estou aqui, diante da folha branca, entre dois impulsos contraditórios, mas tremendamente iguais na pesada agressividade que comportam. Dividido entre o místico ardor de um poema épico e a fogosa lava de uma catilinária, não posso deixar passar indiferente o texto musculado da carta dirigida pelos bispos brasileiros ao presidente Bolsonaro, acusando-o de dois atentados, qual deles o mais perverso: primeiro, o de autor moral das vítimas do Covid no Brasil; o segundo, o de profanador blasfemo por usar o nome de Deus como semente do ódio.
Já há muito esperava eu que do episcopado brasileiro (de tantas e tão corajosas tradições sócio-religiosas) surgisse aquele enérgico protesto que se impunha, por parte da Igreja oficial, contra as arbitrariedades e cínicas barbaridades do Primeiro Magistrado da Nação, justamente invectivado e condenado pela comunidade médica, intelectual e  social do país e todo o mundo civilizado. A queixa-crime apresentada pela sociedade civil no Tribunal da Haia, acusando-o de  genocídio, enquanto aguarda os seus trâmites, merece a nossa maior solidariedade aplauso.
Honra, Valor e Mérito ao episcopado brasileiro, à gloriosa plêiade de bispos-verdadeiros pastores, subscritores do histórico documento, na esteira dos seus antecessores, tais como António Fragoso, Hélder da Câmara, Duarte Calheiros. Gente firme, da estirpe de um Frei Betto, Leonardo Boff, Alípio Freitas e de muitos outros padres presos  ou exilados do país, alguns deles que lá conheci.
Devo dizer que não me seduz nem me convence a pastosa mistela de um discurso proselitista que traz Deus para a cena político-governativa, fazendo do nome de Deus a salsicha ensanduichada no meio do papo-seco da intragável propaganda. Detesto, indispõe-me até à medula, ouvir políticos e governantes exibirem, iniciarem ou acabarem os delírios retóricos sob o nome de Deus, que trazem na boca mas expulsam-nO das mesmas mãos que governam e assinam decretos. Deveriam ser proibidos de o fazer. Porque o evangelho nas mãos de fanáticos demagogos torna-se a sofisticada  cartilha dos malfeitores. Aí está o paradoxo do Brasil: foram os chamados “evangélicos” que levaram Bolsonaro ao poder!
Por isso, o episcopado brasileiro cumpriu, mais uma vez, a sua missão de vigilantes atentos (episcopus=vigia, etimologicamente, o que olha em toda a volta). Em prol das suas comunidades. Não se limitaram à água benta ou ao óleo benzido. Saíram à praça, arregaçaram as mangas, não se acobardaram nos salões do Paço diocesano, pelo contrário, afrontaram o palácio ‘real’ e, como João Baptista, denunciaram energicamente: Não te é lícito… Pára de matar o povo, tira dessa boca suja o nome de um Deus limpo e justo!
Herdeiros das Conferências de Medellín (1968) e de Puebla (1979) são os mesmos que agregaram em magna assembleia o povo amazónico e levaram ao Papa Francisco a proposta de ordenação de homens casados para suprir a inexistência de sacerdotes naquele imenso território. Pena foi que o corajoso e solícito Francisco tivesse sucumbido perante a corte dos cardeais, a quem ele próprio já chamou os “corvos do Vaticano”…
 A postura firme e directa dos bispos brasileiros merecia aquele poema épico que acima referi e, em contraponto, ao comportamento de Bolsonaro deveria levantar-se o tsunami universal de uma ciclópica  contestação.
Envolvo nesta homenagem todos aqueles que, por outros caminhos, libertam o povo e fazem-no crescer com dignidade e autonomia. Aqui na Madeira também. Uma saudação telúrica e, por isso, avassaladora – porque a merece – o Padre Rui de Sousa, Pároco dos Prazeres que, pelo amor à terra e ao seu povo tem construído, não apenas a prestimosa Quinta Pedagógica, mas sobretudo tem feiro a saudável pedagogia da paisagem rural e das suas gentes. Bem haja!

29.Jul.20
Martins Júnior  
     

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O FUNERAL DO DITADOR


                                                    

Cá fora, as trombetas de Sião levantam ao Olimpo Sideral o ‘corpo santo’ do Salvador da Pátria, subindo entre volutas de incenso saído dos turíbulos cardinalícios que as mãos frementes dos príncipes da Igreja bamboleiam como bolas de cristal, enquanto os coros dos anjos e arcanjos abrem alas para deixar passar o ‘Eleito de Deus’…
Lá dentro, “pó caído”, há um corpo inquieto, mordido e sacudido por um outro cortejo que lhe faz escolta invisível, mas inexorável, tétrica. Crianças enfezadas, de pés retalhados pela fome e pelo abandono; mães e avós de face esquálida pela tísica e pelo peso dos dias sem manhã; esqueletos de milhares jovens, uns amortalhados, outros mutilados em guerras coloniais; corpos apodrecidos nas masmorras de Caxias e Peniche ou mumificados em cadáveres ambulantes desde os ilhéus do Tarrafal; famílias reduzidas à miséria e à míngua de pão,  iguais à de Aristides Sousa Mendes; e ministros do culto, cristos do povo e até bispos de evangelho, como o de Nampula e do Porto, expulsos do seu próprio país, porque se recusaram ajoelhar-se diante do ditador. “Diante dos homens, sempre de pé”!… Em defesa do Direito, da Justiça, da Liberdade!    
      E mesmo que a justiça dos homens o tenham posto num sumptuoso mausoléu, o código da inflexível Natura mandou entrar no Panteão o cortejo famélico, interminável, das vítimas inocentes, barbaramente afogadas pelas mãos silenciosas do ditador. Cinquenta anos volvidos, elas rondam, dia e noite, o fatídico mausoléu onde não dorme nem descansa o cínico canonizado e aspergido pela flor de Cerejeira…
         E cinquenta anos volvidos, é preciso trazê-lo à ribalta do Grande Teatro do Mundo, PARA QUE OS HOMENS NÃO ESQUEÇAM!!!
         E para que não deixem proliferar a herança maquiavélica que  teima em sair da cova e ainda pulula nos dias que passam. Talvez, bem perto de nós, no nosso próprio terreiro ilhéu!
         “FELIZMENTE HÁ LUAR” no Forte de São Julião da Barra.  Neste mesmo dia, 27 de Julho de 1993, falecia o dramaturgo Luis de Sttau Monteiro, autor do texto que não deixou cair no esquecimento a tragédia do líder da Revolução de 1820, o general Gomes Freire, atirado à fogueira em São Julião da Barra, Lisboa.
         A raça dos ditadores nunca mais acaba. É preciso opor-se-lhe arreigadamente a ínclita geração dos arautos combatentes pelo Direito, pela Justiça, pela Liberdade!
         Felizmente, connosco,  haverá sempre Luar.
         27.Jul.20
         Martins Júnior

sábado, 25 de julho de 2020

OS AVÓS NA GALERIA DO REI SALOMÃO


                                                          

Iahveh interpelou o jovem rei:
“Pede-me  o que quiseres”.
Salomão respondeu:
“Senhor,
Vós fizestes reinar o vosso servo em lugar do meu pai David
e eu sou muito novo e não sei como proceder.
Este vosso servo está no meio do povo escolhido,
um povo imenso, inumerável,
que não se pode contar nem calcular.
Dai, portanto, ao vosso servo um coração inteligente,
para saber distinguir o bem do mal;
pois, quem poderia governar este vosso povo tão numeroso?”
Agradou ao Senhor esta súplica de Salomão e disse-lhe:
“Porque foi este o teu pedido,
e já que não pediste longa vida, nem riqueza,
nem a morte dos teus inimigos,
mas sabedoria para praticar a justiça,
vou satisfazer o teu desejo.
Dou-te um coração sábio e esclarecido,
como nunca houve antes de ti nem haverá depois de ti”.
                                                                             (I Reis, 3, 5-7-12)

Para o “Dia dos Avós”  estende-se a mesa do Conhecimento experimental e levanta-se-lhes o trono da Sabedoria.
Pediu-os o jovem monarca ao Senhor Deus Iahveh. Porque maior que o poder é o Conhecimento e mais poderoso que  todo o capital  é a Sabedoria. A Sabedoria é o verdadeiro capital e no Conhecimento está a força do poder.
         Pediu-os Salomão ao Senhor Deus Iahveh. Mas bem poderia procurá-los e encontrá-los-ia junto dos mais velhos do reino de Judá. Porque neles, no solo e subsolo das suas vidas, escondiam-se tesouros inauditos de ‘um saber de experiência feito’,  rios subterrâneos de seiva e lava correndo ansiosos para a foz do Futuro.
         Louvor aos Avós – e mais que louvor – petição e desejo de recolher os sábios grãos de ouro acumulados nos seus celeiros de décadas quase centenárias.
         Cuidar de uma Criança é um investimento. Cuidar e estimar um velho Avô, uma veterana e veneranda Avó  é um lucro. Porque na Criança investe-se num futuro nascente.  Num idoso é-nos oferecida a dádiva de um passado vivido e, quantas vezes, o sustentáculo para o tempo presente!
         Abramos os olhos do corpo e do espírito, enquanto não fecha a biblioteca. Porque nunca é demais repeti-lo: “Quando morre um Avô ou uma Avó fecha-se uma Biblioteca”: a do Conhecimento e da Sabedoria.

         25/26.Jul.20
         Martins Júnior  

quinta-feira, 23 de julho de 2020

PARA AMÁLIA: CEM VELAS-CEM VIOLETAS DOURADAS DA PRAIA DO PORTO SANTO


                                          

Ainda chego a tempo de apagar a centésima vela em homenagem àquela que durante o dia era sol radioso de Julho e, quando a  noite caía, erguia-se a sua voz, luar de Agosto,  tão serena e leve, que mais parecia,  “por entre as oliveiras,  a alma de um justo subindo ao céu”. Pedi a Guerra Junqueiro esta inspiradora imagem, porque era assim o timbre dela e também porque o ‘poeta alexandrino” assim titulara o seu poema dedicado “Aos Simples”.
  Esperei, também eu, entre a gente simples, o genuíno povo luso (de onde ela veio e para onde voltou) até chegar a vez de lhe cantarmos em uníssono : “Pode haver quem compre o teu chão sagrado, mas a tua vida, não”.  Exaltem outros a Diva, a Rainha do Fado, a Voz da Pátria – que eu vou dizer da vida simples, chã e louçã, com que Amália acompanhava os mais Simples, o povo miúdo do campo ou das cidades, dos continentes ou das Ilhas.
Corria o primeiro semestre de 1965. E no Porto Santo corriam também as filmagens das Ilhas Encantadas, uma produção luso-francesa,  realização de Carlos Vilardebó e fotografia de Jean Rabier e Elso Roque. Com Amália contracenava um talentoso jovem actor Pierre Clémenti, já  famoso pela participação em O Leopardo, de Luchino Visconti. Acompanhei de perto os noventa dias de trabalhos, em redor da toda a ilha. Pediu-me a direcção do velho Jornal da Madeira  que fizesse a cobertura do referido acontecimento, a que não me furtei, até porque, como pároco do Espírito Santo, era meu dever colaborar com o órgão oficial  diocesano.
É da centenária Amália que vos falo, da sua singeleza de trato, da facilidade com que se entrosava entre as pessoas mais simples da ilha. Dois ou três traços servirão de exemplo.
No intervalo das filmagens, Amália, liberta da encenação dos grandes palcos e trajando ao gosto popular (na película, a ilha era deserta, abandonada), sem atavios nem maquilhagens, aproveitava o tempo para falar com os circunstantes, curiosos como eu, suficientemente afastados das câmeras. Que espanto o meu, ao ouvi-la falar largo tempo com um dos motoristas  à nossa beira. Assunto: marcas de carros e respectiva mecânica. Achava eu uma enormidade que um artista de tão alto  gabarito se ‘dignasse’ perder tempo com uns vulgares de Lineu, como nós que ali estávamos.
Ficou-me de Amália a cordialidade e até o chiste humorístico ao apelidar-me “Que padre bem apanhado”, o que não a impediu de chamar-me a atenção, após uma das actuações do nosso Grupo Folclórico no hotel Porto Santo, observando-me para a exibição de três dos bailados: “Não apresente mais, padre, aquele número que mais parece uma rumba sul-africana. E quanto aos outros dois, a ‘Ceranda e a Padeirinha’, olhe que esses não são do Porto Santo, já ouvi essa e outra versões no Continente” Tudo dito, mas só meio feito. De futuro, nunca mais exibimos o primeiro, era uma adaptação minha. A Ceranda e a Padeirinha, após reunir com o grupo, decidimos continuá-las, sobretudo porque, desde tempos imemoriais,  faziam parte da tradição popular da ilha. No entanto, confortou-me o seu elogio ao Baile Ladrão e aos Moinhos de Vento, embora este da minha lavra. Que simplicidade e que grandeza, num mesmo gesto!  Quem é verdadeiramente grande revela-se belo e transparente até nos mais singelos retalhos da vida.
Um terceiro testemunho, identificado com a idiossincrasia do nosso povo crente, acontecia sempre após a prestação do Grupo: Amália dava alguns momentos de amena cavaqueira e, à despedida, lá vinha o sacramental voto do adeus: “Até amanhã, padre, se Deus quiser”. Foram tantas as vezes do ‘Se Deus quiser’ que, mercê da sua franqueza e abertura, não me contive: “Ó Amália, perdoe-me a ousadia, mas esse ‘Se Deus quiser’ pode ser uma afronta ao próprio Deus. Imagine um condutor tresloucado e alcoolizado agarra-se ao volante, mata-se a si e a outros, vamos culpar Deus pelo crime? Foi Deus que o quis?”. A Rainha pensou, duvidou e ripostou sem pregas: “Este é o meu hábito desde criança. Olhe, padre, até pode ter razão, mas  eu vou continuar a dizer Até amanhã, se Deus quiser”. Uma alegre risada de quem se sente bem consigo e com os outros encerrava mais um saudável episódio extra-filmagens.
Tinha Amália o brilho e a maturidade da idade da ternura, a caminho do meio-século. Não sei se alguma vez , entre o fastígio dos grandes palcos e a euforia dos estrondosos aplausos,  ter-se-á ela lembrado dos encantos da Ilha Dourada. Nós não esquecemos. E hoje, volvidos 55 anos, trazemos-lhe este bucólico ramalhete de violetas guardadas na nossa memória para emoldurar o seu trono, lá onde esteja e lá onde existam as suas eternas Ilhas Encantadas.

23.Jul.20
Martins Júnior
     

terça-feira, 21 de julho de 2020

AS DUAS CARAS DO EURO NUM ACORDO HISTÓRICO


                                                           

Paira sempre um ar de cepticismo desimportado quando de Bruxelas sopram ventos e aragens trazidas pelos nossos ‘embaixadores-parlamentares’. Sobretudo se a árvore europeia abana os braços e deixa voar folhas de papel sonante rumo a Portugal. Isto acontece porque o povo – a arraia miúda  constituinte  que os pôs lá – não acredita na eficácia dos seus representantes nem muito menos espera ver dentro de casa um cêntimo daqueles fabulosos biliões dos  quais, dizem-se eles, fiéis depositários e  portadores seguros.
         Apesar disso, não pode ficar em branco o que acaba de passar-se em Bruxelas. Acordo histórico, afirmação da Unidade Europeia e salva-vidas do Velho Continente que corria o risco de afundar-se sem esta tão sensacional quanto oportuna decisão! Chamem-lhe o que quiserem, o saldo  global dos quatro longos dias de debate bem pode classificar-se como um regresso da Europa às suas fontes, à matriz originária que lhe deu corpo e alma: um continente sustentável numa comunidade solidária, tal como conceberam Jean Monet e todos os seus fundadores.
         Mais que o volume quantitativo desse caudal financeiro, quer como subvenção quer como empréstimo, o que importa relevar é a ‘nata’ qualitativa de que se reveste o presente Acordo. Ele culmina toda uma série de tentativas falhadas aos cofres do BCE, eurobonds,  protestos, troikas, aproximando-se agora, por outros caminhos, das então almejadas metas. Assinalável o esforço do eixo franco-germânico. Emmanuel Macron honrou a supremacia dos ideais humanistas - Liberté, Égalité, Fraternité - herdados dos heróis refundadores da República Francesa, enquanto Angela Merkel, por sua vez, procurou redimir a Alemanha de um passado sangrento ante-1945, aquele mesmo que fez nascer a Europa para uma nova era de reconciliação e progresso comum. Quanto aos restantes países e não obstante as divergências e reduções orçamentais, merecem um voto de congratulação os ditos “contribuintes líquidos” que aceitaram as restrições ao seu bem-estar financeiro para dar algum suporte às frágeis economias dos povos vítimas da pandemia. Puseram a nu o egoísmo nacional-populista do Brexit e  seus fautores.
         No entanto, toda esta vaga de optimismo que justamente acabo de sobrelevar não nos fará cair naquela inconsciente ingenuidade de pensar no ‘melhor dos mundos’, ou de que as decisões ora em apreço brilham puras no céu azul da Solidariedade. Trazem também algumas nuvens. Aqui também se aplica o conhecido provérbio: “Não há almoços grátis”.
         Não demorarei nesta contra-análise para não empanar o sucesso alcançado. Apenas quero propor a quem lê duas notas fugazes mas intensivas: os países “contribuintes líquidos”, pensemos na Alemanha,  detêm as grandes indústrias transformativas e os monopólios produtivos, sobretudo, na área tecnológica. Se, porém, não houver a classe consumidora e se esta não dispuser de suficiente poder de compra, de nada serve o arsenal técnico dos produtores. É o mercado e as suas leis a colocarem a economia ao serviço do bem-estar global.
         A segunda nota tem a ver com os auto-cognominados “frugais”, poupados, organizados, que censuram os países do Sul, a quem chamam de perdulários, gastadores, desorganizados. É sobejamente conhecido o baldão atirado à cara dos portugueses pelo ex-presidente do Eurogrupo, o holandês Jeroe  Dijsselbloem. A Holanda, porém, deveria penitenciar-se, direi mesmo, restituir aos portugueses por estar a arrecadar os impostos que certas empresas, ‘Pingo Doce’ v.g., estão a pagar lá, à custa dos consumidores de Portugal. Dizem os relatórios que “o paraíso fiscal holandês cobra todos os anos  dez mil milhões de impostos sobre os lucros que são desviados dos restantes países da EU”.
         Saúda-se o Acordo, mormente nesta encruzilhada crítica para os países do Sul. Ao mesmo tempo alerta-se com peso e até veemência para que dos milhões e biliões europeus cheguem alguns cêntimos à mesa dos seus verdadeiros destinatários, o Povo que trabalha e, seja qual a profissão,  faz com que o país volte à normalidade. Que se não repita a cegueira pantanosa a que se assistiu recentemente, por parte do governo regional,  na distribuição de volumosas verbas a associações desprovidas de  quaisquer credenciais para os efeitos directamente requeridos, mas tão-só por afrontoso despudor político-partidário, fazendo lembrar tempos tenebrosos de má memória. É assunto a tratar noutra altura, mas como simples cidadão não posso calar impunemente.
         Por fim, Voto de Louvor, desta vez, ao Directório Europeu, embora movido por esse flagelo comum, a pandemia. Não obstante os dramas e as tragédias, teve a força tamanha de mexer o coração dos homens e os alicerces da Europa!  Hoje, século XXI, o mundo-criança ainda precisa – Hélas! -  do ensino traumático, para acertar o passo na História.

         21.Jul.20
         Martins Júnior      

domingo, 19 de julho de 2020

O BEM E O MAL – EQUÍVOCOS E EMBUSTES DE TODOS OS DIAS


                                                     

Um fim-princípio de semana povoado de espécies invasoras, daninhas, infiltradas no âmago da terra onde se semeou trigo bom, de qualidade primeira. Chamou-se “joio” ao vírus estrutural que marca toda a história do homem sobre a terra. E o vírus apresenta-se pelo nome próprio: o ‘Mal’!
“Um inimigo meu tentou estragar-me os hectares de cereal que mandei plantar no meu terreno” – assim falou o Mestre Nazareno às multidões para elucidá-las, em parábolas,  sobre a forma de  lidar com  as manifestações maléficas que apertam todos os mortais. (Mt.13).  Colossal e interminável este debate que persegue intelectuais, crentes ou descrentes, teólogos, agnósticos, ateus, cientistas, investigadores de todos os tempos! O que é o ‘Mal’, de onde provém, quem o produz e quem o transmite?...
Não será um mero blog  o lugar suficiente para desbravar tamanha floresta de enganos e desenganos, propostas e contra-propostas, hipóteses muitas e sínteses poucas ou nenhumas. Fruto da experiência pessoal e da observação empírica, limito-me a reproduzir duas ‘descobertas’ levadas a efeito pela mentalidade popular (infelizmente exploradas até ao tutano por quem devia esclarecer em vez de iludir as populações), as quais passo a descrever.
Primeiro: a tendência - mais espalhada que o joio – de atribuir o ‘Mal’ a forças estranhas, ao diabo e, nalguns casos, ao próprio Deus. Gerações sobre gerações, desde o Velho Testamento, foram manietadas no seu pensamento e forçadas a adorar um IAHVEH justiceiro e vingativo, sanguinário, (Cfr. Salmo 136/137). Por inércia mental ou pelo gosto de ser enganados, os crentes e respectivos mestres-demagogos preferiam endossar à divindade as causas que radicam no mundo e nos seus próprios inquilinos. Fenómenos atmosféricos adversos, maleitas, insucessos, desgraças, mortes “isso é lá com Deus Nosso Senhor”… E quanto à solução, “o melhor remédio é rezar”…
De há muito tempo, partilho a convicção de que há certas formas de oração que, apesar da fé emocional de quem ora, não são mais que afrontas ao próprio Deus. Uma delas é a chamada “Oração dos Fiéis”, escrupulosamente recitada nas liturgias eucarísticas. Devo confessar que sempre me recusei a dizer determinadas blasfémias nela inclusas. E qual não foi o meu espanto quando abro o aprofundado estudo do grande teólogo Padre Prof. Doutor Andrés Torres Queiruga, intitulado “REPENSAR O MAL” e encontro uma extraordinária (mas evidente!) conclusão:
“Não será abusivo considerar que é religiosamente óbvio que certas súplicas e petições a Deus carecem de sentido e podem redundar  num enorme dano para a fé… Um exemplo que gosto sempre de dar para esclarecimento geral é o seguinte: Todos os domingos na Oração dos Fiéis e dentro da liturgia oficial da Igreja, milhões de crentes  repetem em coro orações parecidas com esta: ‘Para que as crianças em África não morram de fome, Ouvi-nos Senhor, tem dó e compaixão dessas inocentes crianças’. Sem negar a boa vontade subjectiva de tais orações, a verdade é que no seu sentido objectivo elas implicam uma imagem horrivelmente pervertida de Deus”.
E o eminente teólogo Torres Queiruga conclui com esta lapidar evidência:
“Na mais elementar lógica é evidente que essa oração, de duas uma: ou não significa nada – portanto carece de sentido – ou então significa que se as crianças africanas continuarem a morrer de fome é porque Deus não quis escutar o pedido nem teve dó delas”! ( Obra cit, pág. 409-410).
A mensagem deste fim-princípio de semana também é clara e transparente. E exigente: Para extirpar o ‘Mal’ é preciso combatê-lo no próprio meio ambiental, no “local do crime”, à porta dos responsáveis das nações e frente aos sanguessugas do povo, ditadores-donos dos paióis da guerra. Não é à porta de Deus, que nunca foi  nem será  autor das fomes e das guerras. O actual momento da pandemia deveria abrir-nos os olhos da razão e só depois os olhos da fé, ou seja,  a nossa parte, somos nós que devemos fazê-la. Porque Deus - o Deus verdadeiro! - não faz nem deve fazê-la por nós!

19.Jul.20
Martins Júnior

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O BINÓMIO DE NEWTON E A VÉNUS DE MILO NAS SETE MARAVILHAS DA CULTURA POPULAR


                                                   

Não fora a nota de um dos meus companheiros de jornada pelas rotas dos ‘dias ímpares’, nem eu voltaria às Sete Maravilhas, até porque já encerrou o concurso regional e, para lá dele, pouco pesa na balança do planeta um ligeiro episódio localizado, como é o dito certame.
Eis a observação que motivou este meu arrazoado:
  Quanto à primazia dos Fachos – “pode até ser verdade..... mas não é parte diária da vida popular.....enquanto o bailinho e o bordado estão entranhados localmente e por esse mundo além...Vi no Navio-Escola Sagres uma toalha bordada durante sua estadia no porto de Santos, Brasil.... e a aglomeração de pessoas à volta daquele tesouro era sinal da admiração etérea pela arte das mulheres da nossa terra... e o bailhinho então... faz parte de muitas pessoas por cá”...
Nada mais correcto e sensato! Por isso, subscrevo por inteiro as conclusões que emergem das linhas e das entrelinhas do criterioso observador. Aliás, vêm confirmar o que explanei no penúltimo blog relativamente às premissas que devem fundamentar as nossas opções, sejam estas em versão minimalista, sejam sobretudo numa paisagem-macro sobre questões da máxima transcendência filosófica ou sociológica. E é, ainda por isto, que volto ao caso. Porque quem faz um voto empenha nele a sua personalidade totalizante.
Recapitulando, nesta versão-mini, começaria por Sebastião da Gama: “O poeta em tudo se demora”. Parto da convicção de que, diante das Sete Maravilhas candidatas, somos todos poetas, porque o seu objecto ou paisagem maravilhosa não têm outra veste que não seja a  Poesia, na sua expressão factual, concreta, manufacturada. Essa, pois, a razão que levar-me-ia a votar em todas as Sete.
No entanto a realidade, por mais objectiva que seja, não é unívoca, mas aberta, como já Umberto Eco nos prevenira. Depende também do Observatório e da posição em que o colocamos. Recordo, quando no curso de filosofia, aquela corrente de pensamento, denominada “interpretacionismo”, em virtude da qual a cor não está no objecto exterior mas nos olhos que a contemplam. A cor e, com ela, a beleza ou a fealdade, o valor ou desvalor, a estreiteza ou a amplitude do objecto, estão mais nas pupilas do espectador do que na realidade contemplada. Quando se fala em pupilas referimo-nos à sensibilidade do sujeito perante o objecto, o seu estado neuro-vegetativo, a sua ‘circunstância’, a sua preparação a montante, enfim, a sua personalidade. Todos vêem o mesmo, mas não captam o mesmo.
Não recorro a casos exemplares, porque a nossa vivência quotidiana  prova-o suficientemente. Esta diversidade interpretativa dentro da unidade objectiva, resumo-a em Fernando Pessoa, (ele, o multiplicador de heterónimos) naquele seu axioma poético, bem conhecido: “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente que dê por isso”. Paradoxal: uma equação matemática – tão estética e deliciosa como a escultura de uma bela mulher!
Mas é isso mesmo: Para o decorador florista, amante das orquídeas e das estrelícias, não há sinfonia mais bela que os Tapetes… Contrariamente, aos romeiros festivaleiros, sobretudo se emigrantes, ninguém lhes tire o Bailhinho que amacia o espinho da saudade, mesmo sem saber que a canção do ‘Feiticeiro da Calheta’ não tem mais que 82 anos…  As crianças azougadiças e os idosos de coração infantil lembrando os gostosos tabuleiros dos arraiais de outrora, deliciar-se-ão com as Bonecas de massa… E quem entre nós, madeirenses, atraídos como pássaros pelas luzinhas do presépio e pelo cheiro dos bolos-de-mel, qual de nós recusaria o voto à Noite do Mercado?... Os estudiosos da ruralidade, antropólogos dos usos e costumes das populações primitivas, acharão nas Casas de Colmo um precioso filão exploratório e só isso lhes interessa pra valorizar a historiografia madeirense… E então o Bordado Madeira, quem lhe resiste? Nem seria preciso um sofisticado curso de Designer  para cairmos rendidos à sua beleza. No topo dos cultores da arte, especialmente os apreciadores da feminilidade e do seu encanto artístico (chamem-lhe glamour, charme ou similares) levantam-lhe um trono, estendem-no à mesa real ou a bordo do Navio-Escola ‘Sagres’ ou, mais alto, sobem às sagradas aras.. As “Lágrimas Correndo Mundo”, em todo o tempo e em todos os lugares,  cativariam almas e gerações.
Mas há outros olhares e sensibilidades, iguais a tantas, mas diferentes na tonalidade interpretativa: os que aliam a ancestralidade histórica à catarse colectiva de um povo, ao longo de 600 anos. Além da mística iluminante de todo o vale, releva-se o esforço braçal, a afirmação musculada de jovens e adultos que, com as próprias mãos enegrecidas pelo óleo e pelo fumo, repõem  no basalto da montanha o vigor de antanho. Esses optaram pel’Os Fachos.
Todas Diferentes e Todas  Iguais! Assim são as Sete Maravilhas. O resto depende dos olhos que as vêem. E do móbil que as transporta: a arte, a história, a especiosidade, o esforço, a resiliência hereditária – ou o efeito imediatista, o reclame publicitário, o consumismo, numa palavra o marketing estandardizado?!
Em consonância com a síntese do observador que motivou esta reflexão – e que registo com aprazimento – reitero o pensamento já aqui citado noutras circunstâncias: “É tão belo e é tão nobre descascar batatas como construir catedrais”. Tudo é belo! Tudo é nobre!
17.Jul.20
Martins Júnior         


quarta-feira, 15 de julho de 2020

ENTRE AS SETE – A PRIMEIRA: “OS FACHOS”!


                                                     

Entre os dois dias ímpares - 13 e 15 de Julho – não há mais que a distância de um parágrafo. Melhor dito, só vai a distância entre as premissas e a conclusão de um silogismo.
O espírito crítico e a lógica do silogismo, para lá da sua aplicação estritamente académica, também emergem da simples observação do real quotidiano. Tanto brilham na definição da filosofia aristotélica, como se afirmam na análise do mais vulgar acontecimento, seja a nível de saúde, finanças, cultura ou mero folclore. É o caso do certame das Sete Maravilhas da Cultura Popular da Ilha-Região madeirense. Descontadas as normais derivas do público votante, como enunciei anteriormente, passarei hoje pelo crivo da Razão as sete ‘candidatas’ ao pódio, focalizando-as pelos critérios já enunciados: longevidade, idiossincrasia, genuinidade e/ou originalidade.
Aleatoriamente, começarei pelas Bonecas de massa, presença habitual nos tabuleiros da confeitaria popular dos nossos arraiais. Artísticas, sem dúvida, que até deram inspiração para o belíssimo painel colocado à chegada ao nosso aeroporto, da autoria do ilustre madeirense Rigo. No entanto, em termos de originalidade criativa, as Bonecas de massa pouco diferem do chamado ‘galo’ de Barcelos ou, até mesmo, do boneco das ‘Caldas’. Além de que já caíram em quase total desuso.
Idêntica observação poderá fazer-se dos Tapetes de Flores, peça ornamental de tocante sensibilidade religiosa nas procissões do Santíssimo Sacramento por todas as freguesias e paróquias da Madeira. Finíssimos rendilhados florais, delicados ícones esparsos pelo chão, à passagem da custódia flamejante sob o majestoso pálio. Uma nota, porém: não são ‘autóctones’, carecem de originalidade, visto que eles aí andam replicados por esse país fora, desde as ilhas ao Continente, alguns até com inegável superioridade artística.
Quanto às Casas de Colmo de Santana, essas incarnam bem a vivência de um povo, o seu passado, as condições de habitabilidade, a sua economia circular (em que tudo era aproveitado) e a dureza do trabalho rural. Fazem a delícia dos olhos, na elegância pitoresca das suas linhas. Mas há um manifesto desfasamento da realidade: é que, actualmente, já ninguém as habita, porque ninguém as constrói. Mesmo em Santana. Tal como as antigas “casas de matope”  do Porto Santo. Não passam de típicas peças decorativas, ‘para turista ver’.
Não obstante o portentoso impacto da Noite do Mercado no Funchal, antecipando o Natal, a multidão vagante como ondas entre as ruas adjacentes e lá dentro um vistoso coro de vistosas vozes e caras publicitárias, nota-se algo de certo modo elitista, também ‘para dar nas vistas’. Muitos aplausos que mereça, sobra-lhe em verniz o que lhe falta em genuinidade tipicamente madeirense. Em seu lugar, candidataria os consagrados arraiais de três ou quatro freguesias da Ilha.
Chegámos ao super-famoso  Bailinho (ou Bailhinho) da Madeira, uma espécie de ‘hino nacional’ cá do burgo ilhéu. E de tal jaez que instintivamente todo o madeirense é empurrado para a urna eleitoral, de rajão, ‘ferrinhos’ e castanholas, ao som do Bailinho. Apesar de todo o meu pendor regionalista, não farei parte da romaria. E digo o porquê: o nosso super-famoso Bailinho, no cômputo cronológico da Ilha, é uma criança. Terá ramos, flores e frutos, mas não tem raiz nem tronco por onde corra a seiva da pura árvore genealógica madeirense. Lembro que o Bailinho nasceu em 1938, quando um grupo do Arco da Calheta (honra lhe seja feita!) veio ao Funchal participar numa quermesse de beneficência. Portanto, tem 82 anos incompletos – uma gota de água num oceano de 600 anos de história. A sua divulgação nos vários continentes pela voz do talentoso Max ganhou créditos internacionais, interpretado até por grandes orquestras de renome mundial. Pode dizer-se que o Bailinho já não é só nosso, é de todo o mundo.
 Ao aproximar-me do Bordado da Madeira, curvo-me e ajoelho nas margens desse imenso e caudaloso rio de “Lágrimas Correndo Mundo”, como lhe chamou o nosso mais conceituado romancista Horácio Bento de Gouveia. Homenagem à Mulher Madeirense, já antes lhe prestara a grande escritora Maria Lamas e, neste caso, à Bordadeira, símbolo do sacrifício e da arte, apertando agulha e linha até altas horas da madrugada, para receber o magro salário, complemento da economia familiar. Desde a mesa do Rei ao altar de Deus, lá está o bordado Madeira, merecedor do galardão maior das Sete Maravilhas.
Ex aequo, coloco na mesma galeria os Fachos de Machico. Seja-me permitido, porém,  (sem a mínima sombra de patrioteirismo bairrista) entronizá-los acima das restantes candidatas, até mesmo da do Bordado, visto que este segmento artesanal do bordado não é apanágio exclusivo da Ilha. Não fora o risco de maçar quem me lê, teria todo o gosto em tecer as mais devotadas loas àquele monumento que considero um dos expressivos repositórios do património madeirense – Os Fachos!
Porquê?
Primeiro, pela sua ancestralidade. A sua origem radica-se nos primórdios do Achamento da Ilha, tornando-se pouco depois o mais eficaz sistema de defesa dos habitantes contra as investidas dos corsários que saqueavam a Madeira e o Porto Santo, razão pela qual estas duas ilhas ainda hoje mantêm a toponímia  “Pico do Facho” em pontos estratégicos de defesa do território. Os vigias davam alarme público quando avistavam as corvetas invasoras. Por isso, refere o  investigador Adriano Ribeiro, que “os fachos faziam parte das vivências da população, pois estava-lhe impregnada no sangue, devido às muitas vezes em que foi dado o alarme da aproximação de inimigos”.    
Ultrapassada a fase periclitante da pirataria marítima, a população não deixou cair a velha tradição e, tocada pelo sortilégio das luminárias em plena noite, espiritualizou-as. Direi que, numa colectiva metamorfose cultural, o povo  sacralizou os Fachos, dirigindo a chama defensiva de outrora noutra direcção: a homenagem à Festa de Cristo-Eucaristia, todos os anos no último sábado de Agosto.
Além da ancestralidade, Os Fachos persistem na actualidade. São genuínos, são originais, são totais, enquanto condensam a amplitude cronológica da história da Ilha, exprimem a cultura reinventiva de um povo, demonstram em cada ano o impressivo ADN dos seus antepassados. Por isso e porque desde a juventude acompanhei o esforço da população na saga iluminante, dediquei-lhes a canção que, há mais de meio século, entoamos em Machico:
Os Fachos na serra
Altos a brilhar
São a voz da terra
Que fala a cantar

Cantigas de amor
Pão e vinho novo
Bendito o Senhor
Pela voz do Povo
Eis, enfim, as razões do meu voto. Escolho Os Fachos!

15. Jul.20
Martins Júnior

segunda-feira, 13 de julho de 2020

UMA HISTÓRIA QUE É NOSSA:


                                                         

“Vale o que vale” – será talvez a nota que melhor se poderá apor  ao concurso das Sete Maravilhas da Cultura Popular  da Ilha (ou da Região). Porque neste, mais que  em quaisquer outros certames ou ‘eleições’, o voto popular nunca vem só. A suportá-lo e a condicioná-lo, há uma argamassa de betão ciclópico que fala mais alto e a que chamo um legítimo e afiançado patriotismo bairrista, quando não se lhe atrelam outros instintos ridiculamente desviantes. Os dedos deslizam sobre o telemóvel à procura da meta, mas quem fala primeiro é o coração: “Votas no nosso”!
Ora, é por isso que eu votaria em todas e cada uma das Sete Maravilhas propostas. E votaria em muitas outras que não foram seleccionadas, não obstante o seu elevado índice de representatividade no panorama cultural regional. Em vez de sete, teríamos o já conhecido mote de ‘setenta vezes sete’. Porque todas são nossas, todas batem-nos à porta do coração, tocando o irresistível refrão da sensibilidade madeirense. “Esta é nossa. E aquela também. E mais a outra. Todas são nossas”.
         Mas é preciso optar. Mais fácil e ocioso seria haver uma só concorrente… Aí está a ‘penosa’ dádiva da liberdade, o glorioso fardo de escolher, de votar. Porque toda a opção exige reflexão. E a reflexão custa, tem um preço maior que o seu efeito imediato. Impõe-se-nos colocar na encruzilhada dos possíveis o primado da Razão. Obriga-nos a  rever e corrigir o velho axioma de que “o coração tem razões que a razão não entende”. No caso em apreço, o único coração que bate na alma de todos nós, ilhéus, só tem um nome: Madeira-Porto Santo.  É este o verdadeiro GPS  que nos fará sair vitoriosos nesta corrida a outro nível, a Cultura. Saibamos despir o falso verniz de um provincianismo tacanho, por outras palavras, tenhamos a coragem de depor os velhos obuses do tal patriotismo bairrista e olhar a paisagem pelo visor da Razão.
         Assim, o primeiro embate será o de definir “Cultura”. Depois, o conceito de “Popular”. E, em plano superior, porque crítico e analítico, a exacta conotação do termo “Maravilha”.
O embaraço começa pelo âmbito da “Cultura”, o que é, qual o seu alcance, o que cabe ou não cabe dentro dela. Será puro academismo?  Ou, pelo contrário, quanto valerá a intensidade telúrica, o cheiro à terra e ao mar? A que manuais está sujeita? Estará na batida da praça pública, nas redes sociais, nos áudio-visuais? Entre a materialidade e a imaterialidade, qual terá mais peso na balança cultural?...
         Depois, a compreensão e a extensão de uma determinada  realidade para merecer o qualificativo de “Popular”. Terá a ver com o passado, a sua maior longevidade, a latitude do seu significado, a identificação com a ancestralidade e a alma de um povo? Ou será apenas o que está na moda, no ouvido, no mercado consumista?...
Finalmente, da pisa e repisa destes dois cabazes psico-sociológicos  (Cultura-e-Popular)  no Lagar da Razão, sairá o vinho em mosto daquilo que se pretende: a “Maravilha”. Sendo certo que, também aqui, a realidade toma a cor dos olhos que a vêem (“quem o feio ama, bonito lhe parece”, diz a filosofia popular) compete ao observador isento guiar-se por uma ordem de critérios ou escala de valores, acima de eventuais rajadas emotivas. A “circunstância” – o lugar, o tempo, a empatia ou seu contrário, a vizinhança, o clubismo e afins – a “circunstância, sublinho, deve ficar de rigorosa quarentena, na hora de escolher, entre as Sete, aquela que merece ostentar o epíteto de  Primeira Maravilha da Cultura Popular Regional.
No elenco dos critérios definidores, deixei para o fim aquele que me parece dever figurar como condição sine qua non para alcançar o pódio maravilhoso: a originalidade! Por tratar-se de Cultura Popular entendo exigível uma característica distintiva, se possível, única, tal como registo de marca  e  símbolo histórico identitário da terra de que é oriundo.
        Até aqui, a teoria. Apresentei-a, de forma rudimentar, mas relativamente segura para um bom discernimento perante o Setestrelo Maravilhoso que nos é proposto. Da minha parte, como madeirense, também vou às ‘urnas digitais’,  abertas até quinta-feira, 16. Também já fiz a minha opção e, com o devido respeito para com todas as outras, dá-la-ei a conhecer amanhã, com base na criteriologia supra-descrita, sujeitando-me ao debate esclarecedor de quem tenha opções diversas da minha.
Debater, comparar, descobrir. Talvez seja esta a Oitava e a Maior Maravilha da Cultura de um Povo!

13.Jul.20
Martins Júnior