domingo, 31 de março de 2019

DE 31 DE MARÇO PARA 1 DE ABRIL


                                                        

Bastou o segundo imutável e severo para erguer-se a ponte que me leva do dia da verdade à noite da mentira. Ponte  sobre os rios invisíveis que apartam a luz das trevas. Mais te valera, ó ponte, que arquitecto algum te houvesse concebido!
Sabendo que o outro lado é escuro e que movediça como o lodo é a mentira, onde assentará o pilar sustentáculo da ponte? Talvez que ela, afinal, nem exista sequer. Talvez que seja eu a mesma ponte e o seu transeunte… Quem sabe se não serão todos os dias essa ponte que, de tão íntima e discreta, nem damos por ela?!
Amanhã, “primeiro de Abril”  de cada ano, verei eu e veremos nós de que palavras nossas e nossos passos é feita a estranha passadeira que nos leva, todos os dias, da claridade ao negrume, da transparência à opacidade, enfim, da verdade à mentira.

31.Mar.19
Martins Júnior
  



sexta-feira, 29 de março de 2019

600 ANOS NAS MÃOS DE UM POVO!


                                                       

Machico neste dia traz as boas novas. E trá-las pelas mãos genuínas dos herdeiros de Zargo e Tristão. Herdeiros, digo bem, porque hoje todos somos Machico, todos somos Madeira. Os mestres, os historiadores – de dentro ou de fora – hoje sentem as raízes ancestrais da Primeira Capitania da Madeira. Vieram ensinar os caminhos de outrora, por onde viajaram, lutaram, moirejaram os cabouqueiros desta nau itinerante  de nome Madeira..
Isto acontece sempre que os autênticos pioneiros do processo criativo e reprodutivo toma conta dos acontecimentos e transmite-os ainda quentes de emoção e verdade. Sem alarde publicitário e  sem o proteccionismo das chamadas cúpulas, Machico sulcou as vagas do oceano e foi até aos confins do Achamento/Povoamento da Ilha, para voltar de novo, carregado do ouro da sabedoria para no-lo oferecer com a pujança e o afecto de quem ama esta terra.
                                                          

Dia grande para as gentes de toda a Madeira, mais directamente para Machico e Funchal, os “Lugares Pioneiros” da nossa história insular.
De tudo quanto foi dito e visto, agigantou-se a beleza imperativa do dia 8 de Maio de 1440, data da Carta da Doação da Capitania de Machico a Tristão Vaz Teixeira. A do Funchal viria mais tarde, em 1450. Daí, a feliz e necessária decisão de, nesta magna efeméride hexa-secular, colocar o Dia do Concelho no seu berço original, 8 de Maio, fazendo dele o trono hereditário deste Povo e desta terra, oriente inicial,  onde o sol nasce primeiro.
Bem hajam os seus promotores. Bem Haja o Povo que os recebeu.

29.Mar.19

quarta-feira, 27 de março de 2019

A DIVA E O MONSTRO ANÃO – A NOVELA DA “NOSSA” VERGONHA


                                                      

Eu sei que daria para Homero reescrever a Odisseia, mas outra – trágica, medonha, suicidária. Eu sei que Dante reformularia a sua “Comédia” – já não “Divina”, mas satânica, infernal. Daria também para Picasso reinventar a monumental “Guernica” – mas a cores e dores esquizofrénicas, descomunais, impossíveis de olhar.
Por isso, se alguém ler o caso e a letra, apague-os do seu ‘écran’, destrua e esqueça. Mas o caso é de todos os dias. E a letra também:
Na mesma arena ou na mesma selva, frente a frente desafiam-se, de um lado a Diva, imperturbável e bela. Do outro, o pigmeu, com armadura de monstro. Diva, Imensa, Inacessível no seu eixo invisível – a Natureza. Pigmeu – o humano batráquio, seu provisório inquilino. Nascido para ser rei soberano, tornou-se monstrozinho do charco. Na marcha silenciosa que lhe foi imposta, a Diva Natura abre caminho, avança, esbraceja e instintivamente arrasa obstáculos para, depois, reanimar tudo à sua volta. O pigmeu também investe e sabe que o faz assumidamente, arremessa-se armado em besta, rivaliza e encarniçadamente põe tudo em cinza morta. A Mãe Diva lamenta e chora o rasto que deixou, mas promete nova vida na próxima primavera. O pigmeu regurgita de raiva e fogo. E promete mais praga e destruição, ufano de outros monstros que deitou do bucho para fora.
Um quadro, uma tragédia de esquecer!
Por outras palavras: os ‘tsunamis’, as erupções vulcânicas, os terra-maremotos, as recentes cheias de Moçambique (acompanhei-as, idênticas ‘in loco’, no ano 2000), trouxe-as inelutavelmente a Natureza no seu movimento sucessório. Mas a destruição no Iraque, as fomes na Venezuela, as ruinas na Síria, os crimes de guerra no Centro-África, enfim, Hiroshima, Nagazaki – isso e muito mais foi o pigmeu, monstro do charco, foi o homem quem o fez. E, nele, fomos nós todos que o fizemos.
Perante o (des)composto humano e para ver estas monstruosidades, talvez tenha razão Antero de Quental quando, ao constatar o desconcerto do mundo, desabafou amargurado: “E sempre o pior mal é ter nascido”. Antes dele, já o Mestre da Galileia dissera para Judas, sentado à mesma mesa: “Melhor fora  que nunca tivesses nascido”. Perdoe-me quem  lê, mas nesta hora não resisto ao pessimismo rasteiro de Shopenhauer: “Quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães”. Esses, os da guerra. Esses, os pigmeus facínoras, donos do mundo.
E concluo no mesmo tom: talvez fosse melhor não ter escrito isto. Mas hoje foi assim. E não apenas hoje. Todos os dias e todas as horas em que vejo o homem-minúsculo a rivalizar, em destruição, com os poderes astrais.
Amanhã será melhor. Se cada um de nós quiser.

27.Mar.19
Martins Júnior
           

segunda-feira, 25 de março de 2019

25 DE MARÇO – O DIA DAS MULHERES-PADRES!


                                                

Não é uma tese nem sombra dela o que me proponho apresentar. Aliás, é assunto que estava longe de abordar, porque para fazê-lo cabalmente teria de desenterrar arquétipos, mitos e concepções desde que o ser humano pôs pé neste planeta. Permitam-me ajuntar mais um outro empecilho, este colhido no piropo de um amigo meu que costuma dizer: “Há quatro coisas que eu não discuto com ninguém -  Futebol, Política, Religião e… Mulheres”.
E vejam a rifa que hoje me saiu: Religião e Mulheres. E porquê?... Pela estranha (ou pouco conhecida) efeméride que  neste dia, 25 de Março, dá pelo pomposo nome: “Dia de orar pela Ordenação de Mulheres na Igreja Católica”. Por outras palavras: orar, pedir para que as mulheres possam exercer as funções de padres, chamando-se, elas-mesmas, sacerdotes ou, mais propriamente, sacerdotisas.
Devo confessar abertamente que não acho uma tão contraditória, ridícula e falaciosa proposta como essa: orar, pedir para que a Mulher receba o sacramento da Ordem Sacerdotal.
Orar, pedir… a quem? E quem é que nos manda pedir?... Mais: quem é o correio ou estafeta do nosso pedido para que ele chegue ao seu destinatário?... Naturalmente ora-se, pede-se a Deus, Todo Poderoso  Quem nos aconselha a fazer o pedido será, também naturalmente, a religião, a Igreja. O correio ou o portador do pedido é, naturalissimamente, a mesma entidade, ou seja, a religião, neste caso, o trono-altar em que se senta o Vaticano.
Oh insensatos, originariamente dotados de senso, que somos nós! Fernando Pessoa equaciona a lógica poética quando diz: “Deus quer, o Homem sonha, a Obra nasce”!  Mas no caso vertente, perverte-se toda a  razão lógica, porque:  Deus quer, o Vaticano proíbe,  a Obra morre. Em vez do consenso, aborta tudo no contra-senso: a Igreja que aconselha a pedir e o Vaticano-caixa-de-correio gritam, em uníssono e a mil guelras, desde o fundo dos séculos: “Vade retro, Sátanas”! Desapareça o satanás que avance com tal requerimento! Nesta arena ou neste conflito de competências, o Vaticano manda mais do que Deus. Paradoxo insanável: Deus fica a perder, sempre. Então digam-me agora se não será o “25 de Março” a tal farsa – contraditória, falaciosa e. no todo, ridícula?
Eu disse que hoje não vinha elaborar tese. Entretanto, só duas ou três notas:
Como convencer a Igreja da bondade e da razoabilidade da proposta, quando desde as primeiras páginas do “Livro”, a Mulher foi sempre inferiorizada, diabolizada, culpada de tudo, até da maldição de toda a humanidade, só porque provou um naco da maçã proibida?!... No século quando uma jovem francesa de 19 anos liderou a luta pela defesa do seu povo contra o invasor estrangeiro, a sentença dos bispos reunidos foi “exemplar”: queimar publicamente na fogueira Joana d’Arc.  
No âmbito dogmático-sacramental, o carácter nuclear do Sacerdócio e o seu conteúdo funcional específico está no momento da “Trans-substanciação operada pela Consagração do Pão e do Vinho na Eucaristia”. E, com o direito que assiste a qualquer ser pensante, pergunto: a Trans-substanciação terá sexo?... Respondam-me os teólogos, os biblistas, os liturgistas. E não esqueçam os antropólogos, os hermeneutas e afins.
 O recurso à analogia histórica (mas não tão sólida como a fazem) de que Cristo só escolheu homens para seus apóstolos ou colaboradores mais próximos, esfarela-se com uma linear constatação: se nos dias que correm ainda subsiste o estigma de que “onde está a cabeça (o homem) os pés (as mulheres)  não mandam”, quanto mais há dois mil anos, numa sociedade visceralmente patriarcal e machista, como eram a idiossincrasia e a religião judaicas!... É preciso ser-se muito anacrónico e retardatário para não ver a realidade factual de cada civilização e respectiva evolução. Muito vantajosa será, neste item, uma releitura dos Evangelhos, dos Actos e das Cartas Apostólicas.
Retomando as considerações exaradas no escrito anterior (23.03.19) a solução não está no exclusivo acto de orar ou pedir, mas antes no agir. Valorizem-se, por si próprias, as mulheres. Promovam-se a pulso e com brio, sem esperar a “esmola” das quotas. Já agora, com que suspensão ou excomunhão seria punido quem propusesse ao Vaticano um regime de quotas para as mulheres, a nível de ordenações, paróquias ou dicastérios romanos?!
 Quase finalmente, atrevo-me a dizer que reduzir a altíssima dimensão da espiritualidade e o plano libertador de Cristo ao simples tracejado da condição sexual é, no mínimo, defraudador, senão mesmo sacrílego. Nesse código, em vez de teologia estudar-se-ia sexologia…
Agora, mesmo finalmente, ouso terminar, não com uma cereja em cima do bolo, mas com um pingo de vinagre corrosivo e, ao mesmo tempo, estruturalmente construtivo, que resumo nestes termos:  Para alistar-se num regimento religioso como aquele que por aí prolifera e vegeta, à base de devocionismos pietistas, procissões populistas e similares – não vale a pena, distintas senhoras, orar pela vossa ordenação. Mereceis muito mais! E a Religião também!

25.Mar.19
Martins Júnior

sábado, 23 de março de 2019

UM DEUS DE DUAS CARAS


                                                        

“Porque hoje é Sábado”…
Comecemos com Vinicius de Morais para abrir o Livro que em cada fim de semana nos é proposto, com sabor a narrativa bíblica de longo alcance didáctico. Juntemos a esta rampa introdutória a tendência inata no psiquismo humano de transmutar a realidade em diversos cambiantes conforme o ambiente e a circunstância, tendência esta mais notória na interpretação dos mitos e na estratégia das religiões, de que é caso paradigmático a mitologia greco-romana quando, por exemplo, representa o deus Jano com duas caras (e, nalgumas versões, com quatro) por ser ele mesmo a divindade das mudanças ocorridas no mundo.
Mas não de Jano que me ocupo. É de algo mais difuso e confuso, como seja a dupla crença em que navegam, arrastam-se, vegetam ou hibernam os povos. Tomemos os textos de hoje:
No Livro do Êxodo e em toda a literatura judaica, o Autor formal e material de toda a história do povo hebreu tem um nome – Iahveh, Deus. Ele é que comanda as tropas, Ele é que abre estradas no mar, ele é que põe e depõe os líderes, os reis, faz e desfaz as instituições e as leis. O homem, “saído das Suas mãos” fica inelutavelmente prisioneiro autómato nas mesmas mãos. Faça sol ou chuva, haja sucesso ou prejuízo na agricultura, na economia, na saúde, “isso é tudo com Ele, Todo Poderoso”.
E assim se desensinou um povo, assim se alienaram gerações futuras, assim ficou a história manietada, inamovível, sob o bastão inflexível de Iahveh. Até hoje.
Mas não é assim que está escrito em Êxodo (3,1-8). Bem ao contrário! Na sua visão patriótica e angustiante (a escravatura a que o seu povo estava condenado durante 40 anos), ouviu Iahveh partilhar da mesma angústia e da mesma indignação. Mas não foi Iahveh quem liderou a oposição radical contra o Faraó. Mandou Moisés no seu lugar. A guia de marcha foi peremptória, inapelável: “Vai tu, Moisés”! E assim aconteceu.
Neste mesmo alinhamento de textos,  o Livro de Lucas (Luc. 13, 1-9) não deixa margem para dúvidas ou pias interpretações. A palavra de ordem é agir, produzir. A inércia e o quietismo, mesmo que disfarçados de pietismo confessional, ali não têm lugar. No texto citado,  o nosso Líder, o  Mestre, o Nazareno “agricultor” consulta a figueira que plantou com tanto carinho no seu campo. Consultou-a, dialogou, deu-lhe todas as liberalidades e nutrientes para poder alimentar-se e produzir em tempo oportuno. Tudo em vão. Fez nova tentativa. Sem sucesso, outra vez.. Resultado: cortá-la pela raiz.
Aqui ficam, em síntese, as duas caras com que os homens pintam o rosto invisível da sua crença e que deixam marcas decisivas na mentalidade e na conduta das sociedades. Como nos mais remotos lugarejos, também em certos ambientes de cidade, ainda persiste o vírus hipócrita dos ”deseducadores” do povo crente, anestesiando-o com devoções vazias, cortejos processionais de nítidos contornos populistas, afim de travar qualquer tentativa mínima de alterar o “status quo” paralisante, não só na esfera dita religiosa mas em todo o tecido sócio-económico e político.
Não é esse, porém, o pensamento dos genuínos cultores da espiritualidade que fazem da ideia a matriz da sua acção dinâmica e consequente. Assim os construtores da história, com Cristo-Líder na vanguarda. Não peçam ao Senhor Deus a paz – peçam-na aos imperadores do mundo. Não rezem a Deus por justiça – exijam-na aos legisladores, aos juízes e  aos “donos-disto-tudo”. Não acendam velas estéreis contra a violência doméstica – ensinem as famílias, proporcionem condições dignas,, curem as neuroses, punam os criminosos.  
Enfim, não arranjemos mais deuses nem máscaras para eles. Basta-nos o olhar vigoroso e terno do Mestre que hoje nos fala em Lucas (13,1-9) aquele Nazareno “de um só rosto e de uma só fé/ De antes quebrar que torcer”! (Sá de Miranda).

23.Mar.19
Martins Júnior

quinta-feira, 21 de março de 2019

AO LARGO DO ILHÉU-MAR DA PONTA DE SÃO LOURENÇO: FALA DE TRISTÃO E ZARGO


                              


Será monstro ou mostrengo
Promontório ou tenebroso cabo
O que os meus olhos tocam lá onde
Assomam esconsos do diabo
Para engolir as frágeis naus em que navega
A Cruz de Avis, de Sagres, de Jerusalém?

“Oh São Lourenço, chega”!
Que tanto maior que o medo que do monstro vem
Será o velame
Desta bandeira-gente lusa que se fez ao largo.
Ou não me chame
Tristão ou não me chame Zargo!

De ti rochedo informe
Farei o milagre do pão
Em jardim terreal
Pão enorme
Do açúcar do vinho tântrico do perfume oriental

Que todos te amem, jamais ninguém te tema
Estância universal em Dia do Poema

Adeus  mar bravio, sangue amargo
Das fragas em cachão
Ou eu me não chame Zargo
Ou não me chame Tristão!
  ,
21.Mar.19
Martins Júnior

terça-feira, 19 de março de 2019

REGISTO INTEMPORAL!


                                                    

Eremitérios há onde a Morte torna a Vida maior que ela. E é quando do silêncio da tumba emergem cânticos inauditos, à mistura com os crepes da saudade
Outros dedicar-lhe-ão místicos salmos, elogios fúnebres, inspiradas loas de merecida apoteose na hora da largada para o Grande Oceano.
Da minha parte, anónimo entre as gentes, vou levar-lhe o ramalhete rubro-lilás que trago atado ao peito desde aquela manhã de 8 de Fevereiro de 2006, em terras eborenses.
Ao colega de Seminário, ao Coadjutor da minha freguesia, Machico, depois meu Professor de Teologia Dogmática, ao  eminente Arcebispo, dedico e entrego o mesmo feixe de gratidão que nessa mesma data deixei sobre o féretro do seu - tão humano e generoso - predecessor, D. David de Sousa..
Jamais esquecerei o gesto nobre e corajoso quando me admitiu a concelebrar nas Exéquias Solenes de D. David de Sousa, o então centenário Bispo franciscano que na Sé do Funchal me ordenara Sacerdote em 16 de Agosto de 1962. Para quem se achava proscrito na própria ilha, o gesto do de D. Maurílio, selado com um abraço amigo, teve todo o sabor de quem vê abrir-se a porta de uma prisão ingrata. Por isso, a mancheia de flores que lhe trago tem o vermelho dos cravos e o humilde, oloroso perfume das violetas.
Travessa da Saudade, nº 6, foi o seu berço, em Santa Luzia do Funchal, desde há 86 anos. E sereno ficará connosco para sempre no horto de uma Saudade, precursora do Reino da Felicidade.

 19.Mar.19
Martins Júnior

domingo, 17 de março de 2019

50 ANOS – MAIORES QUE 600!


                                                        

Não é hipérbole, não. Nem muito menos exaltação megalómana de meio século marcado  com a nossa chancela. É a constatação empírica de que cada geração vive o seu tempo histórico, pessoal e colectivo, intransmissível naquilo que possui de responsabilidade e acção. Sim, estes 50 anos revelaram a pujança de uma geração que “não comeu o pão de ninguém”, bem ao contrário, semeou o trigo, arroteou os socalcos, recolheu as espigas, moeu-as com dor e amor, cozeu o pão e, finalmente,  pôs a mesa e os talheres para que hoje todos pudessem saborear a ementa da Liberdade que a cada ser humano pertence, como direito inalienável.
Foi este o respiro largo e livre que viveram os semeadores de cravos impossíveis no húmus de onde nasceu e cresceu a “Carta A  Um Governador”, entregue em 1969 ao titular residente nesta mesmo terreiro, o Palácio de São Lourenço, coronel Brancamp Sobral.
Cumpriu-se a esperança! Sábado, 16 de Março 2019!
O que se passou nessa tarde sabatina, dentro daquelas paredes onde antes (e, paradoxalmente, depois) de Abril/74 esteve amordaçada a democracia e agredido o povo ilhéu, o que se viveu ali cabe no sintético binómio: Saudade e catarse.
Momento de saudade, por rever lado a lado os que cá estão  e fazer reincarnar os que partiram para a viagem sem retorno. Segurarmo-nos pela mão e pelo coração, sacudir 50 anos de rugas e escamas que se colaram à epiderme do quotidiano da gente. Aos promotores da famosa “Carta” –  jovens eram na altura, alados, sonhadores como “Quixotes” do tempo futuro e, como Vieira e Bandarra, cantautores  do “Quinto Império” da Liberdade – que bálsamo vê-los ali, curvados de ombros mas erectos de alma, contando os medos de então, as ameaças de que foram vítimas, as famílias visadas e perseguidas, enfim, a  dolorosa “Via Crucis” até alcançar o pico alto onde hoje moramos e queremos manter como legado aos próximos inquilinos deste planeta insular.
Momento, também, de catarse, enquanto higiene existencial, mental e sobretudo político-social, que nos faz balancear entre dois estados: antes, o fascismo uniu-nos num só e mesmo combate. Depois, a liberdade desuniu-nos. Não quanto aos diferentes caminhos e distintas estratégias de luta, o que é uma conquista de maior valia, mas no volume da entrega, no despojamento total, na mística sem limite que animava a geração dos “Cartistas” de há 50 anos. É urgente e é premente que tal impulso altruísta e mobilizador floresça inter-grupos e, atenção máxima, intra-grupos, que os leve a lutar pela Causa Comum e não pelas benesses furtivas do interesse pessoal ou de clã. Porque gladiadores, combatentes e condutores das massas sempre os houve e em todos os tempos. Mas genuínos e consequentes foram os que, purificando o seu olhar interior, esqueceram-se de si mesmos e “abriram ao país as portas dos  Abris” de então: em 1383-1385,  em 1640, em 1820, em 1910, em 1974! … E, nesta data,os valorosos subscritores de 1969.
Valeu a pena.
Imenso e largo oceano foram os 600 anos. Mas decisivo, porém,  e maior para esta geração foram os 50, gloriosos precursores do 25 de Abril de 1974.
O novo e outro Abril é connosco, já. E amanhã será com os que guardarem hoje o ânimo da “Carta” de 1969.

17.Mar.19
Martins Júnior      
  


sexta-feira, 15 de março de 2019

“ABRIL” REGRESSA AO PALÁCIO DO POVO!


                                                          

As árvores não crescem por decreto. Nem o sol de todas as manhãs espera a aprovação do parlamento para cumprir a sua rota. Pintar de verde e luz todo o planeta é algo que parte das raízes do próprio ser. É a sua autenticidade e a razão do seu existir.
É assim que vejo os grandes movimentos da história, a génese de todas as metamorfoses que transfiguram pessoas, costumes, sociedades. Terá de haver liderança, é certo, alguém fará soar a trombeta conclamatória que mobilize a multidão. Mas nunca por nunca serão autênticas e eficazes se partirem exclusivamente do vértice da pirâmide social. Têm de emanar do subconsciente latente activo, preso à força telúrica da comunidade.
Porquê tanta premissa e para aonde a conclusão?
Vemo-nos rodeados, quase afogados, de um turbilhão de iniciativas vistosas, musculadas, clangorosas, num tropel de efemérides e comemorações de todo o jaez, tais como os badalados “600”. E, logo na vanguarda, surgem as entidades, os vértices, montadas nas ricas selas da manada. É o Povo, quase sempre, o grande ausente, quando deveria ser ele o grande protagonista e beneficiário do acontecimento. Por isso, elas – as magnificentes comemorações – esperneiam, passam por cima e depressa estrebucham no ar, como os fogos fátuos que as acompanham.
Ao contrário, quando tudo começa pela raiz, o tronco sobe, os ramos abrem-se e na  ponta frágil dos seus dedos  crescem flores e frutos.
É a esta luz que descubro e interpreto o propósito de erguer de novo os Cravos de Abril, numa feliz iniciativa de cidadãos madeirenses, esses que também fizeram aparecer Abril em Portugal e nesta Região, mercê do seu esforço libertador, numa época em que a factura lhes pesava duramente nos ombros e na vida. Louvo a oportuna inspiração do Padre José Luís Rodrigues em agregar muitos dos ‘combatentes ilhéus’ que antes e depois de 74 estiveram na  linha da frente, destacando-se essa pléiade de intelectuais, trabalhadores e até sacerdotes que subscreveram e enviaram, em 1969, a famosa “Carta ao Governador”. Eles estarão presentes amanhã, Sábado, pelas 16 horas, na sede do poder, o Palácio de São Lourenço, para dar testemunho vivo e palpitante da sua luta de há 50 anos.
   O local é emblemático. Na sede do domínio filipino, nas ameias do castelo onde reinou o poder colonial salazarista, enfim, na torre de menagem do “Palácio do Povo” , é imperioso içar a bandeira da Liberdade conquistada em 25 de Abril de 1974 e todos os dias hasteada na alma nativa madeirense,
Lá estarei!

15.Mar.19
Martins Júnior



quarta-feira, 13 de março de 2019

UMA CULTURA DOS “600”


                                                    

Elas – e eles -  por aí andam vagantes, ansiosas por  cair nos braços de quem as tome. Elas – são as comemorações, as reincarnações sazonais. Eles são os festejos, os programas, quanto mais campanudos melhor. O importante é o rufar dos tambores esmaltado com o estridor das cornetas. E marchar, marchar!...
Neste 2019 é o que está a dar. Aqui é o aniversário do clube, acolá a década do machete, mais adiante os dois lustros e meio da associação. E, ‘acima de tudo’, os 600 anos. Parafraseando o badalado “Je suis Hebdo”, também na testa de cada madeirense teimam em por lá o carimbo obrigatório: Queiras ou não queiras, tens de ser “600”!
Excepcionalmente, hoje sigo o método indutivo. Vou passar do particular para o universal. Foi esclarecedor acompanhar, via ‘media’, o debate no parlamento regional sobre a Cultura. E a Cultura ali não tinha outra cara senão a do “600”. Deixem-me respirar para esquecer certos remoques sem ponta de chiste, como “Sr. presidente, vou-lhe dizer uma coisa…” ou esta pasmaceira” ou ainda “lume nas patas” (sic!) e outros que tais, inclusive “O sr. deputado tropeçou no vinho e caiu dentro da levada”. Alta cultura e não menos alta costura para vestir Sua Excelência “o 600”!
Passando ao largo destes ridículos baixios, o único e necessário não será montar os cavalos dos capitães donatários, nem erguer-lhes mais uma estátua morta, nem muito menos esbaforir rajadas quixotescas para agitar moinhos de vento nas barbas de Zargo ou Tristão. Como já ouvi, fora do parlamento, o importante é “fazer algo que dure e perdure”. E o que melhor pode “durar e perdurar” são os valores inerentes a cada século e a cada geração, o que implica conhecê-los, mesmo que em contra-luz, e reinterpretá-los na era que nos foi dado ocupar. Seria útil e meritório desdobrar as pregas da história, expô-las com toda a dignidade e transparência, levá-las à visibilidade plena das suas consequências – o mundo que “eles” nos legaram - e recomeçar a epopeia dos nossos ancestrais. Que se não pare a marcha dos 600 anos, amarrando-lhe os pés à barra dos 500, como malogradamente – e desonestamente - fizeram aos “500 anos da Diocese” em 2014, em que 100 anos foram prática e estrategicamente obliterados. Que não fiquem outra vez na tumba do esquecimento ou nas meias-águas da indefinição pessoas e factos que todos os dias redescobriram a Ilha e a povoaram de ideais maiores “que  permitia a força humana”.
Descendo, de novo, ao particular, seja-me permitido acentuar tanto quanto possível a fidelidade histórica, situando o epicentro das comemorações em Machico, Primeira Capitania, em Carta outorgada a 8 de Maio de 1440. Que a insularidade  - a “Madeiridade”, essência do madeirense – não nos impeça de abrir-nos à globalidade. Mas que, em permuta, a globalidade não nos dissolva na amálgama do gregarismo e, muito menos, nos ampute do melhor que ficou e ficará dos 600 anos: a nossa identidade.

13.Mar.19
Martins Júnior

segunda-feira, 11 de março de 2019

ESCRAVOS DO TEMPO E DONOS DELE – 70 DIAS PASSADOS E 295 FUTUROS!


                       


Setenta já, vencidos. Quase trezentos, vincendos!
Setenta léguas corridas. Quase trezentas por correr.
Setenta, a acabar. Quase trezentos, a começar.
Setenta folhas escritas. Quase trezentas abertas em livro branco.
Horas, minutos, instantes, perdidos. Dias e meses ganhantes.

Na ressaca dos carnavais saltitantes, alienantes, alucinantes, faz bem parar, olhar, ouvir… e ligar de novo o GPS da vida.
Pouco tens a perder. E tudo tens a ganhar.
Cada dia será palma vitoriosa na tua mão.
Cada hora será pista conquistada a teus pés.
E cada instante será verso branco na epopeia, se quiseres, do teu sonho.
Se do Tempo és escravo, tu serás o seu Senhor!

11.Mar.19
Martins Júnior

sábado, 9 de março de 2019

ENTRE 7 E 9 DE MARÇO – UM CORPO E ALMA DE MULHER!


                                                             
 
            Podem chamar-lhe de persianas abertas para deixar passar a luz serena de um perfume de mulher. Podem também atribuir-lhe a graça de um poema sem rima nem métrica ou prosa ligeira nas margens da água corrente. Mas o que hoje quero deixar neste chão é a imagem de duas enormes  tochas acesas na ara branca onde se adora a deusa primeira – a essência feminina. No dia 7 recorri à mitologia pagã, erguendo ao alto a excelsa “Vénus”, tão diabolizada pelos avatares crapulosos sem vislumbre. Hoje, bato às portas milenares de Sião para exaltar as mulheres de Jerusalém, de pele morena e olhos doces, mas penetrantes como feixes  reluzentes, aquelas mulheres que se apaixonaram pelo Nazareno e nunca mais o deixaram, presas que estavam da sua palavra, do seu afecto e da sua acção.
             Com esta tocha acesa pretendo esconjurar os fantasmas que amarraram, durante séculos, milénios, a Mulher - explorada pelos semeadores das trevas, vilipendiada pelos guardas do Templo. Quanto daria eu, talvez a própria vida, para ver o Nazareno deambulando pelas ruas de Jerusalém, dirigindo-se às mulheres, suas vizinhas e companheiras de jornada, dialogando com elas, até com prostitutas, para depois discutir com os mafiosos doutores da Lei, os fariseus, acerca das mulheres,  apostrofando contra os puritanos hipócritas da Grande Sinagoga e escrevendo na areia dos caminhos os vícios pútridos daqueles que exigiam o apedrejamento da mulher acusada de adultério. O nosso Mestre não se acobardava nas malhas do silêncio, antes fazia garbo em provocar ostensivamente os imbecis moralistas da cidade. E voltava a acompanhar com elas, suas amigas e colaboradoras, a mais notória das quais Maria de Mágdala.
         Mas uma circunstância impressiva incitou-me a acender esta tocha para o Dia da Mulher, ontem rememorado. É que ontem, 8 de Março, primeira sexta-feira do tempo chamado Quaresma, foi também o primeiro dia comemorativo da tragédia que levou ao assassinato do Mestre, ou seja,  o percurso do Caminho da Cruz,  vulgarmente dito “Via-Sacra” – outro horrendo episódio tão manipulado pelos fabricantes de mitos depressivos.
         Foi aí, no trajecto das ruas da cidade até ao lugar do patíbulo, aí é que se viu a supremacia da Mulher – das mulheres, suas amigas e colaboradoras, que arrancaram do peito energias indomáveis para afrontar as iníquas sentenças do poder politico e religioso, quando saíram à rua e, por diversas formas, manifestaram o seu apoio à Vítima Inocente, acompanhando-a até ao fim. Primeiro a sua Mãe, Maria, que correu ao encontro do Filho, maltratado pelos “jagunços” a soldo dos poderosos. É a IV Estação. A seguir, na VI, é a vez daquela, depois chamada Verónica, uma rapariga que não suporta o rosto de Jesus, todo desfigurado por uma noite de tortura na cadeia e uma degradante  manhã de toda a espécie de agressões. Sem medo da guarda pretoriana, ela fura o cordão militar de segurança e vai até junto do  Mestre, desdobra uma toalha de linho e restitui-lhe o brilho original do rosto. É a VI Estação. Mais adiante, são muitas as esposas e mães que manifestam com o seu pranto a solidariedade ao seu Amigo e Defensor. É a VIII Estação.  Quando, enfim, suspenso no madeiro, quem lá está, como testemunhas, estátuas da dor, alanceadas mas vigilantes? As mulheres, acompanhadas do discípulo mais jovem, João. É a XII Estação. E na XIV e última,  ao descê-lo da cruz, quem o recebe nos braços, já cadáver? Uma mulher, sempre. A sua Mãe. Onde estariam os “fiéis” apóstolos?... Fugiram, transidos de medo. Fortes, firmes, inabaláveis – só as mulheres!
         E, nos termos da narrativa bíblica, quando o Mestre quis anunciar o  triunfo sobre a morte, não foi um anjo, não foi um dos Doze, não foi um emissário credenciado que escolheu para levar a mensagem. Quem, então?... Uma mulher, Maria de Mágdala. Sempre a Mulher, na vanguarda!
         O nosso Líder-Cristo há-de ficar no Grande Atlas das Civilizações como o protótipo, o primeiro e único  protagonista religioso que colocou a Mulher na vértice da História, co-Criadora do Mundo e Princípio Activo da transformação humana. Daí, o respeito e a defesa intemerata do estatuto da Mulher. Aprendam “agora, ó sábios da Escritura”! - diria Luís Vaz de Camões (CantoV, 22).
         Aqui fica o meu preito de homenagem, com “Vénus bela” e a Mulher de Jerusalém – todas as mulheres judias, todas as mulheres do Mundo. Entre 7 e 9 de Março, duas tochas eternamente acesas no altar da Essência de Mulher”!

09.Mar.19
Martins Júnior


quinta-feira, 7 de março de 2019

A “VÉNUS” DE MILO E A DIABOLIZAÇÃO DA MULHER


                                                   

- Sabes, no fim do teu discurso, o Senhor Bispo perguntou-me: “Quem é aquele rapaz que falou da “Vénus” de Milo?... Preciso sabê-lo. Sigam-lhe os passos e mais tarde informem-me se estará apto à Ordenação”.
Aconteceu num dia como este, 7 de Março de 1957. Tinha eu 17 anos. Era a Festa Solene da Filosofia, o dia dedicado ao grande autor da Summa Theologica, Tomás de Aquino. Os nossos mestres filósofos indigitavam um aluno de cada ano de Filosofia para apresentar um trabalho escrito na não menos solene sessão, perante  todo o corpo docente e discente, sob a presidência do velho bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro.  Coube-me, nesse ano, a incumbência de subir à tribuna do Salão Nobre do Seminário da Encarnação, Funchal para, em representação dos alunos de Filosofia, fazer o panegírico de São Tomás de Aquino, a quem cognominei de “Poeta-Filósofo”, que o foi de verdade. Entre outros conceitos desenvolvidos, citei Fernando Pessoa: “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo”.  Tanto bastou para, no fim da sessão, ser chamado ao gabinete do meu Professor Pe. Dr. Abel Augusto da Silva, e escutar obedientemente a repreensão do prelado madeirense, reproduzida no primeiro parágrafo deste escrito.
Começou aí o meu percurso, inteiramente assumido, para entender o fenómeno Mulher, a sua grandeza e o seu estatuto ao longo da história humana. Percebi que a censura do velho bispo mais não era que o padrão doutrinal e dogmático da Igreja, mais cirurgicamente da Religião, face à Mulher e à sua diabolização, transmitido aos futuros ministros eclesiásticos, pregadores e supostamente pedagogos do povo crente. Desde a primeira página da Bíblia, em que a Mulher valia apenas uma costela do macho-homem, até Paulo Apóstolo que, entre outros “mimos” disciplinares estatuía um delicado normativo que peremptoriamente promulgava: “As mulheres estejam caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar…E se quiserem aprender alguma coisa, perguntem em casa aos maridos, porque é uma coisa indecente o falar as mulheres na igreja” – desde sempre, conclui-se,  os sequazes da religião do Livro – cristãos, judeus e maometanos – sempre subalternizaram e, nalguns casos, condenaram a Mulher na praça pública à mais ignominiosa sentença de morte, amputando-lhe os mais elementares direitos humanos.
Compete à sociedade contrariar e corrigir os insustentáveis comandos bíblicos, absolutamente anti-humanos e contra-natura, os quais ainda persistem como ancestrais arquétipos da práxis social, Felizmente tem-se constatado esse esforço, de século para século, de década para década e, até, de ano para ano. Compete à Mulher conquistar o seu lugar ao sol, como gloriosamente tem sucedido, não apenas pela esmola legislativa das “quotas” disponíveis,, mas pelo talento e pela força intrínseca do ADN feminino, Não obstante, as trágicas barbaridades ultimamente cometidas, é facto indesmentível que a Mulher tem alcançado, a pulso, o pódio das competências intelectuais e sociais, de que é paradigma exemplar a entrada para as magistraturas judiciais: de 10 ingressos, 2 são homens, 8 são mulheres. Por este andar, tenho para mim que um dia chegará em que um novo e outro sistema – o Matriarcado, um outro e novo Matriarcado – suplantará o corpulento e anquilosado regime do Patriarcado que ainda perdura no tempo. Então será o tempo do equilíbrio e do abraço inter-géneros. Aí, ombreando lado na lado, na ciência, na justiça, no “salário igual para trabalho igual”, homens e mulheres aprenderão o código da mais genesíaca complementaridade, sem a qual nunca haverá vida plena e mundo habitável. É nessa data que todos os juízes, todos os tribunais de família, todos os advogados e meirinhos seguirão as mesmas pegadas e o mesmo exílio austeritário e deprimente  de todos os “Netos de Moura” que ainda vegetam por esse mundo. Será também o tempo em que nenhum bispo, deformado e sorumbático, baixar-se-á  à  pidesca tentação de perseguir alguém que ame e apregoe a beleza de todas as “Vénus” de Milo que se erguem, benfazejas, diante do nosso olhar transparente, porque desinibido e limpo de traumas hereditários, sejam eles bíblicos ou satânicos.
Entre 7 e 8 de Março, quero ultrapassar, nem que seja momentaneamente, o empedrado onde corre o sangue das violências domésticas e subir mais acima e mais além para colocar num trono real e num altar quase divino a majestosa e  bela Essência de Mulher!

07.Mar.19
Martins Júnior
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terça-feira, 5 de março de 2019

CADA QUAL SEU CARNAVAL – “MADEIRA CARNAVAL”… PRECISA-SE!


                                                         

Podia começar este breve apontamento, evocando         a velha canção de João Maria Tudela “E tudo é Kanimambo”, inspirada no folclore moçambicano. “E tudo é carnaval”, podemos assim fazer uma trupe representativa de todas as outras que há por esse mundo fora. E tudo é carnaval!... Cada qual procura o seu. Sábado passado, logo três – três carnavais puseram Portugal em alvoroço, de lés a lés: a norte, o perigoso tropel das hostes portistas-benfiquistas num desfile de alto risco., que galvanizou milhões de adeptos. A sul, a apoteose do Festival da Canção em surpreendente corso que siderou milhares de fãs. E, por último, o Rio de Janeiro inundando  as avenidas do Funchal para milhares de milhões em todo o mundo. É caso para confirmar: cada qual, seu carnaval. Porque tudo é carnaval.
Não esperava chegar a esta circunstância peculiar de organizar uma trupe de parágrafos nesta terça-feira de carnaval. Mas o facto é que estamos diante de uma realidade incontornável. Os corsos carnavalescos vieram para ficar. E é ver a azáfama, o empenho, a generosidade sem limites de uma multidão de voluntários que, nos bastidores do “teatro das operações”, dão corpo e alma para que a sua trupe seja a maior. E nisto vai a grande medalha de ouro para todos os foliões, do maior ao mais pequeno. Paralelamente, porém, a esta qualificação comunitária do carnaval, junta-se-lhe também todo um sistema de válvulas orgânicas e psicológicas que produzem esse néctar relaxante chamado catarse global.
No entanto, mandam as balizas da visibilidade crítica (no sentido mais positivo da expressão) olhar e “ver” a singularidade de certos estilos carnavalescos. Falo da singularidade (da que há e da que não há)  enquanto originalidade criativa, representativa da terra e do povo onde se desenvolvem os desfiles. Neste âmbito, o que mais se ouve dizer acerca do corso carnavalesco do Funchal é que, não obstante a sumptuosidade e a opulência do guarda-fato, pouco de original brilhou pelas ruas da cidade, mais parecendo um enorme tatuagem do sambódromo do Rio transposto para a estreiteza do Funchal. A indumentária (ou a falta dela), a plumagem maciça em todos os grupos, as repetidas coreografias, enfim, e a música – ai, o massacre das mesmas vozes cariocas, o plágio sem pudor dos mesmos  temas brasileiros. Seria caso para um sugestivo cartaz turístico: “Quer ver o carnaval do Brasil? Então não pegue o avião, tem-no aqui à sua porta”!
E o mais confrangedor (e talvez abusivo) é o já roído carimbo de 2019: os “600 Anos”. Em tudo quanto aparece à tona de água, - seja mato ou seja gente -  prega-se-lhe logo o selo oficial do baptismo: “600 Anos”.  O imponente cortejo do Funchal, nos moldes em que foi concebido, seria sempre o mesmo, acontecessem ou não nos seis séculos do Achamento da Ilha”. A bem da verdade, requerer-se-ia maior criatividade autónoma, marca Madeira.
           Esse toque de verdade local é nas zonas extra-Funchal, mais exactamente nas periferias, que encontra o seu habitat inspirador. E viu-se, nalguns casos, em que foi o povo da terra o protagonista do seu carnaval. Não eram vedetas (importadas, a peso de ouro), mas identificava-se bem a força telúrica, a entrega anímica, a alegria transparente no rosto de novos e idosos que desfilavam sem complexos. Um carnaval assim cumpre o seu lugar: descomprimir o ambiente e libertar as pessoas. É por isso que se põe em causa a participação das trupes da capital nos restantes concelhos e freguesias da Madeira. Se, por um lado, deixam nota excelente pelo brilho da indumentária e pela perfeição artística de uma coreografia profissional, por outro subalternizam os grupos  locais que não se pouparam a esforços, dia e noite, para brindar com galhardia carnavalesca a população residente. Finalmente – e outra vez – a música. Chega a indispor o mais incauto observador ter de suportar a “brasileirada batucada” (aqui pode usar-se o termo preciso, uma overdose), que lhe fura os tímpanos, de cada vez que passa uma trupe. Se me fosse permitido, ousaria propor aos patrocinadores   que, de futuro, não massacrem mais o público com estafadas canções de fora,  que já são sobejamente conhecidas. Em seu lugar, estimulem os organizadores à criação de músicas originais (assim se faz em Machico) que traduzam a autêntica cultura regional para que o nosso carnaval divirta, eduque e faça surgir os talentos que por aí andam e assim se reforce e engrandeça o “Carnaval, Marca Madeira”!

05.Mar.19
Martins Júnior