sábado, 31 de dezembro de 2022

TURBULÊNCIAS DE FIM DE ANO: MAUS ACABAMENTOS - VÉSPERA DE BONS COMEÇOS ?!...


--Da análise dos ventos e acontecimentos, a sabedoria popular retira o princípio geral,  eminentemente pragmático: “Maus começos, bons acabamentos”.

Pois, hoje, perante a truculenta aterragem do longo curso do ano 2022, forçoso é inverter o ‘ónus da prova’. 

Eles aí estão os acabamentos, nem é preciso rodar o trinco da porta para deixá-los entrar. Já estão dentro, na ponta dos teus dedos, basta accionar o porumdeusmedonho, ‘comando’ e logo saltam como fantasmas da noite:

        No Irão, 100 pessoas em risco de serem assassinadas pelo governo, por reclamarem o seu direito.

        Do Irão viajam centenas de drones rumo à Rússia para afogar gente inocente, indefesa em Kiev.

        Da Rússia partem os monstros da morte, cegos como feras da

      selva, ‘abençoadas’ por um deus ortodoxo e medonho um povo ucraniano.

*  No outro extremo, furam as epidemias, atiram-se mísseis como brinquedos de carnaval, desabam as forças da natureza picadas pela mão do hom.

*  E o tridente da morte trouxe, na bandeja fatídica, estrelas de primeira grandeza do desporto-rei, da Roma pontifical e, junto de nós, um distinto ‘pároco da aldeia’.

*  Na Madeira, enquanto tudo se embriaga de luz aos borbotões, desde a serra ao mar, o Bispo do Funchal enche a Sé Catedral do realismo duro e cru, os acabamentos sombrios de muitos anos que a sociedade não consegue esconder: habitação e a falta dela, a  pobreza, o custo de vida,, a falta de emprego, os jovens e as drogas, enfim, as chagas da cidade. Nem tudo são rosas brancas…

         Estão chegando as badaladas suspiradas. Um frenesi toma conta das pessoas e dos champanhes- A pergunta é só uma: Onde armazenar os acabamentos de 2022 ?... Serão suficientes os 58 postos de fogo?... Que pesarão mais: as 10 toneladas de explosivos ou as milhares enunciadas pelo Bispo do Funchal no ’Te-Deum’ da Catedral ?

         Ilha dos Amores – diria Camões.

Ilha Milionária – dirá o Zé Povo quando passar a depressão

 

31.Dez.22

Martins Júnior

 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

“vivos”

 



 

         Para definir a realeza humana destas duas personalidades, nada melhor que ir ao seu país e ouvir a voz do cidadão brasileiro e cidadão do mundo, padre António Vieira:

         “Só vivemos quando fazemos. Quando não fazemos, apenas duramos”

            Por isso os dois estão vivos:

             Um, pelo que fez e pelo legado que nos deixou.

             O Outro, pelo que fez e esperamos continue a fazer.

             Cada um em seu trono, ambos fizeram, fazem e farão um Mundo Melhor.

29-Dez.22

Martins Júnior 

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

O ”25” NO “27” – SAUDADE, SILÊNCIO, EXULTAÇÃO

                                                                   


    

Ficou branca a folha 25. E muda. E por ser branca e muda ficou plena.

         Deixem a Parturiente em paz, esse  despojo maior de todos os partos, após a peleja interior de conceber e pôr no mundo um novo ser. É o silêncio contemplativo o mais doce prazer e a mais bela homenagem à Mãe e ao Filho.

 Por isso ficou branca a folha 25!  Por isso basta-me ficar sentado à porta da furna para onde a cidade atirou o Nascituro iminente. Sentado, como Platão, de costas para essa sociedade que hoje faz da furna um trono onde se respaldam os magnatas “em berço dourado” cantando a “Vós, meu Menino, em palhas deitado”. E do trono bocejam mensagens de Natal urbi et orbi. Sarcasmo intragável é o panegírico que fumega das mitras, também douradas encimando libré, também dourada (vulgo dicto, paramentos) exaltando o Menino nuzinho e a sua “Mãe a chorar por não ter sequer  uns panos com que o possa abafar”.

Por favor, poupem-nos os ouvidos, descarbonizem-nos a mente, parem de poluir o ar branco e puro do 25! Dêem uma oportunidade…

                                                      


Por coincidência, o silêncio cobriu o céu chuvoso de Machico quando, na manhã do 25, se espalhou a notícia da morte do “Grande Irmão”, o Padre António da Silva Ramos, pároco de Piquinho e Preces. Meu Colega no Seminário, meu Camarada-Capelão Militar, meu Confrade e Vizinho, ‘porta com porta’ entre Ribeira Seca, Caramanchão e Ribeira Grande. Do muito que conversávamos sobre o futuro incerto da Igreja na Madeira, tudo quanto do meu apreço e amizade já lho disse em vida.

                                                          


Mas o manto diáfano da Grande Nau que transporta todos os mortais estendeu-se a todo o país quando o talentoso e superdotado António Mega Ferreira fez, ele também, a viagem sem retorno. A obra e as cartas - os livros – que nos deixou falam por si. Dispensa, pois, aquele automático desfiar de litanias repetidas, (para mim, brigada do reumático de serviço) para endeusar quem está reduzido às humanas cinzas mortuárias. Mega Ferreira já não os ouve. Tudo o que dizem ao morto deviam tê-lo dito em vida. Em horas e circunstâncias,  talvez, em que ele mais precisava. Dele e dos grandes “que da lei da morte se vão libertando”, poderíamos parafrasear a velha e bela canção coimbrã:

         Quando eu morrer, rosas brancas

         Para mi ninguém as corte

         Quem delas prescinde na vida

         De que lhes servem na morte

 

         Se, porém, a folha 25 fica branca e muda pelos fundamentos enunciados, a folha 27 exalta de júbilo transbordante por um ‘novo renascimeno’: no Brasil, o imenso e intemerato coração do Padre Júlio Lancellotti bate hoje a septuagésima quarta pulsação anual de uma partitura gizada ao ritmo de um renovado “Grito do Ipiranga” em defesa do direito e da justiça no seu país e no mundo. Cada qual no seu lugar e no seu tempo, Lancellotti entra na galeria tormentosa e gloriosa de um Helder Câmara, António Fragoso, Calheiros, Boff no Brasil e António Ferreira Gomes, José Felicidade Alves, Mário Tavares Figueira, em Portugal.

Júlio, estamos contigo: a tua voz é a nossa voz!

À Paz Branca e à Saudade silente do 25

E ao clamor felicitante do 27

O ABRAÇO QUE NOS UNE E  FORTALECE !

 

27.Dez.22

Martins Júnior

sábado, 24 de dezembro de 2022

QUEM NASCE UMA VEZ RENASCE SEMPRE – CONVERGÊNCIAS NO ‘GPS’ DE TODOS OS NATAIS

                                                                       


É uma sedução irresistível refazer o caminho das origens e encontrar em cada curva, mesmo dolorosa, um apelo à renascença do melhor que em nós habita. Isso foi a surpresa que nos esperavam as duas datas traçadas  na pedra que cobre o átrio das gentes da nossa comunidade: 1999 e 2019. Surpresa não terá sido exactamente, talvez conquista poderá chamar-se ao que então aconteceu. E porque é desses conteúdos que nos ocupámos, em comunidade, nestes dois dias, permitam-me partilhá-los convosco muito resumidamente, em virtude da soma de tarefas a que  nos obriga a época natalícia.

         VIII

         1999

         Passado o cabo das tormentas terrestres de1985 e atiradas à agua turva das ‘cisternas rotas’ as facécias sacro-cómicas de 2010 (às quais  já nos referimos nos dias transactos) a Ribeira Seca confirmou a força do direito que está no Povo - em contraste aberto com o direito da força que assiste aos poderosos – e aí reforçou o seu templo, requalificando-o no alargamento do  espaço utilizável, bem como no aperfeiçoamento estético das suas linhas originais, sempre na convicção de que, em qualquer comunidade viva,  a igreja é o presépio quotidiano, inamovível, onde todos se reúnem em redor de um Jesus mobilizador das consciências. Esta é uma igreja à medida dos utentes: modesta de forma e potencialmente rica de fundo. Recusámos as ambições megalómanas das sósias Vaticanas, onde o Jesus de Belém decerto recusar-se-ia assentar arraiais, mais que não fosse pela configuração gémea do Capitólio, sede do poder capital e do armamento. Também não esperámos nenhum apoio do regional apoio ‘grego’ das estruturas governativas porque, pela experiência colhida na construção de outras igrejas madeirenses, tais apoios mais não são que rasteiros ‘cavalos de Tróia’ desejosos de penetrar nos aldeamentos da população rural. Ela aí está, a autêntica ‘Igreja Popular’, como o Povo canta, na mais genuína semântica deste qualificativo. Foi esta mais uma manifestação do Natal rejuvenescido no meio de nós.

\        IX

         2019

         Terá sido, porventura, a mais retumbante vitória deste rincão rural,, vitória contra a ditadura eclesiástica que, durante mais de quarenta e cinco anos manteve o decreto de afastamento do pároco, chegando a suspendê-lo ‘a divinis’, sem qualquer processo jurídico-canónico. Preferia que outrem sinalizasse e comentasse este procedimento anómalo, dado que, como é sabido, o caso tem a ver com o subscritor destas linhas. Apraz-me tão só relevar um sintoma que define a justiça eclesiástica, sucedânea da Igreja Inquisitorial, possessora de um poder discricionário sem rédeas e do mais supino direito processual, visto que neste caso os extremos tocam-se: o suposto “réu” foi condenado sem processo e, com a mesma insustentável leveza jurídico-canónica, sem processo foi absolvido!...

Ridicule, mais chatmant.

         Isto também é Natal, mesmo fora de Dezembro.

Encerro aqui, já em véspera de Festa,  o ciclo novenário das

tradicionais “Missas do Parto” do ano 2022, as últimas que me foram dadas para reflectir e mais tarde recordar.

Hoje, Festa do Perdão para a comunidade da Ribeira Seca, tentámos ver e viver em retrospectiva os Natais de outrora. Somos herdeiros de um legado de seiscentos anos, talentos e mediocridades, grandezas e misérias dos  nosso antepassados. Somos nós a “fénix renascida” do Brazão de Armas de Branca Teixeira. Neste renascer quotidiano, que legado deixaremos às gerações vindouras, que Natal transmitiremos?!...

 

23-24.Dez.22

Martins Júnior  

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

PEDRAS QUE FALAM NOS CAMINHOS DE NATAL

                                                                         


Caminhamos para lá, guiados os nossos passos pelas pedras da calçada, a calçada do átrio da Ribeira Seca. Olhar os Natais de outrora, cantados e vividos pelos nossos antepassados - aqueles que pisaram este mesmo solo que hoje pisamos – é como subir à montanha e fruir da visão global da paisagem, neste caso, do Natal.

         V

         No chão de onde vos falo, o adro, vem logo a seguir a inscrição, em godos ou pedra roliça, da gloriosa efeméride de 1974. Além do histórico derrube da ditadura, os rurais da Ilha, sobretudo de Machico, viveram intensamente a abolição do “leonino contrato da colonia”. Foi Natal do Povo Português mas mui soberanamente para os colonos ou caseiros ilhéus, também os da Ribeira Seca, que lutaram acerrimamente paras que se cumprissem na Madeira os ideais de Abril. Interpretámos o “25 de Abril de 1974” como a realização dos vaticínios de Isaías Profeta, lidos e proclamados em todo este ritual propedêutico do Natal. Parca, ainda e em gestação essa realização, mas experiencial e credível. Basta ler os textos do Profeta para nos apercebermos de que as promessas ligadas ao Nascimento de Jesus são as mesmas ardentemente desejadas pelo Povo Português em 1974. Daí, a presença efectiva desta data nas ‘pedras que falam’ durante a caminhada para o Natal desta terra.

         VI

         Mas não é só de magia e cânticos que se faz Natal. A todo o parto está associada a sombra – e mais que sombra – a realidade do sofrimento. A Maria disse o velho Simeão no Templo de Jerusalém: “Este teu filho nasceu para ser sinal de contradição. E prepara-te, porque uma espada de dor trespassar teu coração”. Duro, cruel, crudelíssimo!

         Mas são os factos que o confirmam. “Quem quiser passar além do Bojador/ Tem de passar além da dor”. Já nos prevenira Pessoa. O Povo, nado e criado neste modesto burgo rural, sentiu que o seu Natal tinha uma factura anexa ao seu cartão de cidadão: a campanha organizada na sombra pelos magnatas locais, donos do poder civil e religioso. Conluiaram-se secretamente em 1985. E em 27 de Fevereiro, 70 agentes policiais, às 7 horas da manhã, assaltaram o templo e a casa da paroquial da Ribeira, saquearam-na, levando consigo o que quiseram. Durou 18 dias e 18 noites o cerco , após os quais retiraram-se efectivos policiais, ali destacados. Dores do parto de um Povo!

         VII

         A dupla governo-diocese esperou mais 25 anos. Não satisfeita com a derrota de 1985, tentou novo ataque, mais sofisticado e capcioso. Daí que, em 8 de Maio de 2010, usou da Imagem Peregrina, então de visita a todas as paróquias da Madeira, passou pela estrada contígua à igreja. A autoridade eclesiástica, escoltada por muitos polícias, não deixou que a Imagem entrasse. Cenas degradantes, dignas de uma qualquer novela mexicana herói-cómica!

O Povo perdoa, mas não esquece. E viu nestes dois atentados ao renascimento de um Povo uma prova de que o parto para uma vida social justa tem um custo a pagar. E deixou. outra vez, inscrita em pedra dura e alva de neve as duas datas da sua história como degraus evolutivos da sua redescoberta de Natal. O percurso continua.

 

21.Dez.22

Martins Júnior

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A ESCALADA INTERMINÁVEL DOS NATAIS – EPISÓDIOS DA ILHA E DA RIBEIRA SECA

                                                                                 


A que estrela ou a que abismo iremos para achar o braseiro de um lume novo que aqueça este Natal/2022?... Esgotadas as cantigas ao Menino que “ora está deitado, ora está estendido”, repetidas e puídas as ‘lapinhas’, os cordeirinhos, a vaca e o burrinho (que nem estiveram na gruta de Belém), enfim, onde encontraremos inspiração para olharmos mais além e vermos outros Natais que não o ramerrão fugitivo de todos os dezembros?...

         Este ano, não foi preciso sequer atravessar oceanos, galgar montanhas e continentes. Bastou-nos fixar a mente e o coração num livro de pedra ilhoa, aberto no logradouro do templo da Ribeira Seca, o adro que todos os dias pisam os nossos pés. Aqui, impressos estão em alvos calhaus roliços e em graciosa moldura circular os tempos históricos deste modesto burgo serrano. A viagem em busca do tesouro de um novo Natal fez-se não pelas autoestradas dos territórios mas pelos alongados trilhos do tempo.

E neles nos revimos e neles nos demorámos, perplexos e ávidos de encontrar a resposta a esta procura da nossa ancestralidade longínqua: Como viveram o seu Natal os nossos antepassados de há trezentos e seiscentos anos?... Que Menino viram eles nos seus presépios?... O mesmo de hoje, sempre ‘deitado e estendido’ – ‘estendido e deitado’?...

É uma tarefa que nos propusemos realizar nas nove “Missas do Parto”, ora em curso. Na onda da tradição, tentamos surfá-la (desculpem o estrangeirismo) relacionando-a com o Natal Primevo de há dois mil anos e com o tempo e o lugar que hoje habitamos.

Já lá vamos no IV episódio ou quarto andamento do percurso, pelo que só muito sinteticamente poderemos descrevê-los, deixando desde já a quem o pretenda a sugestão de maiores desenvolvimentos.

I

O MENINO DO TINTUREIRO ENTRE OS ESCRAVOS DO AÇÚCAR

Desde os alvores do “Achamento” da Ilha, mas acentuadamente desde1440 – A Carta da Outorga da Primeira Capitania a Tristão Vaz Teixeira, pelo Infante D, Henrique (a do Funchal aconteceu em 1450) – Machico prosperou sobretudo no segmento açucareiro, para cuja faina foram trazidos escravos negros (não esqueçamos que a Madeira funcionou como grande Entreposto de escravos). Na área montanhosa da Ribeira Seca, porém,  instalou-se uma outra indústria: a tinturaria, tão rara e preciosa que o próprio Rei D. Manuel I exigia o retorno do imposto, não em dinheiro, mas em espécie. Atesta-o a nomenclatura dos três sítios contíguos: Tintureiro ( a árvore produtora), o Pastel (a tinta) e a Nóia (do italiano Paulo da Noia, o empresário da exploração). Que Natais seriam esses? De um lado, o luxo da sede da Capitania, os torneios, os saraus românticos, possivelmente em redor do presépio que os frades franciscanos trouxeram para a Ilha. Do outro, as precaríssimas condições dos trabalhadores. Ou seja, o Natal dos ricos e o Natal dos pobres, dos escravos.

II

O MENINO EM CASA DO SENHORIO

Aconteceu em 1692. O Capitão-Secretário da Câmara Municipal de Machico, Francisco Dias Franco, mandou construir, a expensas suas, a Capela de Nossa Senhora do Amparo, no sítio chamado Lombo do Xeque, sendo aí instaurado o senhorio ou morgadio da Ribeira Seca. Foi o mesmo titular que mandou construir, em 1706, o Forte de Nossa Senhora do Amparo, na vila de Machico. Os senhorios e morgadios surgiram da alteração da Lei das Sesmarias, com base na deturpação subsequente do regime de concessão de terras, passando a vigorar o ‘leonino contrato da colonia’ equiparado ao dos servos da gleba, escravos da terra. Em apoio tácito aos senhorios, a Igreja, ela também senhoria, concedeu-lhes o ‘direito de capela’. Os camponeses, catequizados que eram pela instituição eclesiástica, agradeciam ao senhorio o lugar do culto. Aí podiam cantar ao Menino, sentiam-se enlevados na contemplação do estábulo, a vaquinha e o burrinho, enfim, o seu Natal, mais uma vez o Natal dos pobres que trabalhavam de sol a sol para o senhorio, enquanto este se banqueteava com a sua comitiva no palacete contíguo à capela. Um episódio que merece considerações mais profundas, realistas e dramáticas! Temo-lo feito, em consonância com os textos do Profeta Amós, do Antigo Testamento, capítulos 5, 6 e 8.

III e IV

Em 1960, por Decreto Diocesano do Bispo D. David de Sousa, deu-se o desmembramento das paróquias ou a descentralização da igreja matriz da área respectiva – uma decisão verdadeiramente revolucionária para a época, visto que cumpriu, por antecipação, o desiderato do Papa Francisco de levar a Igreja ao encontro do povo. Quebrou-se a “ditadura” do centralismo religioso e criaram-se novas centralidades em zonas inóspitas da Ilha, o que provocou uma positiva onda de desenvolvimento e cidadania progressiva entre os que habitavam a ruralidade profunda. Machico, de uma só paróquia, transformou-se em quatro, entre as quais a da Ribeira Seca.  Retomando as passadas anteriores, a população local recordava nos versos das romagens festivas:

A Capela do Amparo

Foi lá que a paróquia abriu

Mas ela não era nossa

Pertencia ao senhorio

 

Queríamos uma igreja nossa

Pobre sim mas verdadeira

Carregámos tudo aos ombros

Da  ribeira e da pedreira

 

E foi um esforço soberano, uma vaga de entusiasmo nunca visto. Todos ajudavam, acarretando areia, pedra, madeiras. E fez-se o templo. Tem data assinalada em caracteres de sangue no coração altivo e feliz da população, mais tarde esculpida no lajeado do adro: 1963! Então, foi diferente, foi glorioso o Natal de 1963, não obstante o sacrifício e a exploração de que o povo era vítima em plena guerra colonial.

Foram sucedendo os anos. O que acabo de contar é fruto do relato de paroquianos da Ribeira Seca, visto que só tomei contacto directo com a paróquia da Ribeira Seca em 1969, por nomeação episcopal. No entanto, o que aqui se releva é o crescimento evolutivo de um povo que foi ganhando a sua autonomia, a autonomia possível em tempos árduos, à custa do seu braço de trabalho. Esta foi e é a Igreja do Povo, que nada deve à diocese ou ao governo. A este propósito, em apoio às considerações formuladas, lemos hoje na meditação da “Missa do Parto” a sequência do Livro do Profeta Amós, quando proibido de profetizar no santuário de Betel porque “este santuário é do rei”. (capítulo7, 10-17). Vícios que vêm de longe, de muito longe: o poder político açambarcando o poder religioso!

O Natal de um povo também se constrói com a sua autonomia – a autêntica! – e não com a submissão servil. Jesus de Nazaré, mesmo Criança, veio libertar-nos da subserviência gratuita, da escravatura!

É interminável a escalada dos Natais, todos iguais e todos diferentes. E é nesse rumo que vamos continuar, seguindo o CPS escrito no adro da Ribeira Seca

 

19.Dez.22

Martins Júnior

domingo, 18 de dezembro de 2022

A GRANDE VIAGENN INTRA-UTERINA !!!

                                                                      


     Sem dúvida - a enorme, excepcional viagem de circumnavegação e tão desproporcional se tivermos em linha de comparação o mínimo espaço aquático em que todos navegámos no seio da nossa mãe! Por isso, a invocação da Senhora do Parto despertou a alma madeirense para as mais delicadas e extravagantes tradições, aliadas ao sopro mágico da noite abrindo a porta à madrugada.

         Passo ao lado dessa onda de diversões e superstições. Apenas recolho o convite do grande percurso intra-uterino que durante nove dias ininterruptos homenageamos nas Missas do Parto para, todos os anos, partir para outras grandes viagens extra-uterinas, descobertas planetárias, por vezes à volta do meu quarto.

         Tomando sempre como farol de referência o nascimento de Jesus Infante, desenhámos uma rota definida – como de resto fazemos todos os anos, na Ribeira Seca – ao encontro de quem nos responda à seguinte coordenada terrestre, universal: “Como viveram os madeirenses, particularmente os ribeira-sequenses, os seus Natais de seiscentos anos, suas afinidades, suas contradições, coflitualidades sócio-económicas, suas glórias e frustrações, suas ambições?”.

         Eis as prendas (aceitáveis ou não, conforme o olhar do destinatário) que porei sem guardanapo nesta mesa virtual de cada dia.

 

         17.Dez.22

Martins Júnior

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

A CARNE E OS OSSOS…

                                                                           


       Não será esta a estação adequada para mexer em ossos e ossadas nem também para autopsiar a tão ventilada questão da eutanásia, razão pela qual ainda não a trouxe à ementa da nossa mesa virtual. Por agora, é da vida, de berços cantantes, é do inverno transformado em primavera que devem encher-se os caminhos e as folhas em branco destas vésperas natalícias.

         Mas algo é devido, na conta deste SENSO&CONSENSO,  devido porque prometido – o entretenimento sobre as chamadas ‘sacras relíquias’,  (para mim) desviado em conflito aberto entre modernos pietistas medievais e os seus esclarecidos opositores. Desde logo, o meu registo de interesses: sou estruturalmente solidário e conforme aos bem fundamentados pareceres do Prof. Dr. Nelson Viríssimo e do Rev. Padre José Luís Rodrigues sobre esta matéria, tal como  foram divulgados nas redes sociais.

         Em poucas palavras sublinho afirmativamente o seu conteúdo, acentuando a tese geral colhida da análise histórica das civilizações: quanto mais retardatário é um povo, mais se lhe revela a necessidade do toque, da vista, do olfacto, enfim, do empírico para avaliar a “circunstância” e, nessa base, decidir-se sobre  os acontecimentos e as pessoas. Assim, apegam-se as sociedades rudimentares ao fácies, aos cabelos, às mãos e aos dedos, àqueles contornos que a vista alcança e os braços tocam.

         Aí, pois, a devoção, melhor, a vertigem dos pouco crentes perante o ‘abismo’ das ossadas, as relíquias – uma endemia primária que na Idade Média se converteu em pandemia religiosa. Um dos factores mais visíveis dessas patologias verifica-se no caso dos psicopatas que, segundo informes dos media, chegam à extrema paranoia de reterem clandestinamente em casa os corpos de familiares seus.

Quanto à eficácia das relíquias na mente dos devotos, o autor do grande manual “L’Histoire de l’Église”, Chanoine Le Poulet, faz este relato, não de todo isento de um subtil humor negro: ”Na Idade Média, pelos caminhos de Roma e Compostela passam numerosos cristãos, muitos doentes, que acreditam mais nas miraculosas relíquias do que nos próprios físicos” (os médicos). (Volume I, pág.550).

Permitam-me esta quase provocação: Se Jesus nascido em Belém morresse ainda no berço, fosse a manjedoura, fosse a casa paterna, qual de nós teria coragem de pedir (pior, aceitar) um dedinho, uma perna, uma orelha do Menino?...

Pois, leiam esta página da “História da Igreja em Portugal” do eminente e exigente Fortunato de Almeida: “São Teotónio faleceu em 1162 e no ano seguinte fot canonizado. A cidade de Viseu tomou-o para seu patrono. Afim de satisfazer a devoção da catedral viseense, enviou-lhe o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (onde estava sepultado) uma relíquia do braço direito do santo, a qual foi ali recebida com grandes festas e alvoroço”. (Volume I, pág.259).

Em 1162, há 860 anos. Qualquer semelhança com certo culto local do século XXI  é pura coincidência. Ou não…

Respeitando a boa-fé dos crentes (na Índia, há até quem ainda acredite arraigadamente na vaca sagrada), basta-me abrir o LIVRO e fixar o que o nosso Mestre e Libertador, Jesus de Nazaré, afirmou num momento nefrálgico da sua evangelização – a promessa de que a sua carne “seria uma verdadeira comida”. Perante a contestação dos Judeus ali presentes, sentenciou e esclareceu de uma forma lapidar, inequívoca: “A carne não serve para nada, o espírito é que dá vida. As palavras que eu acabei de pronunciar são espírito e vida” (Jo.,6, 36).

Se isto disse Jesus acerca da carne, que não diria ele dos ossos, das relíquias?!

Para mim, dispenso quaisquer outros esclarecimentos supersticiosos e piedosas pregações.

Cantemos a Vida. Proclamemos o Natal.

 

15.Dez.22

Martins Júnior

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

LUZ E FESTA NUMA ESCOLA DE MACHICO

                                                                


Abrem-se as cancelas adventícias, rangem os gonzos dos portões natalícios e logo se atraem, movidos por uma subterrânea força centrípeta, amigos, colegas de trabalho, amaradas associativos em esfuziante confraternização. Logo pelo meio junta-se a tecnologia feérica e empresta à paisagem uma espécie de embriaguez luminosa descendo em cascata o dorso das montanhas, cambaleando em ziguezagues virtuosos até estatelar-se no chão das cidades. E se alguém perguntar quem faz anos, a resposta segue imediata: É festa, é a Festa!

Mas há outras parcerias, ocultas ao vulgo em trânsito, há outros repuxos iluminantes, invisíveis àqueles que não ultrapassam a casca dos dias e o batente das horas.  Mas, parecendo impossível, são essas parcerias e esses jactos luminosos que penetram nos cérebros atentos e vigilantes, são esses momentos que não se confinam ao Natal, mas enchem os dias, os meses e os anos, a vida.

É precisamente ao prazer de um desses momentos que dedico a  saudação deste dia. Dirigentes, professores e alunos da Escola Secundária de Machico (11º ano) reuniram-se para, sob o signo “Semana das Línguas”,  surfar (passe o estrangeirismo) sobre o Natal e suas variantes. Os responsáveis pelo evento entenderam dar a palavra, prioritariamente, aos alunos, que formularam as perguntas que quiseram (atingindo o número recorde de 48) projectadas no ecrã do auditório. Embora convidado (o que gratamente registo) a proferir uma conferência, para a qual me preparei com gosto, vi-me ali na condição de aluno ou, com uma ponta de ironia, no estatuto de réu da causa e a ter de responder aos meritíssimos juízes, os alunos. 


Devo dizer que apreciei a versatilidade das questões, muitas delas marcadas pelo timbre de uma certa ousadia/atrevimento, características louváveis da juventude e para cuja liberdade interventiva contribuiu a não identificação do/da interpelante. Apreciei, repito, o acervo das matérias `propostas e fiquei elucidado sobre os conteúdos mentais e emocionais dos jovens que, não obstante o conceito medíocre que, na generalidade, deles tem uma certa sociedade, eles são mais, positivamente muito mais do que parecem.  É intimamente reconfortante para um adulto, neste caso, para um octogenário, verificar que no ânimo destes jovens participantes há preocupações de saber a verdade, sem medos nem preconceitos, sobre o mundo que os rodeia e no qual irão viver, sobre  instituições supostamente intocáveis - como a Igreja, o Sacerdócio, o culto, a Mulher.

Logicamente não poderei desdobrar, num apertado ‘blog’, os diversos assuntos tratados e espero não ter surpreendido ou “escandalizado” nem alunos nem professores, sendo certo que aos jovens de hoje não nos é lícito dar “papas de maizena” ou pílulas sintéticas, anestesiantes. Com a devida vénia e sem agredir anquilosados processos de desinformação no passado, é urgente servir à juventude actual o prato suculento da Verdade, enfim, o GPS possível das estradas do futuro, para que, ao menos em nossa legítima defesa, amanhã não digam que os enganámos. Tomo aqui a palavra de ordem do Evangelho e dos seus primeiros bandeirantes; “A Verdade vos liberta”!

Uma palavra de reiterada simpatia aos alunos da mesma Escola e são também elementos da Tuna de Câmara de Machico, pelo brilho que deram ao encontro com a execução de melodiosas canções de Natal.    

 

 

13.Dez.22

Martins Júnior

domingo, 11 de dezembro de 2022

NATAIS DE ISAÍAS, NATAIS DE MARIA – O CONTRASTE QUE NOS DESAFIA

                                                                           


Há 600 anos que na Madeira se fala da ‘lapinha’, desde que os padres de São Francisco – o inventor dos presépios – chegaram ali à baía de Machico e ali celebraram a primeira missa na Ilha. Desde mais de 900 anos em Portugal, o Menino dorme e sonha nas palhinhas. Desde há 2000 anos e  mais, o mundo se mexe e remexe com os vagidos do Divino Infante. Que mais faltará dizer sobre o caso?... Pregadores, eloquentes oradores sacros, onde iremos achá-los para nos dizerem algo de novo?...

Ele é o Príncipe da Paz, o Espírito de Sabedoria, de Fortaleza, de Inteligência, que vai transformar o deserto e a terra árida em jardins de delicadas flores e as agudas lanças de guerra vai transformá-las em enxadas, foices e arados para lavrar os campos agrícolas. Ele é o descendente do Rei David, Ele vai dominar o planeta de mar a mar e de rio a rio, vai acabar com as guerras!!! E daí, “Cantemos ao Menino Deus, Chantons tous son événement”.

Este é o Natal dos Profetas, os Natais de Isaías, de que nos falam hoje os textos dominicais. Estalem foguetes no ar, encham-se os mercados de lojas e lojinhas, embebedem-se as praças de luzes, luzinhas e lusões. Rivalizem os povoados e as cidades a ver quem dá mais fogo e lantejoulas esfumaçantes. É festa, é festa, o Menino nasceu.

Tudo bem. Não se vai estragar o brinco. O povo precisa de Festa, de descontração, de alegria, mesmo que não passe de um dia de ilusão.

         Mas há o outro Natal, o autêntico, o histórico. Conta-se em poucas palavras, vê-se-o a olho nu. Uma rapariga de 16 anos de idade, vai à terra dos seus antepassados, imprevistamente sente as dores do parto, ninguém naquele pequeno burgo a recolhe, o marido insiste (por amor da criança, ao menos por ela, arranjem-me um lugarzinho, um vão de escada, onde a minha mulher possa ter o filho).

         Ninguém. Nem maternidade, nem parteira, nem pensão doméstica, nada. Solução: “Vá parir para o palheiro de acolá acima ou na furna que fica atrás”. E assim foi. E assim se faz uma festa. Festeja-se por uma jovem, nessa altura, migrante por decreto imperial (o recenseamento), porque a pequena, quase uma adolescente teve que dar à luz uma criança na manjedoura dos animais. Interessante, divertido, não acham?... Fosse hoje, seria notícia de primeira página, entrada nos telejornais, um escândalo…  então não há maternidades, uma pensão, um vão de escada, sequer, para uma pequena grávida sem abrigo?!

         Este foi o Natal de Maria!

         É preciso que haja Festa. Qual festa? Ao Natal de Isaías, que nunca teve concretização ou ao Natal de Maria que significa, em contra~luz, a indiferença de um mundo perante a Mulher, a Criança, um Recém-Nascido?

         Os dois são úteis e até necessários. Mas não se faça do Natal um carnaval. E não se esqueça que os Natais de Maria repetem-se, de vários módulos, neste mundo que habitamos… Não é motivo de cantigas, mas de indignação geral.

 

         Onde nasceria, neste século XXI,  uma criança russa, por hipótese o “nosso”  Menino hebreu? Não tenho dúvidas: Ali mesmo, na Ucrânia.

         No entanto, ‘Lá vamos, cantando e rindo’… em honra do Manino e Sua Mãe!

 

         11.Dez.22

         Martins Júnior

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

DA “SÃO LOURENÇO” AO “SÃO LOURENÇO” NUM MAR DE CANÇÕES TUNEIRAS

                                                                   


 

      Nem “São Lourenço” mudou de género nem as canções ‘tuneiras’  têm algo a ver com os tunídeos migrantes que atravessam os mares da Madeira. No entanto, todos eles  conversam na amurada - o título - deste cais virtual dos Dias Ímpares.

A Ponta de São Lourenço (que desde 1419 tomou  o mesmo nome  da caravela : ´´O São Lourenço chega! bradaram Tristão e Zargo aos corajosos marinheiros) sim, a ponta-extremo-leste da Ilha e braço esquerdo de Machico, rude e revolta, a Ponta de “São Lourenço” rumou até ao Funchal e entrou nos salões doirados do Palácio que lhe usurpou a titularidade de registo, sem contudo ofuscar-lhe o privilégio de ter sido ela a franquear a entrada dos argonautas do Senhor Infante na nobre baía de Machico. O mar ‘tuneiro’ onde viajou levou consigo melodias eternas, as de Mozart, de Beethoven, Strauss e muitas outra que navegaram no convés (daí o nome) da Tuna de Câmara de Machico, TCM.

Está desvendado o pequeno enigma. A TCM teve a honra de abrir, anteontem,  o auspicioso programa “O Natal do Palácio” – o Palácio de São Lourenço. Em poucas palavras, os jovens manifestaram – e aqui não faço mais que prolongar o eco dessa mensagem – o seu muito apreço pelo convite que lhe foi formulado para apresentar ali, num meio eco-melódico adequado e perfeito a genuína ‘música de câmara’ própria do seu reportório. Original foi a participação presencial e efectiva da ‘Tuninha Infantil’ que emprestou ao evento uma graciosidade diáfana, condizente com os natalícios motivos ornamentais do salão, o que muito cativou o público assistente.

Duas notas ficaram gravadas no ânimo de quem lá esteve. Primeiramente, a circunstância, para nós inédita, de ver os jovens e crianças de uma zona rural, como é a Ribeira Seca, subirem felizes a escadaria do Palácio e apreciarem a beleza do mobiliário ancestral, de há quatrocentos anos (informaram-nos).

A segunda nota, essa diz respeito ao público mais adulto, com memória. Não posso esquecer-me de que, quando ocupada em 74-75-76 do século XX por um militar autoritário anti-25 de Abril, aquela casa representou os resquícios do já defunto fascismo, com ameaças e perseguições contra o povo madeirense. Foi dali, daquele Palácio, que foram apontadas armas e lançadas bombas lacrimogéneas e similares contra os camponeses produtores de cana de açúcar, uma enorme multidão de toda a Madeira, reivindicando o  pagamento de dois escudos e meio/Kg de cana. Jamais esquecerei esse triste cenário, o povo transido de medo, mas sempre a gritar pelo justo preço do seu produto.

Reminiscências de outros tempos, contraditoriamente o tempo da libertação do Povo Português! Ultrapassada hoje toda essa malfadada repressão, ao entrar naquela casa sentiu-se a atmosfera de uma simpática receptividade que a todos nos tocou. Por ser Natal e certamente ninguém terá levado a mal, improvisámos esta quadra, intercalada no refrão popular madeirense:

O São Lourenço Primeiro

É o que está no Caniçal

O São Lourenço Segundo

Veio morar p´rao Funchal

Ao Ex.mo Representante da República, Senhor Conselheiro Ireneu Barreto, os melhores agradecimentos da TCM, extensivos aos competentes serviços sob a tutela de Sua Excelência.      

  Feliz Natal !

 

09.Dez.22

Martins Júnior  

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

O CRIME ORIGINAL NA ÁRVORE PROIBIDA

                                                                                   


É do acto de conceber – portanto, de concepção ou conceição – que vou aproveitar esta vigília e este dia, 7 e 8 de Dezembro, chamados da “Imaculada Conceição, para formular uma questão e muitas dúvidas aos liturgistas, teólogos e biblistas ou, por todos, ao próprio Magistério da Igreja e respectivos dicastérios.

         A questão é esta: estará a Igreja disposta a continuar intransigente na doutrina do ‘pecado original’, aquele acto de Adão e Eva se terem atrevido a comer do fruto da árvore proibida? Conexa com esta questão está a comemoração do 7/8 de Dezembro, a Festa da Imaculada Conceição, em cujo dogma, promulgado em 1854, está o facto/privilégio que Maria, quando foi concebida, ficou desde logo isenta do ‘pecado original’. Não é um mero desvio doutrinal o que está incluso nesta questão, nem tão-pouco uma blasfémia herética de circunstância. Dizem os tratados que grandes luminares da Igreja, entre os quais Santo Agostinho de Hipona, século V,  São Tomás de Aquino, século XIII e, já antes, São Bernardo, século XII, puseram reticências relativamente ao culto desta isenção de Maria – mais tarde transformado em dogma pontifício.

         Não poderá cabalmente responder-se a esta questão inicial sem desentranharmos o labirinto do que se convencionou designar por ‘pecado original’. Mais embaraçosa se torna esta dúvida quando se diz ou sempre se disse que uma criança nasce com essa culpa ou pecado que “vem das nossas origens”, isto é, do tempo e do ‘crime’ de Adão e Eva. E preceitua a Igreja Vaticana que essa mancha e esse ‘crime’ só se resgatam ou desaparecem com recurso à pia  baptismal. Daí o Baptismo das crianças.

         Ora, o que está em causa é a explicação da deficiência humana. Desde os primórdios da humanidade, está em hasta teo-filosófica esta tremenda incógnita: por que estranha sina nascem os humanos marcados por tendências negativas, vertigens inatas para o mal, para a perversão, para as mal-feitorias?

         Aqui entra a ciência em debate: os biólogos, os psicanalistas, os neurologistas, sobretudo na vertente da hereditariedade. Em virtude dos avanços da ciência e da tecnologia, são eles que têm a palavra. E informam que nós somos herdeiros dos cromossomas dos nossos antepassados. Com o sémen masculino depositado no ovário feminino, os nossos pais transmitem-nos o somatório de tendências positivas e/ou negativas que marcarão o nosso futuro psicossomático. A infância e as reações comportamentais das crianças fornecem-nos um laboratório perfeito dos reflexos hereditários acumulados.

Perante toda esta fenomenologia, que interpretação tem a vertente cultual religiosa?... A mesma que tiveram os  hebreus, a começar por Moisés, que escreveu ou ditou o Primeiro Livro da Bíblia - o Génesis - milhares, milhões de anos depois dos ‘factos’ (?)  por ele narrados.  A solução é atribuir a Deus e ao sistema teocrático aquilo que  o homem não consegue explicar. É o que Augusto Conte classificou como o “estádio teológico” da evolução antropológica. Em termos práticos: a deficiência humana, que se transmite de geração em geração até ao fim do mundo,  é o castigo da desobediência de Adão e Eva. É nesse crime (e na maldição divina contra a  pobre serpente enroscada na árvore) que os dicastérios vaticanos atribuem ou atribuíram a razoabilidade das maldades congénitas dos ‘degredados filhos de Eva’. O mesmo fez a Igreja no século XVI, quando pretendeu sentenciar à morte na fogueira Galileu Galilei, porque o famoso astrónomo renascentista descobriu que a terra é que anda à volta do sol, e não o contrário, como pretendia a Bíblia.  Só não se consumou a sentença porque Galilei achou mais conveniente retratar-se, estrategicamente.

Postas na mesa estas dúvidas e estes dados científicos, permanece de pé a questão primacial: Que valor ou que influência determinista tem nos nascidos no século XXI  a teoria do ‘pecado original’?… Dando um passo em frente, é lícito perguntar: seria plausível (por mera hipótese) que  actualmente viesse o Papa Francisco definir como Dogma infalível o exacto  conteúdo doutrinário promulgado  pelo Papa Pio IX  em 8 de Dezembro de 1854 ?!...

O assunto não se configura com uma especiosa tese académica, tipo escolástica medieval. É um caso muito sério que nos remete para a evolução civilizacional e, mais, pata a dignidade do voluntarismo consequente na demarcação do futuro da humanidade. Um tema que merecerá melhor atenção.

 

7-8.Dez.22

Martins Júnior