É
do acto de conceber – portanto, de concepção ou conceição – que vou aproveitar
esta vigília e este dia, 7 e 8 de Dezembro, chamados da “Imaculada Conceição,
para formular uma questão e muitas dúvidas aos liturgistas, teólogos e
biblistas ou, por todos, ao próprio Magistério da Igreja e respectivos dicastérios.
A questão é esta: estará a Igreja
disposta a continuar intransigente na doutrina do ‘pecado original’, aquele
acto de Adão e Eva se terem atrevido a comer do fruto da árvore proibida?
Conexa com esta questão está a comemoração do 7/8 de Dezembro, a Festa da
Imaculada Conceição, em cujo dogma, promulgado em 1854, está o facto/privilégio
que Maria, quando foi concebida, ficou desde logo isenta do ‘pecado original’.
Não é um mero desvio doutrinal o que está incluso nesta questão, nem tão-pouco
uma blasfémia herética de circunstância. Dizem os tratados que grandes
luminares da Igreja, entre os quais Santo Agostinho de Hipona, século V, São Tomás de Aquino, século XIII e, já antes,
São Bernardo, século XII, puseram reticências relativamente ao culto desta
isenção de Maria – mais tarde transformado em dogma pontifício.
Não poderá cabalmente responder-se a
esta questão inicial sem desentranharmos o labirinto do que se convencionou
designar por ‘pecado original’. Mais embaraçosa se torna esta dúvida quando se
diz ou sempre se disse que uma criança nasce com essa culpa ou pecado que “vem
das nossas origens”, isto é, do tempo e do ‘crime’ de Adão e Eva. E preceitua a
Igreja Vaticana que essa mancha e esse ‘crime’ só se resgatam ou desaparecem
com recurso à pia baptismal. Daí o
Baptismo das crianças.
Ora, o que está em causa é a explicação
da deficiência humana. Desde os primórdios da humanidade, está em hasta
teo-filosófica esta tremenda incógnita: por que estranha sina nascem os humanos
marcados por tendências negativas, vertigens inatas para o mal, para a
perversão, para as mal-feitorias?
Aqui entra a ciência em debate: os
biólogos, os psicanalistas, os neurologistas, sobretudo na vertente da
hereditariedade. Em virtude dos avanços da ciência e da tecnologia, são eles
que têm a palavra. E informam que nós somos herdeiros dos cromossomas dos
nossos antepassados. Com o sémen masculino depositado no ovário feminino, os
nossos pais transmitem-nos o somatório de tendências positivas e/ou negativas
que marcarão o nosso futuro psicossomático. A infância e as reações
comportamentais das crianças fornecem-nos um laboratório perfeito dos reflexos
hereditários acumulados.
Perante
toda esta fenomenologia, que interpretação tem a vertente cultual religiosa?...
A mesma que tiveram os hebreus, a
começar por Moisés, que escreveu ou ditou o Primeiro Livro da Bíblia - o Génesis - milhares, milhões de anos
depois dos ‘factos’ (?) por ele
narrados. A solução é atribuir a Deus e
ao sistema teocrático aquilo que o homem
não consegue explicar. É o que Augusto Conte classificou como o “estádio
teológico” da evolução antropológica. Em termos práticos: a deficiência humana,
que se transmite de geração em geração até ao fim do mundo, é o castigo da desobediência de Adão e Eva. É
nesse crime (e na maldição divina contra a pobre serpente enroscada na árvore) que os
dicastérios vaticanos atribuem ou atribuíram a razoabilidade das maldades
congénitas dos ‘degredados filhos de Eva’. O mesmo fez a Igreja no século XVI,
quando pretendeu sentenciar à morte na fogueira Galileu Galilei, porque o
famoso astrónomo renascentista descobriu que a terra é que anda à volta do sol,
e não o contrário, como pretendia a Bíblia. Só não se consumou a sentença porque Galilei
achou mais conveniente retratar-se, estrategicamente.
Postas
na mesa estas dúvidas e estes dados científicos, permanece de pé a questão
primacial: Que valor ou que influência determinista tem nos nascidos no século
XXI a teoria do ‘pecado original’?…
Dando um passo em frente, é lícito perguntar: seria plausível (por mera
hipótese) que actualmente viesse o Papa
Francisco definir como Dogma infalível o exacto conteúdo doutrinário promulgado pelo Papa Pio IX em 8 de Dezembro de 1854 ?!...
O
assunto não se configura com uma especiosa tese académica, tipo escolástica
medieval. É um caso muito sério que nos remete para a evolução civilizacional
e, mais, pata a dignidade do voluntarismo consequente na demarcação do futuro
da humanidade. Um tema que merecerá melhor atenção.
7-8.Dez.22
Martins Júnior
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