Cativou-me
desde a primeira hora: pela singeleza do título, pela dispensa do chamariz
publicitário, a que se dá o pomposo nome de Prólogo ou Prefácio, feito por não
menos pomposa figura de proa. Cativou-me ainda por duas outras faces da mesma
singeleza: a desnecessidade de propaganda nos jornais e nos audiovisuais cá do
burgo e, mais ainda, essoutra maior desnecessidade de convidar as brasonadas
entidades oficiais para a sua apresentação pública, numa sala tão livre e
modesta quanto eloquente na sua simbologia: o Sindicato dos Professores da
Madeira.
José Bernardino Gonçalves da Côrte,
nascido em Aruba, filho de pais madeirenses emigrados, reside na Região e é
docente de Artes Visuais na Escola da Ribeira Brava. Neste seu segundo livro,
faz uma radiografia perfeita da idiossincrasia das gentes da Madeira, desde os
meados do século XX. Numa bem arquitectada síntese de cinco narrativas, conectadas sob o signo
da tradição natalícia regional, o Autor faz desfilar um vasto cortejo da
tipologia identificativa de personagens ilhoas, trajes, usos e costumes, de
onde sobressai o linguajar endémico da nossa mais profunda ruralidade,
características estas que nos aproximam do estilo do nosso maior romancista, o madeirense
Dr. Horácio Bento de Gouveia.
Merecem especial menção os recursos
estilísticos disseminados ao longo de todo o texto, nomeadamente o manejo da
antítese (um sorriso condoído nos lábios),
a sinestesia (o assobio frio do vento), a personificação (os
quatro peros arrepiaram-se; as pedras ajudaram a propalar a maledicência), os
indícios, monitorizados nos nomes de algumas personagens tipificadas (Zé Carrega, Rafael Dedos-Leves, António
Aqui-Vamos,) e nalgumas expressões peculiares (os 366 degraus da Vereda do Calado; a efígie de Custódio na estrela Sírius).
O realismo queirosiano está bem patente na descrição de todos os cenários
onde se movimentam os intervenientes. Noutro excerto, o desassossego esquecido e o esquecimento desassossegado remetem-nos para o “Livro do Desassossego” de
Fernando Pessoa. De registar a utilização de uma apropriada terminologia
técnica, sobretudo quando aplicada às alfaias de uso agrícola, às armas
artesanais de defesa e à ambiência sócio-económica, cultural e religiosa das
populações rurais. Neste item, o Autor traz reminiscências de
Saramago no rigor vocabular e, remontando mais longe, de Aquilino Ribeiro n’A Casa Grande de Romarigães. Por onde se
prova que a estética literária não tem uma única direcção nem se identifica
como um feudo reservado aos grandes épicos ou aos romancistas de eleição. Tanto
se revela nos históricos temas de fundo como se espelha na ingenuidade nativa
do microcosmos de uma aldeia perdida nas montanhas.
Enfim, um pequeno livro, pelo escasso número de páginas. Mas um Grande Livro, pelo alcance das matérias em jogo, desde a riqueza anímica de quem tem o berço e a sepultura na terra que cultiva, de sol a sol, até aos escusos meandros dos instintos negativos da condição humana, nitidamente expressos no ofício d’Os Pilhas. Quem ler esta enciclopédia de bolso – Às Voltas – não ficará insensível à galeria de Mulheres, as vulgarmente designadas ‘mulheres de campo’, as viloas, todas iguais e todas diferentes na forma de estar, agir e reagir perante as circunstâncias do mundo rural, mais incisivamente em situações dramáticas, como aconteceu com Rosalina no confronto dos camponeses com as forças militares no Largo do Regedor: O coração puxava-a para um lado, o instinto de sobrevivência para outro.
As
questões sociais, indissociáveis nestes aglomerados, não foram esquecidas pelo
Autor, as mais penosas, a carência alimentar (uma cavala para dez pessoas de casa: nesse dia, o almoço fora milho
cozido com cebolada e um cheirinho a cavala, um festim), o êxodo rural (tanta gente do campo a trabalhar na
cidade), o contrabando local (Zé
Preto Cabouco ia tentar comercializar a aguardente de cana, às escuras das
autoridades, com os vendeiros locais da
sua zona ou particulares), as lutas, em 1936, contra os monopolistas da manteiga.
Além
dos dizeres comuns ao glossário aldeão esparsos em toda a narrativa, não
resisto a reproduzir, em formato telegráfico, algumas expressões de fino
recorte literário, tais como a gozadora
cotovelada na comadre Justina ou Custódio
bebeu mais um caneco para embriagar a frustração. E ainda, aquela dor que daí a pouco não saberia o
porquê de estar a chorar e Ele
recarregou-se de confiança e despiu-se do desânimo do acordar de hoje.
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Aqui
ficam, pois, estes breves apontamentos de homenagem e gratidão ao docente
Bernardino da Côrte pela exímia radiografia que nos trouxe neste seu livro, bem
como aos ilustradores: ele próprio e Francisco José Pereira da Côrte, Orlando
de Abreu Ribeiro, Paulo Ladeira, Marta Condez e José Nelson Pestana Henriques.
O Autor soube rodear-se de excelentes colaboradores, entre os quais Lília Maria
Gonçalves Pereira e Vanda Mónica Gomes Caixas, às quais são extensivas as mesmas
saudações e agradecimentos. A actuação de um selecto quinteto musical e a
encenação de um dos episódios do livro abrilhantaram condignamente a
apresentação ao público, sob a competente moderação de Marisa Silvestre. A
palavra final coube ao Senhor Bispo D. Nuno Brás da Silva Martins, que
criteriosamente enalteceu a obra e considerou-a como a “expressão da genuína
alma madeirense na vivência do seu Natal”.
05.Dez.22
Martins Júnior
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