terça-feira, 6 de dezembro de 2022

UM PEQUENO…GRANDE LIVRO !

 


Cativou-me desde a primeira hora: pela singeleza do título, pela dispensa do chamariz publicitário, a que se dá o pomposo nome de Prólogo ou Prefácio, feito por não menos pomposa figura de proa. Cativou-me ainda por duas outras faces da mesma singeleza: a desnecessidade de propaganda nos jornais e nos audiovisuais cá do burgo e, mais ainda, essoutra maior desnecessidade de convidar as brasonadas entidades oficiais para a sua apresentação pública, numa sala tão livre e modesta quanto eloquente na sua simbologia: o Sindicato dos Professores da Madeira.

         José Bernardino Gonçalves da Côrte, nascido em Aruba, filho de pais madeirenses emigrados, reside na Região e é docente de Artes Visuais na Escola da Ribeira Brava. Neste seu segundo livro, faz uma radiografia perfeita da idiossincrasia das gentes da Madeira, desde os meados do século XX. Numa bem arquitectada síntese  de cinco narrativas, conectadas sob o signo da tradição natalícia regional, o Autor faz desfilar um vasto cortejo da tipologia identificativa de personagens ilhoas, trajes, usos e costumes, de onde sobressai o linguajar endémico da nossa mais profunda ruralidade, características estas que nos aproximam do estilo do nosso maior romancista, o madeirense Dr. Horácio Bento de Gouveia.

         Merecem especial menção os recursos estilísticos disseminados ao longo de todo o texto, nomeadamente o manejo da antítese (um sorriso condoído nos lábios), a sinestesia (o assobio frio do vento), a personificação (os quatro peros arrepiaram-se; as pedras ajudaram a propalar a maledicência), os indícios, monitorizados nos nomes de algumas personagens tipificadas (Zé Carrega, Rafael Dedos-Leves, António Aqui-Vamos,) e nalgumas expressões peculiares (os 366 degraus da Vereda do Calado; a efígie de Custódio na estrela Sírius). O realismo queirosiano está bem patente na descrição de todos os cenários onde se movimentam os intervenientes. Noutro excerto, o desassossego esquecido e o esquecimento desassossegado  remetem-nos para o “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa. De registar a utilização de uma apropriada terminologia técnica, sobretudo quando aplicada às alfaias de uso agrícola, às armas artesanais de defesa e à ambiência sócio-económica, cultural e religiosa das populações rurais. Neste  item, o Autor traz reminiscências de Saramago no rigor vocabular e, remontando mais longe, de Aquilino Ribeiro n’A Casa Grande de Romarigães. Por onde se prova que a estética literária não tem uma única direcção nem se identifica como um feudo reservado aos grandes épicos ou aos romancistas de eleição. Tanto se revela nos históricos temas de fundo como se espelha na ingenuidade nativa do microcosmos de uma aldeia perdida nas montanhas.

          Enfim, um pequeno livro, pelo escasso número de páginas. Mas um Grande Livro,  pelo alcance das matérias em jogo, desde a riqueza anímica de quem tem o berço e a sepultura na terra que cultiva, de sol a sol,  até aos escusos meandros dos instintos negativos da condição humana, nitidamente expressos no ofício d’Os Pilhas. Quem ler esta enciclopédia de bolso – Às Voltas – não ficará insensível à galeria de Mulheres, as vulgarmente designadas ‘mulheres de campo’, as viloas, todas iguais e todas diferentes na forma de estar, agir e reagir perante as circunstâncias do mundo rural, mais incisivamente em situações dramáticas, como aconteceu com Rosalina no confronto dos camponeses com as forças militares no Largo do Regedor: O coração puxava-a para um lado, o instinto de sobrevivência para outro.    


         As questões sociais, indissociáveis nestes aglomerados, não foram esquecidas pelo Autor, as mais penosas, a carência alimentar (uma cavala para dez pessoas de casa: nesse dia, o almoço fora milho cozido com cebolada e um cheirinho a cavala, um festim), o êxodo rural (tanta gente do campo a trabalhar na cidade), o contrabando local (Zé Preto Cabouco ia tentar comercializar a aguardente de cana, às escuras das autoridades, com os vendeiros locais  da sua zona ou particulares), as lutas, em 1936, contra os monopolistas da manteiga.

         Além dos dizeres comuns ao glossário aldeão esparsos em toda a narrativa, não resisto a reproduzir, em formato telegráfico, algumas expressões de fino recorte literário, tais como a gozadora cotovelada na comadre Justina ou Custódio bebeu mais um caneco para embriagar a frustração. E ainda, aquela dor que daí a pouco não saberia o porquê de estar a chorar e Ele recarregou-se de confiança e despiu-se do desânimo do acordar de hoje.   

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Aqui ficam, pois, estes breves apontamentos de homenagem e gratidão ao docente Bernardino da Côrte pela exímia radiografia que nos trouxe neste seu livro, bem como aos ilustradores: ele próprio e Francisco José Pereira da Côrte, Orlando de Abreu Ribeiro, Paulo Ladeira, Marta Condez e José Nelson Pestana Henriques. O Autor soube rodear-se de excelentes colaboradores, entre os quais Lília Maria Gonçalves Pereira e Vanda Mónica Gomes Caixas, às quais são extensivas as mesmas saudações e agradecimentos. A actuação de um selecto quinteto musical e a encenação de um dos episódios do livro abrilhantaram condignamente a apresentação ao público, sob a competente moderação de Marisa Silvestre. A palavra final coube ao Senhor Bispo D. Nuno Brás da Silva Martins, que criteriosamente enalteceu a obra e considerou-a como a “expressão da genuína alma madeirense na vivência do seu Natal”.   

                      

05.Dez.22

Martins Júnior

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