domingo, 29 de novembro de 2020

BISPOS DO FUNCHAL CONTRA GENTE DE MACHICO: UM EPISÓDIO SECULAR

                                                                                


Enquanto escrevo estas linhas, a noite, entre vento forte, chuva grossa,  relâmpagos e trovões, faz a sua marcha ao encontro da manhã. E essa manhã tem tanto de luminoso como de sombrio e trágico. Neste domingo descendente vamos a caminho daquele 30 de Novembro de 1773, o dia que viu nascer Francisco Álvares de Nóbrega, “em pobre, sim, mas paternal morada”.

Quis a  (des)Fortuna  que neste 247º aniversário do seu nascimento, não houvesse programação festiva nem ajuntamentos sócio-culturais. Mas assenta à perfeição este “confinamento” evocativo do nosso “Camões Pequeno”. Porque se o corpo da sua obra brilha exuberante no estilo, no ritmo e na elocução literária, o que dela ressuma - a alma, a angústia existencial – não nos move a euforias congratulatórias, antes amarra-nos às algemas que carregaram as suas mãos, dentro e fora da cadeia do Limoeiro. Neste momento, revejo-me no soneto que ele, “Camões Pequeno” dedicou ao “Magno Camões”, o épico imortal:

                  

Se me recordo, meu Camões divino,

                   De que em pobre hospital, sórdido, agreste,

                   O derradeiro adeus ao mundo déste,

                   Leio em tua desgraça o meu destino.

 

E disse-o bem. Porque se Luís Vaz acabou seus dias na miséria e em “sórdido hospital”, a Álvares de Nóbrega pior sorte lhe coube: a enxerga da masmorra consumiu-lhe a pele e apodreceu-lhe o corpo, depois da soltura, até morrer em casa de um amigo, que o recebeu, mais abandonado que um sem-abrigo, na Rua São João Nepomuceno, zona de Campo de Ourique. Lisboa.

O nosso conterrâneo do século XVIII, que hoje se evoca,  não é uma lenda, nem protagonista de um filme pré-fabricado. Teve nome, pai e mãe, conhecem-se os carrascos e as instituições que lhe tramaram a vida.  Mutatis mutandis, fizeram-lhe o que fizeram ao Nazareno: o poder religioso (mais que o poder político) assanhou-se contra o jovem machiquense que, então, já tinha dado entrada no Seminário do Funchal, por sugestão do deão da Sé Catedral, seu amigo e professor de Retórica. O bispo tem nome: José da Costa Torres. Perseguiu o talentoso candidato ao sacerdócio com base em calúnias de teor teológico-doutrinário e não descansou sem que um fraudulento processo na Inquisição o espetasse na dita masmorra do Limoeiro.

  Dispenso-me de repetir o seu doloroso percurso em Machico, no Funchal, em Lisboa. Já foi bastas vezes divulgado. Direi apenas isto: despediu-se da vida aos 33 anos de idade, a mesma do Nazareno. Nem há registo de sepultura nem sequer se conhece o cemitério onde depositaram os seus ossos. Conhecem-se, isso sim, os algozes: o bispo Torres e o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição!

Eram tempos tumultuosos os de Álvares de Nóbrega, em que a Maçonaria nascente ganhava a simpatia de muitos eclesiásticos madeirenses. Mas foi o nosso conterrâneo que o dito bispo escolheu para alvo preferido e vítima sem defesa. Entretanto – ironia da história – o mesmo prelado caiu em desgraça do povo madeirense e, diz a história, teve de fugir clandestinamente do Funchal para Lisboa, “sem poder sequer despedir-se do Santíssimo Sacramento”.

Chegado à Madeira, o novo bispo, D. Luís Rodrigues Villares, tomou como sua primeira decisão libertar o nosso poeta e pensador, não obstante o adiantado estado de precária saúde.

Quantos homens e mulheres, ao longo dos séculos, gemeram e morreram sob o implacável, satânico, cepo da Inquisição, em nome de um deus que ela mesma fabricou. Semelhantes aos de Francisco Álvares de Nóbrega, quantas vítimas ficaram eternamente no ignoto silêncio das sepulturas anónimas!  Até aos nossos dias… Por isso, o título desta página, conquanto genérico e aparentemente excessivo, pretende homenagear os heróis esquecidos que deram a vida para que pudéssemos todos respirar livremente enquanto habitarmos este planeta. É o que faremos em particular na sala e biblioteca “Francisco Álvares de Nóbrega”, em Machico.

E já que estamos em tempo de Advento, de vigilância cívica e evangélica, o povo tem de exercitar a sua cidadania, permanecendo alerta contra os abusos do poder, venham eles de onde vierem!!!  

Encerro estes considerandos, inspirados na mensagem do nosso “Camões Pequeno”, com o soneto que ele próprio, desde Lisboa e já destruído fisicamente,  dedicou ao bispo libertador Luís Rodrigues Villares:

 

                   Prelado Excelso, o Nóbrega doente,

                   Cá das margens do Tejo, onde o remistes,

                   Vai, sobre as asas dos seus versos tristes,

                   A beijar-vos humilde a mão clemente.

 

                   Ainda se lembra da tenaz corrente,

                   Que do seu rôto pé Sábio despistes,

                   Quando em cárcere abjecto em luto o vistes

Dos pais, do benfeitor, da Pátria ausente.

 

Só vós o fado meu vencer pudestes,

Só vós os agros dias me adoçastes,

Do vosso antecessor mimos agrestes.

 

Conheça o mundo o quão diverso andastes:

Aquele me espancou, vós me acolhestes,

Aquele me prendeu, vós me soltastes.

 

29.Nov.20

Martins Júnior

        

                                                                  

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A “FÉ E O IMPÉRIO” – OU - IMPÉRIO E A FÉ?... TESTEMUNHOS DA GUERRA COLONIAL

                                                                        


Apreciei as observações coincidentes com o penúltimo  blog, assim como daria idêntico apreço às eventuais opiniões contraditórias, desde que devidamente fundamentadas. Ficou provada a minha repulsa pela invasão e genocídio dos jhiadistas islâmicos contra o indefeso povo de Cabo Delgado, do mesmo modo que repudiei e ainda hoje abjuro dos crimes que a tropa portuguesa cometeu sob a benzida e incensada guerra colonial.

         Quando escrevo “benzida e incensada”, refiro-me ao protecionismo público e notório da Igreja Católica Portuguesa ao arsenal bélico-operacional e administrativo do Exército em campanha, resquícios da bandeira quinhentista que sobrevoava e amparava os assaltos da Coroa Lusa  aos territórios de “Aquém e Além-Mar”, a qual foi apoteoticamente cantada pelos nossos poetas e cronistas: “Dilatar a Fé e o Império”.

         Foi esta uma questão suficientemente escrutinada por dois conhecidos  historiadores, aquando da abertura dos “500 Anos da Diocese do Funchal”, em 2012, em sessão solene realizada na Universidade da Madeira. Aí em palco viu-se, ao vivo, o ‘duelo’ entre duas “histórias” diametralmente opostas: “O Portugal das Descobertas teve como objectivo prioritário a Fé, a missionação, e só depois o Império”, dizia um dos especialistas convidados, enquanto o outro, situando-se no contexto sócio-económico coevo, provou que o móbil das chamadas Conquistas consistia essencialmente na aquisição das riquezas orientais, entre as quais as longínquas e exóticas especiarias. Em sua opinião, o Império precedeu a Fé.

         De há muito que eu partilhava esta segunda interpretação, por mais realista e consentânea com o processo histórico dos Descobrimentos. Mas foi a forçada participação na guerra colonial, como capelão do B.Caç.1899, que me fez confirmar à evidência este ensaio de farsa bem embrulhada em pressupostos pseudo-religiosos: o Estado Português queria capelães militares, não para missionar os indígenas nem para rezar com os soldados, mas tão só para ganhar, através da Igreja,  o apoio do povo , mormente as populações rurais, de onde eram recrutada a maioria dos jovens portugueses “condenados”  à guerra.

         Por isso recusei-me a benzer o Estandarte do Batalhão,  na igreja da Amadora, onde estava sediado o Regimento de Infantaria  nº1, sendo por isso censurado pelo comando, antes mesmo de embarcarmos no velho “Niassa”.  Um outro episódio, porém, ocorrido mais tarde em Mocímboa da Praia, Cabo Delgado, veio acabar as dúvidas que porventura tivesse sobre o que pretendia de mim o exército português, mais precisamente, o regime de Oliveira Salazar.

         Chamado ao Ex.mo tenente-coronel, comandante, bati-lhe oficialmente a pala regimental e escutei o elogio:

- O nosso capelão é diferente dos outros.

- Muito obrigado, meu comandante, faço o que posso.

Julguei estar a referir-se ao conjunto musical de ritmos modernos com o qual, sob a minha direcção, animávamos periodicamente as quatro companhias do batalhão. Mas, ao ouvi-lo repetir duas, três vezes, o ‘elogio’, indaguei:

         - Mas…diferente, porquê, meu comandante?

         - É que eu tenho ido às suas missas, ao domingo.

- Muito bem, meu comandante. Não sei qual a sua fé, mas tenho notado agradavelmente a sua presença. E então?

         - É que nos outros batalhões que comandei, o capelão aproveitava a homilia para falar de Nossa Senhora de Fátima, para ela dar força e coragem aos nossos rapazes contra os turras. E o senhor, nada.

         Aí perfilei-me, puxei pelos meus galões, não de tenente, mas de padre e patriota e atirei sem escolher os termos:

         - Agora percebo onde o meu comandante quer chegar. Mas fique sabendo do seguinte: se o senhor pensa que vou fazer de Nossa Senhora de Fátima a padeira de Aljubarrota, tire o cavalinho da chuva e mande-me já para a minha terra. O senhor com uma mão e eu com as duas. Obrigado.

         Bati a pala regimental e saí, soliloquiando com veemência contida: É para isto que me querem cá. Para ajudar a matar. Para servir o criminoso regime colonialista.

         Não fora a amizade solidária que me unia a oficiais, sargentos e praças sobretudo, em circunstâncias tão dramáticas – e eu teria desertado, fosse para onde fosse.

Sei que o capelão tem uma função essencial na psicologia dos jovens abandonados nas matas africanas. Quantas vezes vieram chorar no meu ombro, pelo pai, pela mãe, pela esposa (ou pela namorada) e pelos filhos…e pelo medo de morrer na próxima emboscada. O padre psicólogo! Mas o Estado não mobiliza psicólogos. Prefere os padres e até dá-lhes, por isco,  galões de alferes, tenentes, chegando mesmo a coronéis, com a única e sub-reptícia estratégia de amarrar a Igreja ao regime político-militar.

Sério problema para a Igreja. A Igreja de Jesus de Nazaré, o Mestre e Libertador. E não da Sinagoga do “Senhor Deus dos Exércitos”.

Conforta-me a solidariedade dos então jovens mobilizados, hoje septuagenários e octogenários, cujo doloroso percurso partilhei em terras de Cabo Delgado. E serena-me o espírito a colaboração dada em Mocuba (foto acima) Mabotacuane e Morrumbala, distrito da Zambézia, aos dedicados missionários italianos, com quem contactei e aprendi.

 

27.Nov.20

Martins Júnior

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

QUEM DOMESTICA A PAN-DOMÉSTICA VIOLÊNCIA?

                                                                        


Na Sala Oval desta Casa Comum, de mil recantos e em cada um deles milhões de assoalhadas, outros tantos subterrâneos e alcovas clandestinas, ressoam gemidos e gritos, ora fragosos, ora abafados sem eco, que a tornam uma  global e assombrada caixa de pandora.

À mesa de jantar, reluzem os talheres do egoísmo, parte-se a baixela de porcelana hipócrita, abocanhando cada qual a sua posta maior no orçamento. Mordem-se os dedos e os cotovelos, sem um naco de pudor, para esconder a carne nos bolsos e deixar os ossos aos que vierem depois.

Nas paredes da cozinha escorrem as lágrimas das cozinheiras de todo o mundo, estala o gaz da revolta dos que produzem ricas ementas para os senhores DDT, ficando elas e eles de mãos encarquilhadas à espera das migalhas que sobram do festim.

Nas caves-subterra, os escravos gemem para fazer polir o chassis, a bagageira, o tejadilho do ‘juguar’ milionário – e eles, irmãos dos proletários de todo o mundo, quem os defende, quem lhes dá hipótese de aliviar os pés calejados e nus?

Nos logradouros do palácio, de um lado clareiras de orquídeas em prados verdejantes. Do outro, o deserto imenso sem sombra de oásis, o chão ressequido, ingrato e duro, onde afogam até à exaustão os famélicos foragidos da guerra. A violência bilateral serpenteia entre a opulência e a escravidão, aguardando a paz ou a insurreição.

No mais recôndito da alcova doméstica, lugar do amor nascente e producente, o cutelo da traição destrona o abraço originário. Pagam os mais frágeis, na face das mulheres e no grito lancinante das crianças. Venha alguém, do fundo do abismo ou do mais alto dos céus e proclame a Nova Ordem Mundial: ”Casais de todo o mundo, uni-vos|”!

 Na Grande Sala do Selo, reúnem-se sigilosamente os “monstros” do G5, do G7, de todos os ‘Gs’ e na ponta do aparo com que subscrevem os tratados de paz e de comércio começa o estampido dos morteiros de guerra. É a violência em casa sua!

E se houver cruz e altar  na Sala Global, até aí a ditadura das mitras e dos barretes dogmáticos  esmaga com anátemas de maldição e tortura os jovens bandeirantes de um Mundo Melhor.

E tudo é violência. Pandémica violência  porque, pior que o Covid, alastra por tudo quanto existe. Doméstica violência planetária!

Quem a domestica?...

Parafraseando: Não perguntes à Casa Comum o que pode fazer por ti. Pergunta, antes, o que podes tu fazer pela Casa Comum?!

Pela Anti-violência!

 

25.Nov.20

Martins Júnior   

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

REVISITAR CABO DELGADO E PEDIR-LHE PERDÃO

                                                                            


Há 53 anos que ando a lutar contra a memória. No campo de guerra que começa e acaba neste esqueleto que me mantém de pé, tinha dado quase por finda esta mortalha na tumba do esquecimento. Mas eis que ela voltou, como um fantasma redivivo. Veio recalcitrar-me o espinho antigo, com as mais recentes notícias sobre o massacre das gentes do Norte de Moçambique: “Estado Islâmico decapita 50 moçambicanos em Cabo Delgado… 430 mil pessoas deslocadas… cadáveres perdidos entre o capim… crianças desgarradas no mato”…

Não aconselharia ninguém a ler este rolo de reminiscências trágicas. Mais desejaria não ter de escrevê-las. Mas faço-o, talvez como exercício de catarse para esconjurar o monstro de sete cabeças, desde a mágoa, o grito, a revolta, o desespero. E faço-o também como homenagem àquele povo com quem lidei na lusa-pandemia da guerra colonial, entre 1967-1969, uma etnia de  um vasto território, tribos e crenças, em que predominavam muçulmanos e cristãos católicos, estes últimos pertencentes à etnia maconde, a mais aguerrida e temida de Cabo Delgado.

Quanto gostaria revisitar Mocímboa da Praia, Nambude, Diaca, a curva da morte, Chitolo, Mueda,  Muidumbe, toda a imensa floresta até Palma, as margens do rio Rovuma, de onde se avistava a Tanzânia, antigo reino do Tanganica. Sonho impossível! Em troca, sinto sob os meus pés a poeira das picadas, as mangueiras e os cajueiros que roçavam as nossas cabeças à passagem dos carros de combate, pressinto os passos daquela pobre gente que, ao ouvir o sinal de “aí vem a tropa portuguesa”, fugiam espavoridas, adultos, crianças, velhos, deixando ainda o tacho da mandioca entre as duas pedras que aconchegavam as brasas da lareira. Vejo o furor dos nossos soldados cortando à catanada os arbustos, os milheiros, todas as plantações em redor da palhota. E eu, lá dentro, descobria objectos de culto católico, imagens de Fátima, terços, evangelhos bilingue (português e maconde) catecismos. E foi aí que despertei para este escandaloso absurdo: “Afinal, estou aqui a patrocinar a matança de irmãos meus, católicos como nós”. Que faço eu aqui? Não apenas eu, mas a Igreja, que se diz de Cristo?... Não suporto, por indigno e sacrílego, que um bispo se chame brigadeiro, um padre coronel ou capitão ou tenente ou alferes! Não é uma comenda, é uma nódoa inapagável no peito e na alma do sacerdócio. Só por crassa ignorância ou indesmentível má fé, que uma religião/Igreja, seja ela qual for, se sujeite tão servilmente às “Nep’s” de um exército, o mesmo que dizer de um Estado!

Cabo Delgado, Cabo grosso de misérias e de sangue, onde um malfadado capitão (miliciano!) manda formar toda a Companhia e, à vista dos 150 homens em parada, ordena a dois furriéis, um de cada lado, que cortem as duas orelhas a um africano vivo, ali à frente de todos. Fora apanhado na picada. Exigia o comandante, por meio de um  intérprete nativo,  que o pobre homem descobrisse os paióis da Frelimo, ao que respondia repetidamente que desconhecia tal cousa. De seguida, foi abatido, ali também à frente de todos, dependurado depois num tronco alto, na berma da picada. Cheguei a vê-lo ainda, só o esqueleto, porque o corpo tinha sido devorado pelas aves da selva. Digo-o e não me arrependo, vi nele o Cristo morto na cruz. Passada uma semana, os africanos retaliaram tragicamente, matando 11 dos nossos, numa mina anti-carro.

Estas e outras “cenas”, perpetradas hoje pelo “Estado Islâmico”, ontem pelo catolicíssimo Estado Português. Uns, os nossos, invocando Jesus e Maria e os outros, os jhiadistas, gritando “Alá (Deus) é grande e o seu Profeta”! Execrável condição dos homens que não aprendem nada e  continuam a fazer do Planeta uma selva de animais ferozes!

Quem me dera voltar atrás para poder desertar quando fui mobilizado ou, em contrapartida, ir pedir perdão a Cabo Delgado, por ter sido forçadamente incorporado num bando que, meio século antes, antecipou os crimes dos terroristas muçulmanos. Razão tem Mia Couto, ao afirmar, em recente entrevista, que a “Grande parte da Igreja Católica foi conivente com a ditadura”, ressalvando, no entanto, o bispo Manuel Vieira Pinto e outros missionários defensores dos moçambicanos.

Se, por um lado, persegue-me o remorso de, em pleno mato, celebrar a Eucaristia àqueles jovens sldos (também vítimas do regime) que saíam para matar, conforta-me o  baptismo dos 32 macondes que administrei no extremo Norte de Moçambique, junto ao Rovuma,  depois de uma acurada preparação feita por monitores também macondes.

Quando e como a ajuda internacional valerá àquela pobre gente, possuidora de tão ricos recursos em prol da humanidade?!

 

23.Nov.20

Martins Júnior

  

         

sábado, 21 de novembro de 2020

“O REI VAI NU”…

                                                                 


                                                             

       O filme, sei-o já, não agradará ao grosso da multidão. E não mo preocupa, porque o Único que teria direito a reclamar, Esse não fala. E se falasse (presunção minha, talvez) dar-me-ia, por certo, o conforto da razão.

Como sempre, é fim-de-semana e vou dessedentar-me às nascentes da minha crença: o LIVRO, onde se faz menção de um rei – estranho rei sem trono, sem terra, sem exército.

Na esteira desse rei Nazareno, uma organização soi-disante sucedânea e herdeira do trono, conseguiu passar de plebeia a aristocrata, metamorfoseou o protagonista em monarca supremo, rivalizando com os imperadores do mundo, (diríamos os DDT, “Donos Disto Tudo”), impondo-lhes o seu vernáculo empoderamento e engrinaldando-se de títulos, comendas, embaixadas, consulados, sucursais e até tribunais e masmorras – tudo à conta de um suposto rei que nunca disfrutou, antes recusou, o estatuto régio.

Julgo desnecessário e redundante desdobrar os requintados mas bolorentos pergaminhos de uma instituição monárquica, a partir do século IV, com o imperador Romano Constantino Magno, a qual ainda persiste na manutenção de privilégios atávicos fabricados à margem e contra os genuínos normativos,  constitutivos do ideário do seu Fundador.

Sempre foi essa a face (hoje, diria, a máscara) identitária com que a dita instituição se tem feito brilhar nos cumes da história de, pelo menos, dezassete séculos consecutivos. Até que, em finais do ano jubilar de 1925, quando as monarquias entravam em agonia irreversível  (Les rois en exil – reis no exílio) eis que o Pontífice Máximo Pio XI instituiu, com pompa e circunstância, a Festa de Cristo-Rei, aquela que lhe é dedicada precisamente neste fim-de-semana. Logo despertaram manif’s, peregrinações, levantaram-se gigantescas estátuas, rasgaram os céus apoteoses de patriotismos nacionalistas que muitos governos, depressa e oportunisticamente,  colaram  ao ceptro e à coroa do Rei-Cristo, marchetado de um peso de ouro mais farto que o seu corpo quase morto.

 

Respeitando embora as tradições e a questionável interpretação das devoções particulares, algo me diz que quanto mais dourada ou diamantina se apresente a Sua efígie, mais se lhe ouve o lamento: “O Rei vai nu”. Porque é outro o seu trono e é outro o seu reino. “O meu não é deste mundo”. (Jo.18,36). Ainda bem que, nesta mesma efeméride, é-nos proposto um outro modelo, a identidade mais fidedigna daquele que muitos pretendem arvorar em potentado monárquico. Desde longe, já o vidente Ezequiel (34, 11 sgs.) descobriu nele a samarra e o cajado de Pastor de um rebanho a que pertencem diversificadas  ovelhas, umas fortes e outras fracas, umas fiéis e outras rebeldes e tresmalhadas. E Ele, o Pastor, toma nos braços as mais frágeis, feridas, e não descansa sem encontrar as que se perderam nas falésias. É por isso que nos seus trajes não há colares de ouro brilhando ao sol, porque  só “cheiram ao pelo das ovelhas”. Já alguém disse isto aos nossos ouvidos.

No mesmo glossário deste domingo, lá vem o Rei, de múltiplas identidades e, com isso, irreconhecível, proscrito, atirado à valeta dos caminhos reais. Ele é o faminto, o sem-abrigo, o doente, o refugiado. Não o de outrora ou de um longínquo continente, mas o que mora ao lado da nossa porta. É este que precisa de ser atendido, visitado, aceite. O outro, o Rei, DDT, não carece de nada.

Vale a pena ler a reportagem antecipada do julgamento universal em que o Rei toma aos ombros a toga de Supremo Juiz. Vem em Mateus, capítulo 25,31 e sgs. Em nenhum outro ordenamento jurídico-religioso se encontra Código Global tão telúrico e tão sublime como este.

21.Nov.20

Martins Júnior        

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

CABO DELGADO – DAS NOSSAS (E MINHAS!) TORMENTAS

                                                             


As palavras caem-me ao chão

Como as armas das mãos dos condenados a matar

Como os corpos às postas sepultos sem caixão

Caem-me os braços o tronco o coração

 

Só dos olhos não me larga

Aquela berliet medonha carga

De cunhetes munições petardos

Onde inscreveram o meu nome

Também o meu nome

 

A um povo indefeso morto de fome

Em vez de pão

Levámos-lhe um natal português

Menino branco na ponta da G3

 

Hoje  as mesma balas as catanas

Pintadas de Mafoma e de Corão

E um mesmo povo mártir carne pra canhão

 

Cabo

Delgado Cabo

Vala de Deus paiol do diabo

Onde deixei os cajueiros e as virgens florestas

A mandioca em cima do braseiro

E as gentes correndo em debandada

Delgado arbusto de esperança

Embondeiro de saudade e de vergonha

Pedra dura onde a cabeça não descansa

E do terror antigo ainda cora e toda a noite  sonha

 

Hoje as palavras caem-me ao chão…

 

19.Nov.20

terça-feira, 17 de novembro de 2020

CELEBRAÇÃO E GRATIDÃO

                                                                       


No estreito espaço regulamentar que, à mesa,  nos separa, cabem oitenta longos anos, outras tantas translações deu o planeta terra em volta do sol e cerca de trinta mil rotações sobre si mesma. Todos os mares e todos os rios permutam o abraço cíclico das águas correntes de todas as vidas, no mínimo canal que separa o velho e a criança.

O brilho das palmas infantis canta no olhar preso à chama iluminante, talvez encadeado por sonhos não sonhados, por caminhos nunca andados, por miragens de míticas viagens. Para o octogenário, o sopro das palmas frágeis da criança lembra o apagar do pavio em fim de ciclo.

Os dois – o ancião e a infante -  mergulham no mesmo aniversário narcísico, momento centrípeto de euforia, em que tudo lhes toca e converge.

Para ela, porém, virá o tempo de dar-se, abraçar a terra e a vida, deslocalizar a centralidade para o mundo em seu redor. E construir, erguer, cumprir!

Para ele, chegou a hora de retrospectivar: o que construíu - ou não, as torres que ergueu - ou não, o que - sim ou não - ficou cumprido. E, enquanto fumegar a chama, ainda que bruxuleante, é o tempo de escutar o  bater primaveril das palmas infantis por entre o nevoeiro das folhas vespertinas caídas no chão: “Continua! Ainda falta cumprir o lugar, o teu e o da gente a que pertences! Falta ainda  cumprir-te a ti mesmo”!

A todos quantos – incontáveis de momento - estiveram comigo nesta mesa, à distância de um toque de telemóvel ou internet (e, sobretudo, de coração) brindo com a taça cheia da minha gratidão, registando a força das suas mãos, mais que a das palmas,  enfunando as oitenta e duas velas desta “Nau Catrineta” onde navego!

Somos apenas um episódio na grande ‘novela’ da História.

Que o nosso episódio – o de cada um de nós, mesmo em tempo de pandemia – enobreça e faça encantar a narrativa em que somos actores e autores indissociáveis, atentos e necessários.

Bem hajam!

 

17.Nov.20

domingo, 15 de novembro de 2020

A MULHER E O HOMEM NA CONSTRUÇÃO CONTÍNUA

                                                                          


Chega o Domingo e o sol encima o pico da montanha para iluminar toda a semana. Enquanto lá fora os farrapos do anunciado  furacão “Theta” cobrem de negrume e chuva a paisagem, dentro de mim e, decerto, de muitos e muitos companheiros de jornada, surgem apelos de esperança e optimismo para os sete dias e sete noites que se seguem. Apelos, toques de clarim que advêm do Livro em cada domingo do ano.  

É, sem dúvida,  uma inspirada ode à liderança da Mulher o texto do “Livro dos Provérbios”, (cap.31, 10-31) para o qual remeto o conteúdo destes breves considerandos. Não fosse a sua autoria atribuída oficialmente ao Rei Salomão, (séc.VI-V a.C.) dir-se-ia tratar-se de uma página proclamatória do excepcional regime denominado Matriarcado.

Com efeito, a Mulher ganha foros de autêntica dominadora, plenipotenciária no âmbito da organização familiar, aliando a mais delicada feminilidade ao dinamismo executivo normalmente adstrito ao homem varão, cabeça de casal. Ela é a vigilante, a ecónoma, a provedora,  a benemérita sensível aos carenciados e indigentes, trabalha a vinha, lança-se ao tear, negoceia com os mercadores. E é por ela, que o “marido brilha às portas da cidade, entre os senadores do reino”. Numa sociedade astutamente tradicionalista em que à Mulher se impunha a condição de subalterna e frágil,  subjugada ao mais forte, o homem, ela surge imponente, pioneira, vanguardista. Vale a pena consultar o texto multissecular, precursor do papel que a Mulher ocupa no século XXI.

O segundo texto exalta a função meritoriamente produtiva do Homem, protótipo de todo o inquilino deste planeta. É a parábola dos talentos (Mateus, 25, 14-30)  em que o Mestre pretende demonstrar que, no seu Reino, a palavra de ordem é produzir, recriar, multiplicar a energia virtual escondida no terreno que pisamos, à espera que o Homem a descubra e desenvolva. Os escravos (na tradução de Frederico Lourenço)  promovidos a gerentes dos bens do patrão serão louvados e agregados aos assentos reais só e apenas pelo coeficiente produtivo que investiram na administração dos talentos recebidos. Só o trabalho é factor de riqueza  e digno de recompensa.

Certo é que há quem veja nesta parábola dos talentos uma apologia do capitalismo clássico.  E sectores da teologia protestante, com Max Weber na dianteira, entendem que o crente deve interpretar como vocação salvífica o enriquecimento pelo enriquecimento, mesmo que ele, enquanto  produtor, não venha a usufruir da riqueza produzida.

Sejam quais as interpretações, este Domingo trouxe-nos um olhar dinâmico do que significa crer e actualizar a nossa crença. Contrariamente a uma visão do Cristo estático, de vitrina ou relicário, derrotado no madeiro da cruz, sequioso dos nossos joelhos dobrados, é-nos apresentada  uma nova constituição programática do fenómeno religioso (chame-se catecismo, manual, breviário ou devocionário) em que a acção ocupa um lugar cimeiro e o cristão descobre o seu verdadeiro cartão de cidadania, integrando-se obrigatoriamente na construção da História, na compreensão e extensão do Reino. Quem pretende fugir a este trabalho de transformação social e cultural exclui-se farisaicamente do Reino. São os que (citando Francisco Papa) “não querem sujar as mãos na terra”, os puritanos que detestam “o cheiro do rebanho”.

Em tempo de confinamento compulsivo, este Domingo parece estar em contraciclo, tantos são aqueles que querem trabalhar e o momento não lhes consente. Mas, ainda que confinados, há  uma outra produção de riqueza por desvendar: investir nas pessoas, redescobrir a força reprodutiva da colaboração mútua e do amor prestativo, mesmo nas quatro paredes onde vivemos. Assunto sério, motivação desafiante que deixo aqui. Importa saber e sentir  que amanhã, o sol nasce de novo!...

 

15.Nov.20

Martins Júnior

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

“PAULO DE TARSO” NO AREÓPAGO DA MADEIRA

                                                                               


Quanto se escreva, quanto se fale e quanto se cale – seja tudo um golpe de asa dominando a onda do tempo. neste tempo de longas vagas! Se navegar é preciso, surfar é-o muito mais. Num livro, num olhar, num poema,  num toque, mudo ou sonoro, até no confinamento, indesejado mas aceite,  reinventar-se e vencer a fraga-praga do século – eis o que é preciso.

         Ora, aconteceu aqui, Madeira, cidade do Funchal, julgo que em nenhum outro país ou região tenha acontecido. Foi o Padre José Luís Rodrigues quem sulcou a maré cheia e corajosamente içou a bandeira olímpica na praia primeira do poder político da Madeira. Pela sua mão e pela sua intuição, o ilustre sacerdote, figura prestigiada do clero madeirense, conseguiu arvorar em plena sala magna do Parlamento Regional  a Palavra da Verdade, a nova Constituição Planetária – por isso lhe chamo bandeira olímpica – a última encíclica do Papa Francisco, FRATELLI  TUTTI.

         Concorde-se ou não (a Religião para o púlpito e a Política na tribuna, advogam os opositores) o certo é que se tratou de um facto histórico, único no percurso de 44 anos de Autonomia, o qual ficará indelevelmente gravado nos Anais da Assembleia Regional da Madeira. Por dois motivos: pelo local, sede do poder autonómico e, com maior pertinência, pelos protagonistas intervenientes no evento, precisamente os representantes dos partidos com assento no Parlamento e respectivo Presidente. A estes dois motivos, adiciono um terceiro, o nuclear, ou seja, a mensagem de fraternidade e justiça social do Papa Francisco, como caminho para a Paz Universal.

         O registo visual do Padre José Luís Rodrigues, na qualidade do moderador, ladeado pelos  líderes parlamentares, só me fez evocar o Grande Paulo de Tarso, o Apóstolo das Gentes, em pleno Aerópago de Atenas, a Academia dos pensadores, filósofos, artistas e políticos da Antiga Grécia. Vem no capítulo 17, 15-34 do Livro dos Actos dos Apóstolos.

         Mas, tal como em Atenas, também aqui seria sumamente útil verificar quais os reflexos desta prestimosa investida doutrinal na nossa “Casa das Leis”. É ali, rigorosamente, o meio ambiente ideal para fazer a semeadura das palavras do Bem, pondo por escrito o pregão pontifício da Justiça e Paz, através de propostas, recomendações e decretos. Resta saber se a encíclica FRATELLI  TUTTI  entrou ali para ficar ou foi apenas réstia de um sol de  outono que alumia mas não aquece. Enfim, sol de pouca dura. Para quem já passou por essas bandas, sabe por observação directa, quantas e tantas vezes os delegados do Povo aprovam ou matam o que a consciência desmente, o que o Povo recusa. Que lhes diria o Papa Francisco se ali estivesse na galeria do público?... O xenófobo, racista e tribal Trump também se apresentou diante duma igreja, de bíblia na mão…

         A sublinhar o arrazoado aqui produzido, cito uma das mais dramáticas interrogações da encíclica: “Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade?... Foram manipuladas para usá-las como instrumentos de domínio”. Temo que todos os partidos, de um extremo a outro, se apropriem das palavras do Papa, não para confrontar-se a si próprios, mas para servirem de arremesso aos adversários. Coisa assim parecida com os solenes discursos presidenciais na República. Todos aplaudem, mas quando tocam na ferida é sempre com os outros…               

 

Voltando ao Areópago ateniense, quando se preparava para aprofundar a sua mensagem libertadora, Paulo de Tarso  foi convidado a sair  do salão nobre com um diplomático articulado: Audiemus te iterum, ouvir-te-emos outro dia… No Parlamento madeirense, a iniciativa do Padre José Luís Rodrigues foi aplaudida lá dentro e muito mais fora dele. Fica por saber o sucesso de tamanho esforço. Roçando as raias de um pessimismo fundamentado, permitam-me recorrer a um velho aforismo da gíria corrente entre clérigos acerca dos retiros anuais: “Não há nada mais inútil que pregar a padres e bispos. Nenhum se converte”. E se isto se diz de uma comunidade recomendada, que se não há-de dizer da classe política?...

No entanto, é preciso surfar, “semear canções ao vento que passa”. Algo há-de ficar! Todos nós faremos por isso. O Povo é quem mais ordena!

 

13.Nov.20

Martins Júnior

 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

DA AGRESSÃO AO ABRAÇO NUMA HISTÓRIA DE GUERRA E PAZ

                                                                         


Pode o pequeno arbusto romper a terra onde nasceu, que nem um ai se lhe sente em redor. Cresce, avoluma-se o tronco, alarga os braços, sobe ao cimo das torres seculares, torna-se gigante da montanha… e nem um leve sopro se levanta na construção da enorme pirâmide verde que domina a floresta.

         Na diversificada orografia da paisagem humana, casos há que valem não pelo fragor atordoado que produzem, mas pela silenciosa ascese da seiva que sobe das raízes subterrâneas e alcança as nervuras das folhas distantes. Não há peças de artilharia sonante, nem passadeiras vermelhas à entrada, nem sequer palavras… A alma das coisas e das gentes sobrepuja o corpo de onde saiu.

         Ocorreu ontem neste exíguo vale, incrustado no grande vale de Machico. Para o grosso da multidão, “nada de novo a leste”. A leste da ilha. Mas no vasto terreno da história – uma história semi-secular – aconteceu apenas isto: a Assembleia mensal do presbitério pertencente ao Arciprestado de Machico-Santa Cruz. Todos os párocos desta circunscrição diocesana marcaram presença: Caniço e Eiras, Assomada, Gaula, Achada de Gaula, Santa Cruz, Água de Pena, Machico, Piquinho e Preces, Ribeira Seca, Caniçal e Santo António da Serra. Sob a presidência do Bispo da Diocese, assessorado pelo Vigário Geral.

         Palavras dispensam-se para qualificar o evento.

         Foi emocionante a Oração de “Tércia” naquela igreja – antes, igreja amaldiçoada pelo poder religioso e pelo poder político da Madeira… e, agora, templo de Oração Sacerdotal. Padres – antes, implicitamente proibidos de oficiar na igreja da Ribeira Seca… e, agora, em paz fraterna, debaixo do mesmo tecto, unidos “numa só alma e num só coração”!

         Prosseguiu a Ordem de Trabalho, no salão-biblioteca, sob os ‘olhares’ inspiradores  do (para mim, santo) Padre António Vieira e os não menos veneráveis Nelson Mandela, Luther King, Mahatma Gandi, Teresa de Calcutá e a ‘supervisão’ do Papa Francisco.

         Assim como dispenso mais palavras, também passo ao largo dos considerandos e relevantes interpretações que este, aparentemente, mero caso de rotina suscita e merece , sobretudo tendo em conta o cenário de fundo que lhe está associado. Ficarão, por enquanto, ao critério de cada observador.

         De tudo, porém, solta-se esta onda luminosa e apaziguadora: a agressão reiterada durante quase meio-século contra esta porção do “Povo de Deus” deu lugar ao abraço. A Paz, uma paz dinâmica e esclarecida, dissipou enfim as sombras paralisantes de uma guerra injusta.

         Em tempo de pandemia, esta é uma variante da vacina que cura o espírito.

 

          11.Nov.20

Martins Júnior

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

TRÊS PARÁGRAFOS PARA SÓ UMA EMOÇÃO

                                                                          


Não, não sou e não serei o único a sentir na pele, desde a ponta dos dedos até ao vértice craniano, aquele baloiçar do azul atlântico, quando um povo multicolor colocou na mão pacífica de Joe Biden o calhau decisivo atirado ao charco que infestava o mar do Novo Mundo. Curvei-me, apaixonadamente rendido, à nomenclatura dominante: Uma pedra lançada na costa americana enche as marés de todos os continentes. Chegou aqui também a onda azul. E de tal forma que, assim como eu dizia “Je suis Charlie Hebdo”, também agora, no reverso da medalha, proclamo garbosamente: “I am American, I am Biden”!

Porque é “Hora de respirar um pouco de ar puro”… Peço ao nosso romântico intérprete que não pare a canção, enquanto vou sorvendo, a plenos pulmões, a brisa suave e gostosa que milhões de homens e mulheres, crianças, jovens e anciãos respiram em liberdade, tão ampla e  avassaladora que nem o corona vírus consegue travar.  Acabou-se o terror, dissipou-se o espesso fantasma, os punhos cerrados como feras, os esgares tribais, as calúnias mais repugnantes, a espuma e o vómito pelos dentes fora contra jornalistas, contra quem “se lhe atravessasse no caminho”. Acabou-se o sacrílego refúgio nas igrejas, de bíblia numa mão… e a arma na outra.

Ninguém, por certo, perguntar-me-á o porquê desta emoção sem limite. Não me perguntam, “mas eu adivinho”. E apresso-me a dizê-lo. É que “eu sou daquele tempo”… O tempo em que conheci um ridículo sósia de Trump: com os mesmos pavores disfarçados de furores, a mesma raiva (já não disfarçada) contra “quem se atravessasse”, os mesmos arrotos paranóicos na sala nobre do povo, os mesmos olhares estrábicos contra jornalistas e, cópia perfeita, a mesma manta sacrista servindo de escudo defensivo. Enfim, o super-imaginário Trump, dono de uma América de 741  Km2 e 250 mil habitantes.

Por isso, “Não, Não sou o único”  a respirar o ar puro que me traz o Atlântico, lá das praias americanas. Só espero que, um dia antes da partida, chegue a hora de poder  ver a ilha definitivamente azul. Porque, até hoje, essa hora ainda não chegou…

 

09.Nov.20

Martins Júnior