sábado, 29 de junho de 2019

“OVELHA PERDIDA É CADA UM DE NÓS” – NOTAS DE REPORTAGEM BREVE


                                                      

Não se trata de novo cartaz de equipa ou um (permitam-me o abuso) new look da fábrica, muito menos de  propaganda intensiva da marca. Foi o encontro de ontem que, a convite do novo bispo, reuniu o clero madeirense. Trago-o, em jeito de reportagem, à mesa deste fim-de-semana, sobretudo por afigurar-se-me, menos nas linhas e mais nas entrelinhas, que um horizonte matinal, mais arejado e claro, começa a desenhar-se na paisagem regional, no que toca à interpretação do fenómeno religioso.
Sensibilizou-me, em primeira mão, o local desta reunião magna: a nortenha freguesia do Porto da Cruz, a mais distante da sede do concelho, acentuadamente marcada pela ruralidade. No meu caso pessoal, revivi aquele cenário singular, talvez único na história da Madeira, em que o bispo David Sousa, recém-nomeado para a ilha, teve de desembarcar no Porto da Cruz, em Dezembro de 1957, após várias tentativas frustradas na baía do Funchal, tal era a levadia intransponível que durante dias assolou a capital madeirense. Indício ou não, foi este mesmo bispo que me conferiu a ordenação em 1962, uma circunstância indelével  na vida de um jovem. Aliada a esta reminiscência, tocou-me também a coincidência de ter sido o Porto da Cruz uma visita quási diária, inerente às minhas funções executivas,  exercidas durante oito anos consecutivos, na década de noventa do século passado.
Ultrapassados estes considerandos episódicos, dois batentes - impossíveis de conter – soaram à minha porta. Um deles, o mais insistente, foi a constatação de tantos “operários da messe” ao serviço nesta porção de território insular. A foto demonstra-o à evidência, mercê da capacidade mobilizadora do novo líder diocesano. Para mim, que há quase 50 anos era afastado destes ajuntamentos, surpreendeu-me o número e a qualificação etária dos presentes: quase todos jovens! E da surpresa passei à interrogação: Qual será a crença da Madeira na mão destes jovens?... Que farão eles para reconduzir a ilha à pureza inicial do povoamento e, mais do que isso, às fontes evangélicas abertas no mundo pelo Mestre da Galileia?... Persistirão na modorra de um dolce farniente  devocionista e, por isso, imobilista, serventuários dos poderes reinantes, à imagem e semelhança de “Eméritos”?... Ou farão da palavra, da acção e da sua juventude uma alvorada nascente no coração de crentes e não crentes?!...
A resposta foi surgindo, ténue e genérica inicialmente, depois mais consistente e incisiva, no comentário que o novo bispo apôs ao texto litúrgico onde se falava da “ovelha perdida que o pastor, deixando as noventa e nove no aprisco, foi buscar a essa, a ovelha tresmalhada”, que todos consideravam como tal. Casual ou não, a parábola evangélica motivou ponderosos motivos de introspecção pastoral – individual e colectiva – ficando implícita uma interpelação, para não dizer, um sério e saudável desassossego de consciência. Um texto a rever e guardar. Só faltou apostrofar como o Mestre: “Quem tem orelhas de ouvir, que oiça”!
No entanto, para que ninguém se arrogasse a tentação de juiz acusador e atirasse “a primeira pedra”, lá veio a receita final de auto-análise e tolerância pedagógica: “A ovelha perdida é cada um de nós”. E somo-lo, de facto, alguma vez na vida. Excelente conclusão que dá passagem directa à lição deste domingo, quando os Doze decidiram incendiar o povo samaritano - pela má recepção que lhes deu -  e receberam da boca do Mestre a sábia sentença, da compreensão e da tolerância: “Não façam isso”!
Que se dissipem trevas antigas e  faça-se a Luz de um Novo Dia!

29.Jun.19
Martins Júnior    

quinta-feira, 27 de junho de 2019

NO ARCO DA CALHETA – O GRANDE ARCO DA HISTÓRIA DE UM POVO!


                                                    

Aconteceu ontem na vetusta herdade dos morgados da ilha, precisamente no coração que, desde os primórdios do povoamento, animou e fez crescer aquela laboriosa população talhada à medida da fertilidade das terras. Aí, sob os tectos do templo quinhentista, sucessivamente alterado através dos séculos, vi claramente plasmada a mais expressiva definição da instituição Igreja: “Mater et Magistra” – Mãe e Mestra.
O livro de texto – “Arco da Calheta, Património Religioso e Alguns Aspetos do Quotidiano”, da autoria do investigador Paulo Ladeira – serviu de mote a uma mui elucidativa sessão de História da Arte, na sua visão holística, enquanto representativa das múltiplas valências sócio-culturais daquela comunidade. Mais ecológico e ajustado não poderia ser o ambiente. Ali, dir-se-ia “ao vivo”, desfilaram os protagonistas do “Grande Teatro” daquele mundo, onde a ruralidade se funde  com a mais fina criatividade artística. Desde as motivações  inspiradoras dos artistas às vivências telúricas das suas gentes, pode afirmar-se sem sombra de erro que fizemos naquela tarde a viagem multi-secular, não só em redor da freguesia, mas em torno da Madeira de outros tempos.
“Mater et Magistra” – disse-o acima. Assim como nos velhos mosteiros cistercienses onde, consubstanciadas com a “casa de oração”, funcionavam aulas de música, humanidades, filosofia e até escolas oficinais, também vimos ontem dentro do templo a reedição daquele paradigma ideal do homem total, enriquecido harmonicamente de corpo e alma. O recém-chegado bispo Nuno Braz “desceu” do cadeirão pontifical e, tal como o Padre Manuel Bernardes no seu livro “Pão Partido aos Pequeninos”, veio o prelado madeirense (autor do Prefácio) discorrer com mestria e acurado sentido pedagógico sobre o património em geral, adequando-o depois ao âmbito local,  em metáforas e alegorias de transparente intuição popular, facilmente inteligíveis. Foi como que a lição da Igreja “Mater”. Coube a tarefa do magistério aos especialistas em História, Cristina Trindade e Paulo Ladeira, que ajudaram a multidão apinhada no templo a aprofundar conhecimentos, para melhor entender e amar o que é seu, o seu património. Foi então a Igreja “Magistra”, na sua função valoradora dos talentos humanos.
A simplicidade do acto cativou os presentes, vendo-se bem que tanto o prelado da diocese como as entidades patrocinadoras da publicação dispensaram as praxes oficiais do protocolo. A culminar esta verdadeira “ágape” espiritual, o coro da localidade, dirigido pelo exímio cultor musical, José Alberto Reis, colocou “a cereja em cima do bolo”.
Sem prejuízo das obras publicadas e publicandas de outros historiadores sobre a Arte Sacra na Madeira, releva-se no caso do Arco da Calheta um povo em busca do seu próprio rosto ao longo da História, pela mão de filhos da terra, o que mais faz subir a estatura autóctone das suas gentes. À Alma do projecto, Eugénio Perregil, e a quem lhe deu corpo, Paulo Ladeira, a mais subida consideração!
Não posso fechar este breve panegírico ao Arco da Calheta sem um desabafo muito intimista: ter encontrado o meu colega de Seminário, o Dr. Manuel da Silva Leça, antigo presidente da Câmara Municipal da Calheta, hoje com 87 anos, mas de uma lucidez penetrante, admirável. Registo a autenticidade e o afecto da sua dedicatória no livro, de que é co-autor: “Para o Revº. Martins, com saudades e amizade”.
À população do Arco da Calheta, os meus parabéns, “que tais filhos teve” e um Bem-Haja por nos ter envolvido neste grande arco luminoso que liga o passado ao presente e ao futuro!

27.Jun-19
Martins Júnior             

terça-feira, 25 de junho de 2019

CONGRATULAÇÃO… CONGRATULATION… CUM-GRATULATIO


                                                                         

      Há mais de uma semana que demando no dicionário das emoções o fonema e  a  sua forma, a síntese  e a ideia exacta para dirigir-me até vós,  que tendes  pintado de flores e mil cores o rio que passa à minha porta. Acho escasso o “Muito Obrigado” do linguajar ‘do cote’ porque neste caso ninguém a ninguém se obriga.
Seduziu-me, então, o ritmo sonoro do vocábulo Congratulação, pelo que, na sua riqueza etimológica, contém de cumplicidade, comunhão, conúbio de ideias e sentimentos. Desde o latim – cumgratulatio – até ao inglês – congratulations – o que da vossa parte derivou para a minha foi um compartilhar de alegrias indefiníveis. O prefixo cum é que lhe dá a essência. Quem, como vós,  endereçou parabéns revelou que todos nós - vós e eu, de perto ou de longe, conhecidos ou desconhecidos -  estávamos e estamos sintonizados, solidários com as mesmas causas, as quais  ultrapassam o indivíduo e revertem para a sociedade inteira.
A causa de uma justiça “justa” e célere, com o direito ao contraditório ou defesa legítima, é algo que toca a toda humanidade. Muitos outros semáforos vermelhos, encontrados nesta conjuntura que dura há 42 anos,  põem-nos alertas  que dizem respeito a toda a condição humana, sobretudo no que concerne ao paradigma de uma Igreja que se quer (minimamente!) cristã. Mas a maior de todas as incógnitas nesta estranha nomenclatura de “suspensão a divinis”, está em saber até que ponto a administração humana e a sua burocracia interferem na relação com a Suprema Divindade. Para os que crêem e para os que não crêem, interessa explicar onde se situa o ponto de  intersecção entre o humano e o divino. Ou, onde acaba um e começa o outro. Ficarão este e outros temas para ulteriores reflexões.
Hoje e todos os dias a minha proposta é esta: Congratulemo-nos! Recorro a uma feliz expressão do Prof. Dr. Anselmo Borges quando chama ao Evangelho uma “boa notícia felicitante”, querendo com isso significar que é fonte de felicidade. No mesmo espírito interpretativo, considero as vossas felicitações como uma partilha da felicidade que, passando por mim, regressa para vós.
Ars longa, vita brevis – citava Goethe no seu “Fausto”. A arte (de abrir caminho) é extensa e a vida é breve.
Mas Caminhar é preciso, por mais longa que seja a estrada!

25.Jun.19
Martins Júnior      

domingo, 23 de junho de 2019

QUANDO UM BREVE RAIO DE LUZ RASGA A LONGA ESTRADA DE UMA VIDA

                                                      

Porque nem sempre o título abarca toda a extensão do texto, vou completar, desde já, o enunciado-supra, acrescentando que um simples feixe luminoso traz dentro de si a potência propulsora de traçar  não só o projecto de uma vida mas o rumo da própria História.
Eis a réstia fugaz que nestes dias me tem perseguido:
“Quando há entusiasmo (força de vontade, convicção) aceita-se de bom grado o que se tem e, na mesma medida, suporta-se o que se não tem. Completai o plano (de solidariedade) que vós iniciastes desde o ano passado. Não se trata de vos reduzir à miséria para  aliviar os outros. O que ´se pretende á a igualdade. Na hora presente, o que tendes em  abundância é o que faz falta à indigência dos outros. O importante é cumprir o que está escrito: Aquele  que semeou e teve a sorte de colher muito não reteve nada em excesso. Igualmente, aquele que semeou e teve a desdita de colher pouco não sentiu falta de nada. O vosso supérfluo á o que escasseia aos outros”.
Imensas e até opostas serão as interpretações deste “panfleto revolucionário”. E esta é, precisamente, a primeira: trata-se de um programa eleitoralista, retintamente populista. Outros dirão tratar-se de uma proposta de lei tendente à justiça distributiva. Alguns forçarão os neurónios e vociferarão anátemas contra o que classificam de ideologia marxista-leninista, encharcada do mais obtuso comunismo.
Hoje, no templo da Ribeira Seca, o Padre José Luís Rodrigues acrescentou-lhe este judicioso comentário: “Não foi preciso chegar à Revolução Francesa, em 1789, para proclamar ao mundo os ideais revolucionários da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Já vêm de muito mais longe”. E tem toda a razão. Porque o texto citado não tem paternidade político-partidária nem muito menos qualquer conotação oriunda do Manifesto de Marx, Lenine ou Engels. Também não pertence aos estatutos de qualquer associação filantrópico-maçónica.
Para surpresa de muitos e ‘escândalo’ de alguns, o texto tem a assinatura de Saulo de Tarso, o intrépido Apóstolo São Paulo! Dirigiu-o, há mais de dois mil anos,  aos cristãos da cidade de Corinto, louvando-os pela subscrição que fizeram em benefício dos cristãos de outras regiões carenciadas. Vem na II Carta aos Coríntios, capítulo VIII. Um espanto! A iniciativa, decididamente ‘legislativa’, proveio não do Império Romano nem do Sinédrio Judaico nem sequer da Sinagoga de Jerusalém. Ela radica mais fundo: na convicção, a que pode chamar-se de entusiasmo evangélico, consciência crística. Ou talvez, no ADN do próprio direito natural, ao qual o nosso Líder e Mestre J.Cristo permaneceu estruturalmente fiel.  
 Confidenciei-vos, acima, que este feixe luminoso tem-me perseguido nestes dias. Explico: é que no dia 22 de Junho de 1969 foi esta a leitura proposta no calendário litúrgico. Li-a pela primeira vez aos cristãos da Ribeira Seca, precisamente há 50 anos, ficando desde então marcados o rumo e o ritmo de uma vida. Sem apelo nem retorno! Enquanto as forças dominantes deste magro reino ilhéu contorceram-se até às vísceras para colar a minha luta às matrizes programáticas de partidos ou facções, nada mais tenho a apresentar senão o texto paulino, daí extraindo as consequências concretas que ditaram os passos de uma vida, na defesa da Igualdade, em direitos, deveres e oportunidades, quer na abolição do leonino contrato de colonia, quer na satisfação das necessidades fundamentais de uma cidadania comunitária, seja no exercício do múnus pastoral, seja no âmbito da  tribuna parlamentar.
Mas o breve raio de luz que dimana da II Carta aos Coríntios ultrapassa o curto limite de uma só vida. Infiltra-se na própria história humana e mexe (deveria mexer!) em todas as estruturas das sociedades. Ficasse apenas um único artigo (o texto de Paulo Apóstolo) inscrito na Constituição Global do Planeta habitado – e o Mundo já não seria inferno de rancores ou arena de interesses tribais. Transfigurar-se-ia no almejado paraíso terreal, onde floresceriam “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” como única e genuína plataforma do Futuro da Humanidade!

23.Jun.19
Martins Júnior                                                                                                                                                                                

sexta-feira, 21 de junho de 2019

50 ANOS DE UNIVERSIDADE: RIBEIRA SECA!




Encosto a cabeça ao travesseiro do tempo e uma incontida emoção não me deixa adormecer, só em pensar que amanhã o mesmo sol de há 50 anos vai abrir-me a cortina de um novo dia. Era um Domingo de estio moço, cavalgando o dorso das montanhas e descendo à fundura do vale. O sol de milénios ficou sempre jovem e eu, de jovem, fiquei octogenário de nascimento.
         Após um ano de magistério no Seminário Menor, dois anos de tirocínio no Porto Santo, mais dois na Sé do Funchal e ainda outros dois em terras de Moçambique retalhado pela guerra colonial, eis-me lançado como Édipo diante da esfinge, como Eurico Presbítero diante de Carteia ou como Moisés frente à Terra Prometida. Os mesmos contraditórios sentimentos de timidez e expectativa, de desafio e de aventura!
         Terra verde por fora, mas amachucada por dentro: sem luz, sem estrada, sem água potável, tinha tudo para apagar o poema  dessa manhã clara. Sem escola de gente, muito menos de crianças, não dava senão para vergar o tronco e a cerviz aos servos da gleba cavando a própria sepultura.
Mas o sol foi maior. A esfinge desencantou-se, aberta e sábia. Carteia e Hermenegarda transfiguraram-se. E a terra que parecia ingrata e feia apresentou-se com o louro dos Poetas na fronte. De passada em passada, fui descobrindo que ali era a Minha Universidade. O Livro era o chão de cada dia, a caneta e o computador estavam vivos no bico da enxada, que os Mestres empunhavam com denodo matinal.  E esses,  os meus Mestres, foram as mulheres e os homens que, mesmo com fome e teimoso desalento, alimentavam a cidade.
50 anos aprendidos - alguns sofridos, mas todos erguidos - na mais original “Aula Magna” da Universalidade de conhecimentos e sensações!
 Eu te agradeço, Ribeira – Seca de apelido – mas Rio enorme, pleno da água fértil que dá força e amor à Vida!... 50 anos de curso! Nesta Universidade, júnior e sénior, ainda me considero caloiro, pelo tanto que há por desbravar e saber. E, sobretudo, servir.
Uma saudade sem termo para aqueles que bem mereciam mas já não puderam ver a luz deste ‘seu’ dia! Estamos juntos.
Como Labão pastor, enamorado de Raquel serrana bela, convida-me Camões a cantar:
“……………. E mais servira se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida”.   

21/22.Jun.19
Martins Júnior

quarta-feira, 19 de junho de 2019

HOJE É DIA DE SER PÃO – HOJE É DIA DE SER VINHO




Se eu for o sol
Abre as janelas do teu quarto
E deixa-me entrar

E se eu for o ar
Fresco e vadio
Solta o pulmão
E vem achar-me no assobio
Do melro preto que te desperta
Cada manhã

E se eu for a estrelícia já aberta
No colo da terra irmã
Toca-lhe o seio, beija-lhe os olhos
E leva-a em festa de rua em rua

Mas não sou flor nem ar nem sol
Nem brisa de mil aromas
Hoje sou pão para que me comas
Hoje sou vinho para que me bebas

Não quero só a janela do teu quarto
Nem o beijo da tua boca
Quero entrar em ti até que fiques farto
Até que  sejas coração esponja do meu
Na embriaguez sem fundo
Que não conhece meu nem teu

Dia de ser Pão de um Deus Maior
Dia de ser Vinho num Cálice de Amor

19/20.Jun.19. “Corpus Christi”
Martins Júnior

segunda-feira, 17 de junho de 2019

O MILAGRE DOS SÍMBOLOS


                                                   

Uma folha A4.
Um pingo de tinta na ponta do aparo.
E três minutos de aconchego à velha mesa da escrivaninha.
Tanto bastou para deitar abaixo muros surdos da vergonha, juntar em delta rios dispersos e transformar em oásis perto as areias secas de mais de quatro décadas de  ínvias encruzilhadas.
                                                                      

Hoje por hoje, este é o milagre dos símbolos. Não é hora da hidrometria nem de analisar as águas e as algas dos rios longe. Não é dia  para classificar os pedregulhos e os entulhos que engrossaram os muros. Nem também será tempo de contar milhares, milhões e biliões do tic-tac  do cronómetro quase semi-centenar que ficou para trás.
Outros dias virão de contabilidade e análise. Hoje por hoje,  basta-nos atravessar a ponte entre-rios e ficar aí em vigilante contemplação, saboreando a síntese da vida e  projectando o novo ritmo da marcha do futuro!
Porque não são as instituições que fazem os homens. São os homens que fazem as instituições!

17.Jun.19
Martins Júnior   

sábado, 15 de junho de 2019

O “ESPÍRITO DA VERDADE” CONTRA OS DOGMATISMOS ESTÉREIS


                                                                         

               É bom e é útil que em cada fim de semana o calendário me ofereça um dia ímpar. Serve-me para haurir dos textos bíblicos dominicais preciosas fontes de inspiração com as quais sacio a sede de saber e o estímulo para o blog hebdomadário.
         Hoje, por exemplo, recorto um sábio axioma, à maneira de um adeus do Nazareno aos homens e mulheres a quem Ele deixaria o mandato de transmitir ao mundo as suas mensagens. E diz assim: “Há muitas outras coisas que quero dizer-vos, mas não é possível por enquanto, pela simples razão que nesta altura vós não sereis capazes de compreender. Mas garanto-vos que mais tarde compreendereis, naquele dia em que vier o Espírito da Verdade”. (Jo. 16,12-13).
         Qual seja a amplitude do conceito de “Espírito da Verdade” que desvendará realidades ocultas em dado momento da história, pode constatar-se à evidência que tal axioma pertence ao código científico de todos os tempos, o de ontem, o de hoje, o do futuro. No domínio científico, o saber é sempre provisório, no sentido de que a cada conclusão ou descoberta segue-se o mesmo ciclo da “tese-antítese-síntese”, movimento concêntrico que nos desafia para novas perspectivas e novas descobertas. O surto  tecnológico, todos os dias reproduzido na ponta de cada avanço da ciência, postula sempre um outro patamar que nos incentiva a subir e a descobrir. Daí que o verdadeiro cientista é aquele que quanto mais alto sobe mais distante fica do seu anseio primeiro, o que o torna humilde e pequeno diante dos grandes enigmas da natureza e fá-lo exclamar como o grande filósofo: “Só sei que nada sei”. E com isto se prova que o dogmatismo está fora do verdadeiro espírito científico, pois conduz inevitavelmente ao imobilismo e à intolerância.
         O objectivo, porém, do texto bíblico em apreço tem a ver com as questões mais profundas da filosofia e da teologia, este o húmus preferencial dos demagogos, seja qual a tendência religiosa ou o pensamento dirigista. Esses são os pretensamente gurus e pregadores – prefiro chamá-los predadores das mentes – cujo programa consiste exclusivamente na paralisia do pensamento, na anestesia crítica, na aceitação cega do dogma vigente. Falta-lhes a frescura mental para apreciar outras paragens, falta-lhes a energia necessária para subir a montanha do saber. Numa palavra, escasseia-lhes o sonho, pelo qual “o mundo pula e avança”. No processo da educação religiosa, então a inércia e a castração servem de armadilhas certeiras nas mãos de dignitários estáticos para truncar o desejo inato de crescer, de forma consciente e autónoma. Basta assistir às investidas sem pudor de certas eminências pardas contra as tentativas inovadoras de Francisco Papa!
         É urgente vencer o medo atávico que estruturas anquilosadas, falidas, pretendem injectar no organismo jovem dos nossos tempos. É urgente que todos os crentes – e todos os homens – abram as janelas do seu espírito para receberem a força dinamizadora do Espírito da Verdade afim de compreendermos hoje o que anteriores gerações atrofiadas não conseguiram alcançar.
         Sejamos sensíveis ao convite do Mestre.
E seremos mais lúcidos e livres!
        
15.Jun.19
Martins Júnior   
            

quinta-feira, 13 de junho de 2019

FERNANDOS E ANTÓNIOS, PESSOAS E VIEIRAS


                                                                     

           Está finando o dia e o que dele  fica são balões, saias, ancas rolantes, marchantes foliões e … “Viv’Ó Santo António”!
         E o que dele fica – deste mago festivaleiro – é Zero. Rotundamente Zero. Ai, Fernando Martins de Bulhões, Santo António de Pádua  ou de Lisboa, o que de ti fizeram?!  Um histrião da feira ou, no melhor dos casos, um bobo da corte popular. Foram precisos 800 anos para te virarem o capelo como fazem aos polvos metidos  nas furnas da costa. Só aparecem quando caem na fisga dos predadores. Assim tu, também, só apareces nos andores das romarias depois de te desfigurarem a alma e embalsamarem o corpo com o Menino ao colo…
         Mata-se alguém quando se o deforma, ou lhe torce o pescoço e o rosto, ou quando  se lhe esquece o rasto. Foi o que fizeram do 13 de Junho de 1231, dia da  morte de um dos maiores protótipos da condição humana: intelectual, ávido do saber, teólogo, místico e asceta, dinâmico e combativo, martelo da apologética e da retórica, polemista e, no mesmo corpo, humilde servidor dos seus  confrades. Enfim, um génio! Conhecedor da Escolástica, herdeira da filosofia de Aristóteles, mas sequaz de Platão e de Agostinho de Hipona, passou de Lisboa para Coimbra, daí para Bolonha e para a França, deixou-se enfeitiçar pelas campanhas de África, na ânsia de evangelizar os povos, mas sem sucesso devido à sua precária saúde.
         Espírito vivaz e temperamento irrequieto, insatisfeito e multipolar,  onde cabiam personalidades plurais, talentos multiformes e aparentemente contraditórios, tocado pelo espinho dos sábios sedentos de alcançar o invisível, talvez o inalcançável, a Verdade Plena. Nesta vertente, identifico-o com o seu conterrâneo Fernando Pessoa, Neste, falecido com 47 anos, a riqueza polivalente do seu carácter reflectia-se nos heterónimos. Naquele, com apenas  36 anos, a versatilidade da sua personalidade manifestava-se não só nos  escritos, mas sobretudo na sua acção concreta. Quem o tem na conta de “santinho” inerte, romântico casamenteiro ou babado “padrinho” das marchas populares, desengane-se. Prova da sua luta implacável contra os agiotas sem escrúpulos, exploradores do trabalho alheio, encontramo-la nos seus rasgos de eloquência, dirigidos aos usurários, aos soberbos e aos homens de leis,  “os quais, (cito) para ganhar dinheiro, ladram nos pretórios como cachorros”!!!
         Não admira, pois, que 400 anos mais tarde, o “Imperador da Língua Portuguesa”, Padre António Vieira, nascido também em Lisboa em 6 de Fevereiro de 1608, tenha colocado no galarim dos seus eleitos o  sósia e conterrâneo e nele se tenha inspirado para o famoso “Sermão de Santo António aos Peixes”.
         Entendi ser meu dever arrancar o manto opaco, quase carnavalesco, com que nesta data tapam alegre e despudoradamente o verdadeiro  rosto do Magno António de Lisboa, o grande ausente do seu dia e da sua festa. Junto-me assim, e com isso, dirijo as maiores congratulações aos atentos  comentadores Dr. Nelson Veríssimo e  Pe. José Luís Rodrigues pelo seu oportuno escrito sobre o mesmo tema. Tem de haver quem informe a multidão, ao menos para desagravar os nossos Maiores e devolver-lhes a sua inteira e nobre identidade!

13.Jun.19
Martins Júnior  

terça-feira, 11 de junho de 2019

O DESEMBARQUE – FALA DA TERRA VIRGEM


                                                       

Era por Ti que eu esperava…

Ainda Vulcano escorria a lava
Donde saí
E assim fiquei aqui
Virgem do desejo arfante
Na ânsia de ser Mãe

Foi quando Tu chegaste Povo atlante
Zargo-Tristão Titã
Espuma e seiva da manhã
Fendendo as salsas fúrias de Neptuno
Abrindo o seio azul da ilha por achar

Velas prenhes de sal e mar
Quilhas da “São Lourenço”
Entrai
Delas farei lençóis da minha cama
E alcovas esponsais, sonhos de cio e incenso
Entre néctares de Baco e Vénus-auriflama

De ti, Povo Luso
Germe ardente e fecundo
Espero semear as naus do futuro
E dar novos mundos ao Mundo

É por ti que aqui jazo
No silêncio de milénios
Porque não tem ocaso
Esta ânsia de ser Mãe
Mária e Mátria de Aquém e Além

Já não serei ilha nem estância
Serei porto da Distância
Onde se abraçam hemisférios
E mais que Verde Madeira dos Amores
A minha pele terá todas as cores
E será meu nome
Rainha e Serva de todos os impérios

11.Jun.19
Martins Júnior



domingo, 9 de junho de 2019

A APOTEOSE DOS ESPÍRITOS


                                                             

Na curva estreita do fim de semana, achei-me de repente  em contra-mão. É que no meio das tropelias divertidas e turbulentas da praça pública, uma onda pairava nos ares e nos mares circundantes. Era a dança dos espíritos, ora suaves como a brisa da tarde, ora provocantes como o rumor da ventania na manhã do Pentecostes.
         Talvez por isso, porque hoje a ‘folhinha’ do calendário marcou precisamente o “Dia do Pentecostes”, tudo em meu redor parece-se com o roçar  de asa esvoaçante, derramando fagulhas de luz na paisagem. É a mensagem do espírito, a linguagem dos espíritos, a começar pelas vistosas e lautas “Festas do Espírito Santo”.
Quão difícil falar do espírito! Da hipostática junção deste mistério ambulante que é cada um de nós:  corpo-espírito. Em que órgão do nosso corpo habita a alma?... Onde é que ela começa e onde é que ela acaba?...Nem a esta magna questão conseguiu responder o nosso famoso neuro-cirurgião, Egas Moniz, Prémio Nobel  da Medicina, quando dizia que “nunca tinha encontrado a alma na ponta do bisturi”.  Da minha parte, sem mais delongas, aventarei a hipótese de que o espírito mora em todo o nosso corpo, desde as artérias fatais aos mais inexpressivos capilares, desde o ‘maestro’ hipotálamo aos mais invisíveis neurónios. Está em tudo a alma toda. Recorrendo a uma aplicação mais ampla, direi que é dentro da mística morada deste  espírito que se situa a ’alma’ de todas as coisas. Incomensurável, poderosíssima é a força do espírito: “Não há machado que corte a raiz ao pensamento”!
E como achar essoutro enigma, de transcendência tamanha, a que pelos séculos fora se convencionou chamar “Espírito Santo”?... Tremenda aventura e não menos temeridade pretender um ser finito desbravar a torre inexpugnável do Infinito!... É caso para dar a voz ao que está no fim do mar: “Quem ousou (ou ousará) entrar nas minhas cavernas…/ Quem vem poder o que só eu posso/ que moro onde nunca ninguém me visse”?...
É verdade que a Revelação, inscrita no “Livro”,  vem ao encontro da nossa miopia congénita. Mas (permitam-me) à força de tanto autonomizar e entronizar o “Espírito Santo”, não estaremos a correr o risco de dissecar o Deus Uno e fazer abalar a “indivisível Trindade”? A História é clara sobre os tumultuosos conflitos entre o arianismo e o catolicismo romano, repetidos a propósito da Questão do “Filioque”. Mais ouso adiantar que,  nos termos de uma  Fé esclarecida, quem recebe Deus recebe-o por inteiro e não às prestações. É a partir  do Baptismo que tal doação se concretiza.
Nesta área devocionista, a imaginação popular, com especial incidência na Madeira e desde os primórdios do seu povoamento, achou jeitoso e divertido um estilo muito peculiar, concentrando a homenagem ao Espírito numa campanha de angariação de lucros com acompanhamento folclórico, muito apreciado em certas zonas rurais.
Mas hoje é a apoteose dos espíritos: da amizade, da coerência, da tolerância, da criatividade, a vários níveis, a todos os níveis da produtividade humana. Nesta interpretação (sem prejuízo e respeitando quaisquer outras interpretações) julgo não estar longe da verdade  se disser que o “Mercado Quinhentista” é uma prestimosa e genuína manifestação do espírito. Um Bem-Haja à organização e a todos os participantes.
Anima sana in corpore sano!
Cultivar o Corpo para nele fazer crescer o Espírito! Viva!

09.Jun.19
Martins Júnior

sexta-feira, 7 de junho de 2019

“DIA D”: MACHICO E NORMANDIA UNIDOS NO DESEMBARQUE


                                                              

             Dois braços alçados na proa do navio e milhares de lenços brancos no cais - eis o soberbo postal marcado a ouro no atlântico azul marinho deste mês de Junho. Ontem, o mundo festejou a entrada dolorosa, mas vitoriosa, dos Aliados nas praias normandas, já lá vão 75 anos. Hoje, amanhã e depois, as naus do Infante “desembarcam” gloriosas no estuário materno da baía  de Machico. É a grande apoteose do “Mercado Quinhentista”.
Circunstâncias opostas, é certo, definem os dois eventos. Naquele, era a reconquista da paz em terras e gentes sufocadas pelo nazismo. Neste, era a paz da baía abraçando os conquistadores dos mares. Mas nos dois desembarques vejo claramente a geminação perfeita dos ideais transportados no ânimo da marinhagem que aportou aos dois “desembarcadouros”. Ambos implantaram o padrão imorredoiro de um bem maior para o presente e para o futuro: a concórdia universal, o abraço planetário, em todas as latitudes, povos, credos e línguas. Um abraço reprodutivo em todas as suas dimensões. No mesmo gesto de desembarcar – com quase 600 anos de separação cronológica -  voava mais alto o mesmo sonho: desenvolver, produzir, construir uma terra melhor!
                                                    

Terá sido sempre assim?
A história aí está para desmenti-lo. Com grande mágoa e não menos desprimor para a condição humana. Quanto a Machico, jamais a história esquecerá o desembarque das tropas expedicionárias do governo da ditadura salazarista contra o povo madeirense e os oficiais revoltosos de 1931. Mais tarde, em 1936, nova investida das “forças da ordem”  contra a indefesa população rural, revoltada justamente contra o monopólio dos lacticínios. Houve mortos e feridos. E – pasme-se – após a data libertadora do 25 de Abril de 1974, “desembarcaram” em plena vila, hoje cidade, de Machico vários contingentes militares armados contra o povo de Machico, unido no seu direito à democracia e à verdadeira autonomia.   
                                         

Não será despiciendo, bem pelo contrário, juntar ao “Dia D”  toda a conjuntura que lhe deu significado e projecção. Seria sumamente mobilizador das consciências olhar o Desembarque das caravelas henriquinas, não apenas na superficialidade visual pictórica da paisagem, mas interpretar os múltiplos “desembarques” em nosso redor, uns benfazejos e positivos, outros inibidores da nossa identidade telúrica, humana.  
Pela minha parte, tento chegar-me  mais perto para ver mais longe. A história é um movimento circular de chegadas e partidas. Nesse cíclico rodopio em que somos inelutavelmente envolvidos, senão mesmo triturados sem dar por isso, leio a grande mensagem: CADA DIA É “DIA D”!
E depende de nós que ele cumpra o seu plano inicial: desenvolver, produzir, valorizar a terra que é nossa!

07.Jun.19
Martins Júnior   

quarta-feira, 5 de junho de 2019

NO MESMO TRONCO: “A BELA E O MONSTRO”


                                                                 

               Contra o silêncio chinês – marchar, marchar! Por isso, retomo o “4 de Junho”, junto-me à lágrimas das “Mães de Tiananmen” e ao clamor da consciência universal contra o branqueamento dos tanques assassinos que esmagaram centenas, milhares de cidadãos, a maioria estudantes, na Praça sacrilegamente chamada da “Paz Celestial”. Como foi possível afogar, em 30 anos, o grito desesperado das multidões esvaídas em sangue?... Quem poderá suportar a abominável afronta de um órgão de comunicação da especialidade, ao afirmar sem escrúpulos: “Desde aquele incidente de Tiananmen, a China tornou-se a segunda maior economia do mundo, com  acelerada melhoria dos padrões de vida”!?...
         Estranha condição, a do ser humano. No mesmo tronco, a bela e o monstro! O tronco é o ano de 1989. O monstro é o “4 de Junho”, o massacre, a ditadura, a desumanidade, que o regime quer disfarçar com o satânico verniz de “avanço tecnológico e economia”. Digo ‘satânico’ porque essa é  “a economia que mata” (Francisco Papa).
A Bela é  o “9 de Novembro” do mesmo ano – a Queda do Muro de Berlim. Naquele, o monstro, é a vergonha arvorada em bandeira e despudorado troféu. Nesta, é a vergonha derrubada, reduzida à ínfima espécie que merece.
         Porquê tamanha contradição nascida do mesmo tronco?
          Tudo está na interpretação da “condição humana”, o mesmo que dizer, do direito, da ética, da dignidade. O consultor economista Laurent Malvezon define em breves traços o panorama sócio-ideológico chinês: “Na China, certas élites económicas opõem abertamente a ética à eficácia”. Quer dizer: ética e progresso são incompatíveis, o mais forte tem de sobrepor-se e anular o mais fraco, o capital terá de subjugar o trabalho. O trabalhador feito “carne para canhão” da economia de um país.
         Por outro lado, é decisiva a função das lideranças de um povo, seja a nível nacional, regional ou local. Daí, a diferença fatal entre o ditador Li Peng e a personalidade democrática de Mikail Gorbachev. Num, a opacidade cega dentro do partido, prisioneiro das oligarquias dominantes, no outro a visão do futuro, abrangente e humanista.
         O grande dilema do planeta onde sobrevivemos está nos herdeiros do mesmo tronco comum de 1989. Que, afinal, são os mesmos desde que o homem pisou terra habitável. Numa das trincheiras, arregimentam-se os sequazes do monstro, fauces escancaradas famintas de lucro e sangue, a qualquer preço. Na outra trincheira, posicionam-se os paladinos da justiça e da verdade.  Por toda a parte, digladiam-se os dois campos, quase sempre com armas desiguais. A qual dos dois pertencemos nós, à “Bela” ou ao “monstro”?
         Lembrar, denunciar Tiananmen é impedir que ele se repita.

         05.Ju.19
         Martins Júnior