segunda-feira, 29 de junho de 2020

O TRIUNFO DA BIPOLARIDADE = SOMOS TODOS BIPOLARES


                                                             
     
           E todo o mundo é bipolar! De um polo a outro, entre dois hemisférios opostos, a bipolaridade inscreveu o seu ADN em tudo quanto existe: no género, na terra e no mar, no dia e na noite, no corpo e na alma, no coração e na mente. Se “todo o mundo é feito de mudança”, também é-o  não só de bipolaridades, mas de multipolaridades.       O alfa e o ómega, o promontório e o abismo, a montanha e o vale, o belo e o feio, o positivo e o negativo.  E, decididamente, é nesta ambivalência estrutural que está o germe do crescimento e da luz que ilumina o presente e o futuro, tal como do chispe frontal entre a tese e a antítese surge a desejada síntese, enquanto instrumento de inovação científica.
Transposto para o campo experimental dos comportamentos humanos, o princípio da bipolaridade saudável, diversa da bipolaridade patológica, deverá constituir o manual iniciático do pedagogo, construtor de personalidades. O educador, seja ele no seio familiar, seja no meio escolar, se não souber diagnosticar a sintomatologia estrutural e as virtualidades insertas nos comportamentos bipolares do educando, jamais cumprirá o nobre desígnio do seu estatuto. Nisso vai a marca distintiva dos autênticos pedagogos que constroem a história e fazem singrar a humanidade nos caminhos da plena realização humana.
Vêm estes considerandos a propósito dos dias 28 e 29 de Junho, tecidos de policromias, liturgias, litanias diante de uma imagem que é a denegação do seu original, a contradição mais absurda entre o representante e o representado. O protagonista era o pescador da Galileia, a imagem é de um titular da mais requintada aristocracia, cone acilindrado na cabeça com três coroas especiosas a que chamam tiara, vara banhada em ouro de tríplice cruzeiro, que dá pelo nome de báculo do poder pontifício. Melhor seria se trouxesse nas mãos a cana de pesca, as redes de emalhar  e na cabeça o chapéu-salitre dos velhos lobos do mar.
É este, o pescador, que há muito interiorizei e de quem hoje me ocupo. Simão Pedro, quase anónimo na companha do barco pertencente a Zebedeu, pai de João e Tiago. É a este Pedro que designo como bipolar, o qual transitou depois para outra Nau, a do Nazareno. Precisamente na bipolaridade dos seus comportamentos vou encontrar a grandeza e a fragilidade da condição humana. Um igual a cada um de nós! Nesta semântica, um homem do povo e, só por isso, um santo popular.
Pedro, rude como os rochedos, bravo e  generoso como as ondas do mar, tímido como a criança que não sabe nadar. No entanto, um homem de mão do Mestre. Foi Ele quem lhe mudou a sorte e o nome: deixou de ser Simão para tornar-se Pedro e Pedra de alicerce. Ninguém tocasse no seu Mestre, que logo desembanharia o navalhão de cortar o pescado e com ele arrancaria a orelha e muito mais ao eventual agressor de Jesus, como fez no Jardim das Oliveiras a um dos guardas da autoridade oficial. Pedro, o maior, o mais corajoso, o fidelíssimo!
Passou-se uma hora, pouco mais ou menos, após ter jurado dar a vida pelo Mestre. E a bipolaridade aparece em toda a nudez e horror: acossado pelo medo no meio de alguns marginais mercenários contra Jesus, jura – uma, duas, três vezes! – Nunca  vi esse homem à minha frente, Não o conheço de lado nenhum.
Tremenda traição, inqualificável, degradante! Onde está Pedro, o incondicional e ardente defensor do seu Amigo e Mestre?! Motivo mais que suficiente para ser irradiado do grupo dos Doze e merecer o desprezo total do Nazareno!
A tanto chegam os extremos da bipolaridade humana! Pedro, um de nós que somos frágeis, tímidos, bipolares!
Mas não acaba na fossa punitiva o comportamento de Pedro. O Grande Pedagogo, o Psicólogo promotor da metamorfose humana, o Mestre da História, aceita o doloroso pedido de perdão do ‘traidor-bipolar’ e coloca-o na liderança da sua Nau, à frente de todos os seus apóstolos. Inigualável, inexcedível, supremo o gesto do Nazareno que, para além da fragilidade humana, intuiu a grandeza e as virtualidades renascidas das próprias cinzas.
É neste pescador que me revejo. E é a este Mestre que cultuo.
Em 28/29 de Junho: em todo o dia, em todo o mês, em todo o ano!

29.Jun.20
Martins Júnior

sábado, 27 de junho de 2020

A DESIGUALDADE, NEGAÇÃO DA ORTODOXIA NA IGREJA


                                                       

De há algum tempo a esta parte, tenho sido tentado a atribuir ao COVID-19  o mesmo título de uma daquelas revistas teatrais do antigo Parque Mayer: “PRONTO a DESPIR”. Porque na realidade se de algum trunfo se pode orgulhar o omnipotente, intocável voador invertebrado é o de nos ter despido a todos: homens, mulheres, novos e velhos, políticos e magnatas, campeões, instituições, reinos e continentes. Todos lhe dobraram a cerviz, abaixaram-lhe o orgulho e obrigaram-se todos a descer do trono e andar descalços no meio da arraia-miuda, fugindo ao bicho ou justificando-se esfarrapadamente  por não lhe poderem pôr cobro.
No meio deste vendaval exterminador, caiu-me a ‘sorte’  de  reencontrar a Carta aos Coríntios, onde Paulo de Tarso faz o elogio da Igualdade, a qual carta suscitou alguns considerandos sobre as religiões, (a Católica, inclusive) cujas práxis teimam em ostentar a Desigualdade nos empolados rituais, no fastígio barroco de certos templos e na requintada  indumentária  herdada do regalismo medieval em que a Igreja se arvorava em árbitro soberano de toda a Europa. Fica-se com a impressão de que todas as sociedades aprenderam os caminhos da humildade e do despojamento, menos Roma, a Católica, não obstante os persistentes esforços do Papa Francisco. Foi o que demonstrei na anterior comunicação.
Eis senão quando, alguém saiu-me ao encontro e deixou escrito no seu comentário uma fortíssima interpelação: “E a Igreja Ortodoxa?”...
 Fortíssima interpelação. Digo mais: pertinente, sábia e indeclinável questão! Permita-me o interlocutor exprimir o meu pensamento sobre o assunto. Desde logo, a Instituição auto-designada de Ortodoxa (refiro-me enquanto instituição e não enquanto comunidade de crentes) apresenta-se como a radical negação de Paulo de Tarso e a mais ridícula e afrontosa deturpação da mensagem nuclear de Jesus de Nazaré.  No cerne desta negatividade está o facto absolutamente indecoroso, para-constitucional e, por isso, deprimente, da submissão da Igreja Ortodoxa e toda a sua hierarquia ao Chefe do país Rússia e respectivo Partido. É  o ‘báculo’ e a ‘mitra’ e a ‘sacralização’ do Estado dito comunista. Primeiro, pelo  necessário agrément do governo na nomeação dos bispos. Depois, pelo histórico da rivalidade em relação ao primado da Cristandade e respectiva sede: Roma no seu início, posteriormente Constantinopla e, agora, pretensamente Moscovo, podendo afirmar-se que se trata, não da Igreja fundacionalmente evangélica, mas de uma Igreja despudoradamente  moscovita, braço ‘esquerdo’ do regime.
Da conjugação destes dois factores resulta um terceiro, aquele sobre o qual têm incidido as nossas reflexões: a magnificência do culto! Desde a decoração ebriamente polícroma do bizantinismo  à indumentária dos clérigos, passando pelo ‘chocalhar’ interminável dos turíbulos de incenso, tudo aquilo é  uma peça de teatro avassalador, capcioso arsenal psico-social dirigido à submissão dos fiéis, vanguarda sagrada do poder divino ao serviço dos novos ‘czares’ do reino. Enfim, o Império da Desigualdade, em tudo contrário à justiça igualitária da Carta Paulina.
É o que sucede à Religião, sempre que os seus hierarcas se submetem aos interesses do mundo, à subserviência dos poderosos, ao tesouro dos  ‘banqueiros eleitos’ – e sempre que o povo deixa perder a sua dignidade, a sua própria autonomia. Assim, também na China. Assim, em todos os regimes totalitários. Assim – afirmo e provo – aqui na Madeira, mutatis mutandis,  durante os últimos 45 anos! Apesar das tentativas dissimuladas que teimam em vingar, começam  a vislumbrar sinais, ainda que ténues, da desintoxicação das mentes e da purificação do ar que todos respiramos.
Oxalá o COVID-19 dispa também a instituição eclesiástica dos ouropéis pseudo-sacros e ressurja na transparência humilde, mas iniludível,  da igualitária Igreja do Nazareno Libertador!         
        
27.jun.20
Martins Júnior


quinta-feira, 25 de junho de 2020

DESIGUALDADES IDIOSSINCRÁTICAS E A OSTENTAÇÃO DA DESIGUALDADE NA IGREJA


                                                                     

       Caminho hoje nas pègadas dos amigos e amigas que apuseram os seus comentários ao meu último escrito sobre o sonho da IGUALDADE, segundo o pensamento paulino, 1789 anos antes da histórica proclamação da Revolução Francesa. Registo com aprazimento o ‘acórdão’ unânime dos comentadores relativamente à matéria em apreço. No entanto, “picou-me” pela positiva a insinuação sub-reptícia de um dos subscritores  sobre a qual tentarei debruçar-me agora.
         Ao alcandorar bem alto o mastro cimeiro da IGUALDADE, presume-se desde logo o seu antónimo, o solo duro e bravio da Desigualdade, de onde a muito custo emerge o sonho, sempre inacabado, da Justiça Igualitária. É uma evidência: o Mundo e a sua História têm como suporte natural os genes da Desigualdade. A paisagem geo-antropológica é toda ela composta de retalhos desiguais, numa miríade de coloridos que lhe dão beleza, perfume e frescura de deslumbrantes tonalidades. E isso é saudável, inspirador, libertador. Quem suportaria o imenso território de um continente ajardinado com flores todas da mesma cor? Ou um céu com pássaros sem conta, todos do mesmo tamanho e do mesmo chilreio? Ou os humanos, todos da mesma talha, cobertos da mesma farda, ainda que de ouro ou prata se vestissem?
         A estas diferenças chamo-as de desigualdades naturais, estruturais, em síntese, desigualdades idiossincráticas, podendo mesmo extrapolá-las para a área da biologia antropológica: o sistema neuro-vegetativo dos humanos não é tirado a fotocópia nem os neurónios de uns são iguais aos neurónios dos outros.
         É o apogeu da Unidade na Diversidade ou,  pelos mesmos sinónimos, é o esplendor da Igualdade nas Desigualdades. Porquê?... Porque, por mais incontáveis e díspares que sejam os seres, todos eles entroncam-se num eixo comum de dois braços iguais: a Autonomia de direitos e oportunidades e o Reconhecimento da ‘personalidade’ intrínseca que assiste a cada um deles. As aves têm direito ao mesmo espaço aéreo, a  rasteira violeta  partilha a mesma terra da palmeira gigante e ao peixe de água salgada nada lhe falta nem tem inveja em relação aos congéneres fluviais de água doce. As “Fábulas de Esopo” ilustram bem esta paradoxal simbiose.
         Espelho e íman catalisador da sociedade humana deveria ser a Unidade na Diversidade acima descrita. Mas é aqui que o “Rei faz fraca a forte gente”. Aqui é que o Homem, rei da criação, destrói a harmonia estrutural da Natura e mata o livre trânsito da Vida comum a todos os companheiros de estrada. Aqui é que deveria imperar, escrita no firmamento, a proclamação de Paulo de Tarso: “O  que colheu muito -  nada reteve em excesso. E o que que colheu pouco -  nada lhe faltou”.
         Porque deixei acima expresso o meu propósito de sublinhar o comentário que um amigo apôs às minhas considerações anteriores, apenas quero assinalar um aspecto essencial à compreensão deste dilema: o Homem, no seu estado natural, teria seguido a mesma pista dos outros seres. Mas - como diz Rousseau, o “Homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe” – tudo se aliena e se perverte quando ao homo naturalis se sobrepõe o homo socialis, agrupado em classes, organizações, instituições, sociedades, sejam elas políticas, religiosas, capitalistas, pseudo-culturais e até futebolísticas…
         À sociedade Igreja exige-se mais que a todas as outras. E em toda a história, ela tem promovido um certo equilíbrio social de indesmentível sucesso, embora assente em padrões supra-naturais e extra-terrestres, a religiosidade,  compaixão teologal, a caridade, o assistencialismo, em vez de voltar ao direito genesíaco da Natureza, à verdadeira teologia libertadora da Igualdade de direitos e oportunidades.
         Cito Abbé Pierre, o fogoso fundador de Emmaus: “Através da história, a Igreja mostrou muitas vezes um rosto odioso. Os papas tornaram-se  reis, por vezes mais poderosos que os soberanos dos grandes países da Europa, e os bispos transformaram-se em príncipes, desde o século IV, sob a égide do imperador Constantino que, ao fazer do cristianismo (até então perseguido) a religião oficial do Império Romano, prestou um péssimo serviço”.  De um outro grande teólogo, Bernhard Haring: “Há  prelados que não têm qualquer pejo de exaltar a toda a hora as suas competências, sem nunca examinarem se possuem a competência profissional e a autoridade dos que constantemente se esforçam por aprender com o povo de Deus. Infelizes daqueles que, sem escrúpulos,  mantêm uma religião de proveito e de poder, segundo o espírito deste mundo. E pergunta angustiadamente:  Mas onde acaba a vaidade dos palhaços e onde começa a zona cinzenta dos orgulhosos?”.    
               Na decorrência de uma herança ritualista, tipo monarquia absoluta, a instituição eclesiástica ‘apalaçou’ as residências episcopais, as embaixadas de núncios apostólicos e ’apalhaçou’ os actores do teatro pontifical com anéis de solteirão rico, colares de ouro principesco pendurando um crucificado agonizante, punhos de renda-seda feminil,  na cabeça um simulacro de torre-de-menagem, enfim, a ostentação da Desigualdade. É o que está à frente dos nossos olhos: Ridicule, mais charmant – confirma-se o ditado. Podem convencer os ignaros de que assim se faz noutros cultos, os indus, os budistas, os muçulmanos. Certo, mas nenhum deles se afirma nem se arroga o privilégio de ser discípulo ou procurador de Jesus de Nazaré, Aquele que “não tinha uma pedra onde reclinar a cabeça”. 
Felizmente que vão  surgindo, com Francisco Papa, outros e persuasivos sinais da verdadeira Igualdade Cristã, ou melhor, lê-se nas entrelinhas da sua mensagem, o repúdio intenso das desigualdades humanas.
        
25.Jun.20
         Martins Júnior   

terça-feira, 23 de junho de 2020

JUSTIÇA IGUALITÁRIA: 1789 ANOS ANTES DA REVOLUÇÃO FRANCESA – A “MINHA CIRCUNSTÂNCIA”


                                                           

       A “circunstância” é o corpo que dá forma ao sonho. Sem ela, o ser resvala para o não-ser e o sonho definha  num sono hibernal, como flor sem fruto. Por isso,  à  “circunstância” chamar-lhe-ei sol de primavera, estrela da manhã, chão firme e reprodutivo, horizonte irresistível, barca de  bandeira  esvoaçante e bússola segura dentro dela. Todas as metáforas de vanguarda iluminante cabem na “circunstância” orteguiana.
         Hoje, trago à luz do dia a “minha circunstância”. Marcou-me em 22 de Junho de 1969. E por ter completado ontem 51 anos de permanência sem quebra, exponho-a aqui, sucintamente embora, mas com o mesmo brilho de há meio-século, na convicção que a sua força anímica, que moveu montanhas seculares, continuará viva como seiva sempre renovada  e talismã de um mundo ideal, reino habitável, paraíso terreal.
         É de Paulo de Tarso em carta dirigida aos crentes da cidade de Corinto, aplaudindo a campanha  social por eles realizada em prol dos crentes de Roma, os quais atravessavam uma crise aguda de sobrevivência, em tempos de  fome e repressão sob o jugo cruel do  regime imperialista.
         O pensamento é este, imperativo de consciência e ordem de comando: “O que entre nós deve vigorar como o mais importante é o seguinte princípio: a IGUALDADE”. (II aos Coríntios, 8,13). A “circunstância” é esta, permanentemente acesa no meu subconsciente: o citado texto paulino foi o primeiro que se me abriu diante dos olhos, no primeiro acto litúrgico celebrado na comunidade  da Ribeira Seca, aldeia marcada pelos mesmos estigmas de esclavagismo da comunidade cristã na Roma imperial: reprimida pelo regime da colonia e carente dos mais elementares direitos sociais: habitação, água, luz, subsistência alimentar.
         Estava traçada a minha “sina”! Como poderia eu cerrar os olhos ou fechar os ouvidos às angústias que emergiam da terra, aos gritos abafados dos camponeses reduzidos à mísera condição de “servos da gleba”, ao cortar de asas às crianças desprovidas de escola e de esperança?... Diante de mim, a desigualdade mais aberrante, os abismos mais ululantes entre a superabundância dos urbanos e a miséria dos rurais, enfim, a contradição aberta entre a Carta de Paulo  e os códigos dos homens! Silenciar, erguer uma torre sineira e lá  adormecer no sono angélico dos puritanos fideístas, dos mercenários canónicos?... Impossível. Melhor seria voltar as costas e fugir, logo na mesma hora!
          Vale a pena reler a Carta, para descobrir o alcance intemporal de Paulo de Tarso, a sua análise cirúrgica da justiça distributiva: “Não se trata, ó irmãos coríntios, de vos reduzir à miséria para aliviar os outros. Eis o que é necessário: a Igualdade. Nesta altura o vosso supérfluo preenche o que escasseia aos outros. É preciso que triunfe a Igualdade, como vem descrita no Livro Sagrado: Aquele que muito colheu não ficou com excessos e aquele que colheu pouco não sentiu falta de nada”.
         Ideal Supremo da paz e da felicidade no planeta dos homens: IGUALDADE de direitos e oportunidades, IGUALDADE de deveres e contributos. Não foi preciso que a Revolução Francesa proclamasse ao mundo os caminhos da “Liberdade, IGUALDADE, Fraternidade”, porque, 1789 anos antes, já os tinha  proposto Paulo de Tarso!
         À livre e generosa inspiração de quem lê estas considerações deixo o manancial inesgotável da análise crítica perante o desconcerto dos nossos dias, onde os altos cumes da finança, do poder e do saber coabitam escandalosamente com os antros mais fundos da pobreza global. Depois da análise, a acção! É o que continuarei a fazer, na linha daquela “circunstância” epistolar de há 51 anos!

         23.jun.24
         Martins Júnior     
                

domingo, 21 de junho de 2020

UMA CARTA “PAULINA”, DE ONTEM, DE HOJE E DE SEMPRE!


                                                  
 Não é o que vulgarmente se chama homenagem post mortem  aquilo que deixei aqui escrito durante a semana passada acerca do Padre Mário Tavares. Homenagens dessas não passam de rituais mundanos, incensos cadavéricos, que ele detestava e eu, na mesma senda, continuo a detestar. Se o recordo é tão-só para trazê-lo de novo à nossa mesa e à sua tribuna de liberdade e sabedoria. É para que nunca a sua voz  lhe doa, pelo contrário para que ela se torna cada vez mais audível e galvanizadora, mesmo desde o silêncio da sepultura.

         Darei hoje,  não um ponto final, mas um compasso de espera na grande partitura do seu Legado. Muitas são as linhas cruzadas em que os nossos caminhos se encontraram: desde os bancos da escola, o curso de Teologia, até ao desdobrar das lides pastorais e das lutas sociais, o magistério nos estabelecimentos de ensino, os forçados anos de capelania militar em África, depois a paroquialidade em zonas rurais e até a passagem pelo parlamento regional. A este propósito, julgo necessário revelar, alto e bom som, a motivação da sua opção pelo partido em que se integrou, como independente, na Assembleia Regional. O próprio nos confidenciou, por mais de uma vez: “O escândalo que muita gente viu  na minha opção política foi precisamente para combater o escândalo maior que foi a nota pastoral do bispo Teodoro, quando comparou o pedófilo padre Frederico a Jesus pregado na cruz. Blasfemo, insuportável”, clamava Padre Tavares.
         Nesta data evocativa de meio século e mais um  ano da minha entrada na Ribeira Seca e após o ataque de um contingente de 70 polícias armados ao seu modesto templo, em 27 de Fevereiro de 1985, Padre Tavares foi a única voz que se levantou na ilha contra tamanho sacrilégio. Escreveu uma carta aberta ao bispo (mais que uma carta foi uma histórica e tremenda ‘catilinária’) da qual recorto aqui alguns excertos, com a foto da época:

“PARA ESTAR COM O BISPO, É PRECISO QUE O BISPO ESTEJA COM CRISTO”     
“Paróquia de São Tiago, 10 de Março de 1985
         Ex.mo e Rev.mo Senhor Dom Teodoro Faria

         Com imensa mágoa e depois de muita oração e de muito reflectir, eu, Padre da Diocese e com responsabilidades de uma paróquia, escrevo para lhe dizer que V. Rev.ma prestou um mau serviço à Igreja de Cristo com o seu proceder para com a comunidade da Ribeira Seca. Faço-o de modo público, porque o acto foi público e só publicamente se pode desgravá-lo.
Uma comunidade tem o direito de ser livre, de ter a sua actividade religiosa, mesmo que o Bispo não goste. É um direito, inscrito no nº18 dos DIREITOS DO HOMEM  e na Encíclica “Pacem in terris” de João XXIII e ainda no Concílio Vaticano II, “Gaudium et Spes”, nº26. O Senhor Bispo poderia reclamar o direito da igreja e casa paroquial. Mas quem construiu aqueles espaços senão o povo que reclama para si o direito de celebrar o seu amor para com o Senhor e quer responsabilizar-se por isso? Um Bispo que se apresenta como um proprietário diante de uma comunidade destrói a sua figura de representante dos Apóstolos que viveram sem bens, mas cheios de Verdade, Amor e Sacrifício e no meio dos pobres.
         Todos sabemos que o problema se gerou com a actividade política do Padre Martins. Mas porventura a Ilha da Madeira conheceu algum político mais activo do que o D. Francisco Santana, enquanto Bispo do Funchal?...  É verdade que não ocupou nenhum cargo político na Madeira, mas a actividade sempre a teve. E até a cadeira lhe foi concedida no Parlamento Regional.
         E V. Rev.ma conhece algum órgão de comunicação social com maior informação político-partidária que o “Jornal da Madeira”. órgão da Diocese com um sacerdote à sua frente?
         Sou forçado também a reconhecer que este proceder na Ribeira Seca foi um acto político oportunisticamente aproveitado por V. Rev.ma  e muito bem explorado pelo Partido Governante.. No dia 27 de Fevereiro, uma força policial “recuperou” a Igreja da Ribeira Seca, para entregá-la ao seu “proprietário”, conforme pedido formulado pela Diocese, na base do Artigo II da Concordata entre o Estado “Santa Sé” e o Estado “República Portuguesa”.
Não houve nem uma palavra de Evangelho! Pareciam dois ladrões que se juntaram para fazer um assalto e repartir os despojos.
         …………..
         Pela Idade Média além, a Igreja, com o mandamento ‘Não matarás’ muita gente matou na fogueira e de outros modos para a manutenção da sua Ordem, da sua Unidade. Nestas coisas, a Autoridade Eclesiástica não gosta que se fale, porque a ignorância dos crimes passados faz com que se não dê pelos crimes presentes.
         Fala-se da não violência, ataca-se a Teologia da Libertação. E no entanto V. Rev.ma, Senhor Bispo, aparece armado!... Que grande contra-testemunho!
              Tantos e tantos do meio do povo, convictos da VERDADE DE CRISTO, imprimem no seu viver uma doação extraordinária pela sua Liberdade e Amor. Se soubessem de tanto lixo que a Igreja transporta, como ficariam escandalizados!...
Neste mundo, para compreendermos o sacrifício de Jesus de Nazaré, temos como imagem a História da Ribeira Seca. Que, pelo menos, Senhor Bispo, surja o sinal da Redenção.                   
                         Ass) Padre Mário Tavares Figueira

Ao mesmo tempo que é um veemente libelo acusatório, o presente documento assume-se como um permanente alerta a toda a Igreja, em especial à Igreja Madeirense e aos seus titulares responsáveis. Como cantou uma voz da Intervenção Pública, Francisco Fanhais, também com ele (e com o Padre Tavares) repetimos: “Vimos, Ouvimos e Lemos, Não podemos ignorar”!



21.Jun.20
Martins Júnior

sexta-feira, 19 de junho de 2020

ERA O MAIOR QUE ESTAVA LÁ E NINGUÉM O VIU!


                                                                

         Fui ali para encontrá-lo. Porque, sabendo-se embora rejeitado pelos Sumos Hierarcas da Ilha, ele marcava sempre o seu lugar. Era o Dia Diocesano do Clero, a cujo tronco genealógico pertenceu desde a infância, por direito inalienável, mesmo que enjeitado e indesejado, “como um filho abortivo”. Mandei os olhos meus a procurá-lo por entre aquela fria estepe de túnicas pálidas, anémicas como o chão sepulcral da velha catedral. Depressa me apercebi que o homem, fisicamente do tamanho de Zaqueu, ainda que ali estivesse, ninguém daria por ele.
Fechei os olhos e abri as persianas da memória e da saudade. Logo, logo  o encontrei. E quanto mais o via, mais ele sobressaia, pegureiro infante e cavaleiro andante,  no meio daquele rebanho de alvas inamovíveis como estátuas jacentes.
Era o PADRE TAVARES! Não de estola em filigrana de ouro fútil nem simulacro extático de sacro museu, mas arcanjo libertador dos hebreus, quando marcava a sangue de cordeiro os umbrais das portas do Povo de Deus.  Ele estava ali, desde sempre, “Martelo de Deus”, na linha de Atanásio de Alexandria contra a prepotência ariana e de  Ambrósio de Milão, combatente imbatível perante os abusos eclesiásticos e os falsários devocionismos do Imperador Teodósio. Trago hoje excertos do Legado que nos deixou em documentos escritos e endereçados aos bispos sobre a vivência cristã na diocese, sem que nunca obtivesse resposta. Ele sofria intimamente com os rumos desse percurso sinuoso e contraditório da diocese, a começar pelas altas instâncias. Em similitude com os dois blog’s anteriores, transcrevo algumas passagens exemplares dessa constante preocupação.
Ficou famosa a proclamação do princípio fundamentante da autoridade na Igreja, em carta aberta dirigida ao bispo Teodoro Faria, datada de 1985 que, provavelmente, será transcrita no próximo dia ímpar, domingo. Eis o princípio: “Para que a Igreja esteja com o bispo é preciso que o bispo esteja com Cristo”. E a propósito da megalómana efeméride dos  “500 anos da criação da Diocese do Funchal” – a que apelidou, com um humor inteligente e denunciador, “Os funcionários de Deus em festa” – escreveu: “A grandeza territorial da Diocese do Funchal, desde o Oriente  até ao Brasil abrangendo a África,  embora com um poder reduzido e não funcional, mereceu uma festa com três anos de solenes celebrações. Um enorme  mas raquítico poder, um balão que depressa se esvaziou, mas encheu o peito das autoridades. E a estonteante vaidade de mandar e saborear os seus gostos produziu estas celebrações de arromba, para expor as medalhas do passado”. Mais adiante analisa e identifica: “Apesar do Vaticano declarar e propor como doutrina Os Direitos da Pessoa Humana, a Liberdade de Consciência e a Liberdade Religiosa, a Igreja como constituição ainda continua tendo um corpo administrativo com imensos vícios administrativos absolutistas. Ainda é hoje uma Igreja do Império”.
                                                

Depois de enunciar o historial das alianças escandalosas entre o poder político e o religioso na Madeira – “ o que levou vários sacerdotes a sair da Ilha pela grande pressão político-religiosa e outros resignaram-se e silenciaram os seus sonhos”- Padre Tavares escreve: “D. Francisco Santana morreu. Os dois bispos  posteriores, ao receberem o encargo da diocese, preferiram mantê-lo igual, num apoio de serviço à maternidade político-religiosa da chamada “Madeira Nova”… Jesus de Nazaré não é um bem escriturado na Igreja Poder, segundo as regras do Império. É um testemunho vivo da Mensagem, colocado na boca dos apóstolos para ser anunciado às gerações vivas de cada época (Marcos. 16,15). Jesus é Vida Viva, acompanhando como luz promotora a Humanidade viva que caminha. As gerações novas não estão forçadas a serem cópias das gerações anteriores”.
Que frescura e juventude num sábio de 85 anos!
Mais directamente, incisivo e realista: “A diocese do Funchal continua a torcer pela arte de castigar. E dentro das igrejas, em ambiente de sorrisos e festa, a autoridade exerce a missão de convidar a todos, pelos actos de fé, a receber a bênção da obediência, a ‘virtuosa mina’ da riqueza nos longos tempos da escravatura”. Ainda: ”Presentemente estamos vivendo um tempo cheio de desastres sociais em crescimento, o que é muito preocupante. Significa sermos parte de uma sociedade em desequilíbrio. E a diocese continua abençoando os seus promotores, contentando-se com a solidariedade dos fiéis num apoio em migalhas aos pobres!... Não deveria ir além das esmolas e serviços litúrgicos?”.
Escrito em 2014! Voz de comando evangélico que nos põe em sentido!
Forçoso é ficar por aqui, pese embora a profundidade do saber, do sentir e do viver que, pela mão do Padre Tavares, vos tinha para contar. Uma conclusão permanece intacta e firme: Padre Tavares é um pensador, um exímio escritor humanista e cristão de primeira água. Procuramos por fora o que temos cá dentro: “Lições de Abismo”, diria Gustavo Corção, “Pensées” de Blaise Pascal, “Confissões” de Santo Agostinho e até “Encíclicas” papais. Tudo isso está no mundo, no nosso mundo, pelo talento de quem hoje procurei crescendo vivo nas ogivas manuelinas da nossa catedral – o PADRE TAVARES.
Por isso, vou caminhando até à tua campa rasa, querido Amigo e Mestre, beijar as tuas mãos frias, essas mãos que a terra vai comendo… mas que continuam quentes e férteis nos escritos que nos deixaste!
19.Jun.20
Martins Júnior
    

quarta-feira, 17 de junho de 2020

DIAMANTE POR ACHAR - A RELIGIÃO DO PADRE TAVARES


                                                           
   
        No meio de um festival avermelhado de pirotecnia clerical, em que a nata de purpurados madeirenses tem brilhado nos céus de Portugal e da Europa – pergunta-me alguém  com certa estranheza -  por que peregrina razão andas tu em contra-corrente, perdido lá nas serranias das Corticeiras, entretido com as peripécias de um mediano cura de aldeia?...
          Small is beautiful – volto a responder com  Ernt Friedrich Shumacher – sem prejuízo das grandes estrelas, mas com a justeza de quem vê entre os seixos do regato o diamante escondido. Eis o Padre Tavares, na sua real dimensão: precioso e  belo (beautiful) na veste da mais rasteira (small)  e transparente violeta de um ‘jardim da serra’.
         Por isso e porque o mundo não o conheceu  (o mundo somos nós!) tomei a decisão de trazê-lo - ele Ímpar - à mesa digital dos nossos ‘dias ímpares’. Após a anterior evocação do seu amor à terra grávida da força evolutiva do Demiurgo Criador, como Francisco de Assis e Teilhard de Chardin, apresento hoje Padre Tavares, enquanto teólogo comprometido com a Teologia do Evangelho, cujo espelho e guia centram-se na personalidade do Nazareno.
         Sei de muitos escritos seus, dispersos em estilo epistolar, endereçados aos colegas sacerdotes, aos bispos e aos órgãos de comunicação social da Madeira e do Continente onde, com a clareza e a coragem que eram peculiares, explicita a sua Sumula Theologica, numa linguagem cuidada e precisa. Eis alguns excertos:
              “Jesus conviveu com as pessoas, abrindo-lhes os olhos através das parábolas e lançando-as na preocupação do pão, da saúde e da solidariedade fraterna. E instalou estes conteúdos no diálogo e convívio com o Pai. O Reino da Criação e o Reino de Deus têm ambos a mesma origem e são inseparáveis”.  A esta união, analogicamente hipostática,  Teilhard designa como o “Deus-em-Cima ( o da Revelação) e o Deus-em- Frente ( o da Evolução). “Por isso, neste ambiente frustrado em que vivemos, fazer do exercício religioso um tempo de petição a Deus, esperançados no prémio eterno após a morte, não passa de um infantilismo. A Vida não é rumo de mortos”.
É de uma evidência frontal que o Padre Tavares foi na Madeira o maior intérprete da Teologia da Libertação, na linha do anteriormente citado Leonardo Boff, Gustavo Gutierrez, Sobrino e Óscar Tomero, Hélder da Câmara.  No que concerne ao juridismo romano-católico, limita-se a este comentário lapidar, de uma acutilância inapelável: “É preciso que o estudo do Novo Testamento seja melhor e mais profundo que o estudo do Direito Canónico e dos rituais sacramentais”.
Em conferência proferida na Sala do Senado da Universidade da Madeira, (2014) propõe e questiona: “Hans Kung, grande teólogo do concílio Vaticano II e crítico do dogma da infalibilidade do Papa, diz que o mundo das religiões é o’mistério e o imenso’ . Mas – pergunta o Padre Tavares – por ser o mistério e o imenso e não se compreender tudo, será razão para excluir a profundidade do tema? … E acrescenta, em jeito de interpelação:  “Nas igrejas funciona o normativo religioso. Os sacerdotes celebram os actos litúrgicos  e as pessoas benzem-se, dizem: Amem, Amem, Assim Seja, batem palmas. Depois, é o silêncio. Existe a fé, mas prefere-se a indolência à genica das questões”.
Penetrando mais profundamente no subconsciente latente activo do ser humano, tendencialmente religioso, como dizia Pascal, o Padre Tavares   descreve o que há de mais íntimo dentro de nós: “No coração das pessoas há sempre toques de acordar, convites a acertar o passo com as obrigações da dignificação. Cada um de nós tem impressa  em si a imagem do Criador, uma imagem falante, desde que a pessoa se disponibilize”.
O formato ‘blog’ não permite alongar mais. Padre Tavares, no recôndito do seu bosque deleitoso, ouvindo e falando com as flores, as vinhas e os pássaros em seu redor, estruturou um Tratado Interior, pleno de ciência teológica e espiritualidade de gema, que nem os de perto conseguiram captar, tal a singeleza e quase ingenuidade aparente com que se aproximava de nós. Mas a sua biblioteca é a melhor testemunha do esforço que investia  na pesquisa de teólogos abalizados, a que se juntou o convívio colegial com o Prof. Pe. Anselmo Borges e Frei Bento Domingues. Fica-me no horto dos lamentos a grande lacuna de que ele não tenha podido deixar  escrita a ‘sua’ História da Igreja, que, segundo me disse, estava toda programada, mas infelizmente paralisada pela doença e pela morte inevitável.
Encerro, por hoje, este reencontro com o Padre Tavares, citando o seu apelo, sempre jovem e determinado, como Paulo de Tarso, o Apóstolo das Gentes:
“Cristo quis colocar-nos como luzeiros no âmago dos problemas da Vida. A tecelagem estrutural da paz, da justiça, da solidariedade, como atmosfera propícia e correcta para o desenvolvimento da Comunidade Humana, o Povo de Deus, deverá beneficiar do derrame das Bem-Aventuranças, expostas no Sermão da Montanha. Isso é nossa tarefa”.
Padre Tavares, teólogo, místico, evangelizador! Sempre vivo!

 17.Jun.20
Martins Júnior

segunda-feira, 15 de junho de 2020

DE SERVOS DA GLEBA A SENHORES DO SEU REINO: UMA LENDA FEITA REALIDADE!


                                                            

Estendo as mãos com o mesmo afã com que o cavador pega na enxada para deixar lá dentro o castanheiro a haver! Debruço alma e coração com a mesma ternura de quem toca as pétalas do botão em flor!
É nesta estranha  e paradoxal simbiose que me proponho contar uma história, quase lenda, passada num longínquo outeiro que, de tão distante, bem poderia ser o nosso. Era uma vez…
O rapaz regressara dos campos minados da guerrilha colonial. Sonhava encontrar a paz entre as maçãs e as cerejeiras em flor do seu torrão natal. Mas cedo se apercebeu de que passara de uma África negra para uma outra, a África branca. Pouco lhe interessava a cor da pele, porque o importante era o que havia dentro dela. E aí é que descobriu que num e noutro continentes, era a mesma a exploração do mais fraco, escravo da gleba aos pés de sobas e senhorios, privado de cultura, escola, vias de comunicação e, para mais, de fronte sempre caída para a terra, sem hipótese de poder erguê-la para o trono do seu amo e senhor.
O jovem viu então reacender-se dentro do peito a chama do  patriotismo, não o da guerra colonial, mas o único fogo patriótico que urge defender e alastrar – o Humanismo. Daí, despiu a farda e os galões de oficial do exército, dependurou provisoriamente os rendilhados paramentais (era padre, pastor de almas) e atirou-se à terra com o mesmo ardor de quem tira dela o pão para o corpo e o ânimo para o espírito. “Plantou uma vinha no outeiro fértil  (a voz de Isaías Profeta ecoava no seu subconsciente)  cercou-a com uma sebe, limpou-a das pedras, escolheu excelentes vides. No meio dela edificou uma torre e construiu-lhe um lagar”. (Is. 5, 1-2). E viu a terra florir e produzir.
Ele sabia que “as palavras convencem, mas só os exemplos arrastam” e, por isso, logo vieram os camponeses juntar-se-lhe numa campanha  organizada e eficaz para o bem comum. Ganharam o sabor nunca antes experimentado: a sua autonomia na produção e comercialização, a capacidade de se constituírem  em  assembleias, o poder de serem ouvidos ante as instâncias governativas. Foi nesse chão de guerra que faltava a última batalha: libertar os camponeses da mísera condição de servos da gleba, o que decididamente conseguiram, em porfiada luta, sem armas, contra um severo regime feudal que fazia daquele lugar a gostosa coutada dos senhorios.
Chamaram-lhe todos os nomes, o mais dócil, “padre vermelho, comunista, reverendo irreverente e fora-de-lei”, à beira da inquisição clerical. Mas o homem couraçado que nele havia derrubou as ameaças e seguiu avante, qual Padre António Vieira, missionário bandeirante no sertão nordestino. Por fim – que a sua caminhada nunca terá fim! – viu realizada a alegoria profética de Isaías:  o ‘lagar e a torre’ dentro do pomar, a Cooperativa ajustadamente cognominada de Liberdade e, sempre em crescendo, a afirmação jurídico-constitucional  daquele ‘outeiro’ elevado ao mesmo patamar de órgão autárquico, equiparado aos seus congéneres superiormente reconhecidos.
…….
Contada a narrativa como se numa aldeia inóspita acontecesse, logo suscitaria em nós o desejo de saber onde esse outeiro e quem esse  obreiro, líder de um tal povo. E eles aqui tão perto, o outeiro e o homem!
É este o primeiro passo que tomei na Redescoberta do Grande  MÁRIO TAVARES FIGUEIRA. Outros seguir-se-ão, na tentativa de não permitir que a terra lhe coma o corpo (o corpo restituído à terra que ele tanto amou!) nem muito menos lhe destrua a herança imorredoira que nos deixou, como legado perpétuo. Hoje, ative-me ao campo ecológico, na linha de Teilhard de Chardin, que preconizava uma fé evolutiva, a partir do biológico, do chão natural, a Terra.  A mesma linha de Leonardo Boff e de Francisco Papa na capital encíclica Laudato Si, como paradigma e caminho para a plena realização da Pessoa.
Deveria aqui citar os escritos do Padre Tavares, mas já que o formato blog não os comporta, limito-me a uma ínfima partilha, de entre o imenso glossário do seu pensamento:
“A Terra é a horta da qual todos dependemos e é o arsenal para todas as nossas actividades: a vida, o bem-estar, o desenvolvimento, a cidadania, etc.. E, ao mesmo tempo que nos fornece tudo quanto procuramos, a Terra exige a partilha de todos e o suor de cada pessoa. O Planeta Terra não é uma oferta. É parceria. É uma exigência que nos é imposta”.

15.Jun.2020
Martins Júnior    
         

sábado, 13 de junho de 2020

POR UM HOMEM E POR UMA MULHER


                                                   

Pelos dois e na sua inspiração, leio os textos que neste fim-de-semana inundarão os templos e as multidões crentes do nosso planeta, Trata-se da contemplação do mundo – uma seara imensa à espera de trabalhadores – e a urgente necessidade de braços para arroteá-la, fazê-la produzir e, por fim,  ceifá-la.
O Mestre Nazareno foi quem assim viu e interpretou o processo evolutivo da humanidade, E, daí, lançou-se na grande aventura de recrutar colaboradores para tão ingente tarefa. Não mandou estafetas em seu lugar, muito menos esperou por intermediários informadores, com fichas de candidatos e credenciais de recomendação. Foi Ele próprio ao terreno, desafiou o desconhecido, expôs-se “às balas” e chamou, convidou, convenceu presencialmente na praça pública, nas praias e até nos locais de trabalho aqueles que,  mesmo desprovidos  de graus académicos ou talentos excepcionais, entendeu aptos para a grande campanha que se propunha. Eles eram pescadores, camponeses, alguns funcionários públicos e, para ironia do destino. Para Ele, o primado da intuição opcional era o axioma popular: “Mais faz quem quer que quem pode”.
E se directo foi o processo de recrutamento, mais informal e autêntico foi o da transmissão de poderes. Contrariando os protocolos aristocráticos das investiduras e tomadas de posse dos sucessores do trono de David – Rei, Profeta e Sacerdote – com cerimoniais especiosas, bênçãos, óleos e unguentos esotéricos, quase fetichistas em pleno Santuário de Jerusalém, o Nosso Líder e Mestre prescindiu de tais empolamentos sacro-burocráticos e, como único diploma superior, preparou-os com o antídoto eficaz  nos embates futuros, preveniu-os contra as megalomanias do poder e da ganância financeira. “Não leveis moeda alguma de ouro ou de prata, não leveis bolsa, nem sacolas para  dinheiro, nem sequer duas túnicas… Fazei o bem, curai os doentes, aliviai todos os seus traumas, fantasmas e dores
e, acima de tudo, levai-lhes a paz
”.  (Mt.10, 1-14). Foi esta a consagração dos seus “eleitos”. Anselmo Borges é claro e directo quando diz que “não consta dos textos evangélicos que Jesus tenha ordenado alguém com o sacramento do Sacerdócio”. A ordenação, nos seus códigos, consistia na assumpção apaixonante das tarefas a realizar, o conteúdo funcional da sua missão: libertar o povo, restituir-lhe a liberdade perdida nas garras da ditadura religiosa da era moisaica!
Teólogos e biblistas de renome apontam, como paradigma do Nazareno, a abolição dos cânones tradicionais, porque vazios de sentido e prenhes de hipocrisia farisaica, propondo a transparência da palavra e a persistência na acção. Em termos actuais, foi a destruição do clericalismo autoritário de que reveste a grande massa do edifício hierárquico-religioso. E é por isso que, neste interregno forçado da pandemia, muitos ditos “fiéis” perderão o rumo e a prática da sua crença, se ela se construir na areia movediça do clericalismo devocional.
Para os outros, porém, os que vêem e incarnam a essência criativa do Jesus de Nazaré, nada se perde, tudo se transforma e fortalece. É destes que falo hoje e neles me inspiro neste fim-de-semana: Padre Tavares e Professora Conceição Pereira. Humanistas de vocação e raiz, dinâmicos na acção, inabaláveis nas suas convicções, valorosos nas horas de avançar contra os muros da vergonha, estivessem nos paióis da exploração financeira, nos ‘bunkers’ do poder ou na penumbra dos templos. Para eles  o perder uma batalha nunca foi perder a guerra. Para eles, morrer ao serviço da nobre causa sindical significava abrir os túmulos da pobreza e da ignorância para fazer ressuscitar quem ali sufocava. A terra, o ensino, a coerência “de antes quebrar que torcer” foram a marca distintiva e o melhor cartão de cidadania crística que deixam como precioso legado aos vindouros. Eles responderam à chamada!
De ambos tive a honra,  o sabor e a força da sua amizade, como seu admirador, camarada e correligionário.
Sejamos dignos da sua eterna companhia!

13.Jun.20
Martins Júnior  

quinta-feira, 11 de junho de 2020

PARADOXOS DE UM DIA MAIOR … QUEM RESPONDE?


                                                        

No dia  - o segundo do ano litúrgico dedicado à Eucaristia, sendo que o primeiro foi em Quinta-Feira Santa – a par da magnitude  cénica de que se reveste desde tempos imemoriais, traz-nos problemas e dilemas de interpretação, aos quais o magistério eclesiástico foge a responder. Aqui os deixo formulados, como liminares brilhando na escuridão, à espera das nossas respostas:
1 – “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem em si a vida eterna” (Jo.6, 51-58).
A questão: dado que as conjunções não são disjuntivas ou optativas, mas copulativas e cumulativas, é legítimo concluir que os comungantes do pão só recebem metade do Cristo, metade da vida eterna, visto que não   bebem o seu sangue. O pão incarna a massa corpórea e o vinho  o sangue do Nazareno. Na hora da comunhão, apenas o celebrante é que toma o vinho, “o sangue”. Os fiéis não. E então, pergunta-se: será possível receber o corpo sem receber o sangue, fonte de vida circulando nas artérias, nas veias, nos vasos capilares?... Receberá tão-só um cadáver do passado? Será possível? Respondam os tratadistas teólogos, hermeneutas sacros.
2 – “A minha carne é ima verdadeira comida e o meu sangue uma verdadeira bebida. Tomai todos e bebei”.
Questão: Teria sido Jesus de Nazaré apologista da antropofagia?... O realismo e a crueza do texto joanino quererão sobrepor a interpretação literal à visão espiritualista, holística, da Eucaristia?...Explicará cabalmente este dilema a doutrina da Transubstanciação?...
3 – “Em verdade, em verdade vos digo: o pão de Deus é o que desce dos céus e dá  vida ao mundo. Eu sou esse pão dos céus” (Ibid.).
Isto disse o Mestre após ter saciado com pão material a fome a cerca de cinco mil pessoas. E acrescentou: “Eu sou o pão da vida. Quem crê em mim, nunca mais terá fome”.
Questão: Não terão os cristãos corrido o risco de entronizar o pão material, sobredoirando-o entre raios flamejantes e tronos dourados e, inconscientemente,  subalternizado a verdadeira essência da Vida?...
4 – “Jesus subiu ao monte e assentou-se ali com os seus discípulos. Havia muita relva naquele lugar, Jesus mandou que a multidão se assentasse em grupos”. (Ibid.) Tempos depois, na Última Ceia, juntou os Doze, assentou-se com eles à mesa (Mt.26, 19 e sgs.) e ali instituiu a Eucaristia.
Questão: na continuidade da questão anterior, não estaremos nós a forjar (ou a consentir) aparatosos protocolos palacianos (vestes, baixelas, pálios orientais,  incensos oníricos e destacadas entidades ornamentais)  com o risco sofisticar e talvez profanar aquele ambiente de íntima convivialidade e pura espiritualidade que Jesus optou para oferecer o pão da Vida e o vinho da Alegria salvífica ao povo que militantemente O seguia?..
.     São estas, entre muitas outras, as “dúvidas metódicas” que se nos afloram num dia em que, pese embora o carácter restritivo da pandemia, voltam à ribalta da publicidade em diversas capitais de distrito e regiões, a nossa inclusive, as comemorações do espírito magnânimo de Jesus de Nazaré em pretender ficar connosco, num Sacramento que Ele quis da mais sã proximidade e nunca de exibicionismo elitista, espectacular. O verdadeiro crente, enquanto destinatário da Eucaristia, tem todo o direito e todo o dever de tentar interpretá-la na mesma óptica do Seu Fundador. É o objectivo único destas modestas linhas.
11.Jun.20, Dia do “Corpus Christi”
Martins Júnior