domingo, 29 de setembro de 2019

“OS VAMPIROS” NA BÍBLIA


                                                     
                     
É nas manhãs de domingo que descubro a luz que irradia para a semana inteira. Ela – a luz – surge de dentro das folhas jacentes do Livro que vem de longe, das areias do Oriente. Livro, umas vezes  enigmático como a esfinge do Egipto, outras vezes assertivo e cortante como a espada de Dâmocles sobre a cabeça da humanidade.
Já na semana passada compus o debate aberto entre nós e José Saramago tentando contraditar, em parte, a tese do “nosso” Prémio Novel da Literatura quando sugere que a Bíblia é um estendal da atrocidades, as mais cruéis, desumanas, injustas e  que quem a lê perde a fé.
Não está longe da verdade histórica a afirmação de Saramago, pois a narrativa do povo judeu, que o Livro condensa, está ensopada em sangue inocente, com o aplauso do justiceiro Deus Iahveh. Mas há excepções. E demonstrei-o através de um homem corajoso, paladino do direito e da justiça social – o Profeta Amós.
Hoje, a estrada de domingo trouxe revérberos ainda mais intensos sobre esta questão. Pudesse eu reencontrar Saramago (como o fiz na sua casa da “Rua da Madeira”, em Madrid, um ano antes de morrer, a propósito do seu aniversário natalício no mesmo dia que o meu) e talvez me não reproduzisse a observação crítica que ele próprio tinha feito a um ilustre clérigo, hoje laureado na hierarquia eclesiástica: “O senhor dita dogmas, mas não responde às minhas objecções, não apresenta argumentos para contrariá-las”.
Pois, mais uma vez abro o Livro, em Amós, cap.6, 1-5) e fico atordoado com a veemência furibunda (nem as mais agressivas catilinárias de Cícero se lhe aproximam)  contra os magnatas governantes de Jerusalém, esses que vivem na opulência, sem um pingo de justiça e mágoa pelo povo que vive na miséria, arruinado de dia para dia.
Eis o que diz o Senhor omnipotente:
«Ai daqueles que vivem comodamente em Sião
e dos que se sentem tranquilos no monte da Samaria.
Deitados em leitos de marfim,
estendidos nos seus divãs,
comem os melhores cordeiros do rebanho
e os vitelos mais gordos do estábulo.
Improvisam ao som da lira
e cantam como David as suas próprias melodias.
Bebem o vinho em grandes taças
e perfumam-se com finos unguentos,
mas não os aflige a ruína do povo.
Por isso, agora partirão para o exílio à frente dos deportados
e acabará esse bando de voluptuosos».

“Grandíloquo, alto e sublimado”, cito Camões. Arrebatador!
Milénios mais tarde, viria José Afonso e chamá-los-ia “Vampiros”
 “Que vêm em bando  pela noite calada
Comem tudo e não deixam nada…
Trazem no ventre despojos antigos
Bebem o sangue fresco da manada
Mas nada os prende às vidas acabadas…
Senhores à força, mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei…
Eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada…

Quem não vê na vigorosa canção de Zeca Afonso o libelo condenatório inexoravelmente lançado pelo Profeta Amós? Mas vai mais além na sentença inapelável: “Serão deportados. É preciso acabar com esse bando de parasitas”! (Sic).
Cuidado! A Bíblia não é só um cemitério de vítimas ou um rosário de preces. É também este grito de denúncia, esta sentença arrasadora das injustiças e este combate sem tréguas às assimetrias sociais! O que faz falta é saber ler. E agir, em vez de nos ‘deleitarmos’ no charco das lamúrias pias, estéreis. A este propósito, importa reter o pensamento do Prof. Doutor Anselmo Borges, o maior intérprete em Portugal da mensagem do Papa Francisco:
“É verdade que a crise é também, e talvez sobretudo, de cultura moral e espiritual, mas não é possível avançar sem uma implicação séria e a fundo na social. Não se pode pretender fugir ao problema social invocando apenas o caminho da crise espiritual e de valores. Citando o Papa Francisco, “Nada mais alienante e falso do que a religião desencarnada”. (Francisco, Desafios à Igreja e ao Mundo, Gradiva, pág. 240).
Belo caminho, Estrada da Luz, para a semana e para a vida!

29.Set.19
Martins Júnior

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

100 ANOS DE SONORA LIBERDADE !


                                        

 Irresistível, porque encantatório e libertador!
Após ter evocado no texto anterior os 100 anos do fascismo, soprou do firmamento da história uma onda azul que a todos nos envolveu e como que nos purificou do secular breu fascista. Aconteceu ali mesmo à beira-mar da cidade e, como que para ironia dos tempos, num local de outrora, denominado “Cais do Carvão”. Ali, num toque de magia, descarbonizou-se simbolicamente a grande noite do fascismo.
Porquê?
Comemoravam-se 100 anos da mítica colectividade que firmou a sua chancela na historiografia musical da Madeira, sob a designação de ORFEÃO  MADEIRENSE. Por isso lhe chamo Irresistível, Encantatório, Libertador a este dia memorável!
 São frágeis as palavras – e, por isso, parcas também serão – para desentranhar as emoções deste momento que perpetua um século de ritmos, baladas, árias, barcarolas, alleluias, marchas triunfais e melancólicas elegias. Quantas centenas, milhares, talvez milhões de vozes brancas, sopranos angelicais, timbrados barítonos e cavos ‘baixos’ profundos encheram a cidade e a ilha, fruto do labor intenso, inquebrável de homens e mulheres cujos nomes a memória do tempo esqueceu mas que ficaram gravados em caracteres de ouro nas divas aras de Orfeu! A todos os ouvi e ‘adorei’ dentro daquele velho ‘coliseu’ a-céu-aberto. Desde o seu fundador, o eminente musicólogo e intérprete Dr. Passos Freitas, até aos vários maestros dos quais recordo mais de perto o meu professor Pe. Dr. Rufino Silva e o colega e amigo Victor Costa.
Sensibilizou-me a interpelação da mais antiga orfeonista, ainda no activo, quando me perguntou: “Então, vem matar saudades do seu tempo?”… Lembrava-me ela a época (já lá vão algumas décadas) em que prestei a minha modesta colaboração como director artístico do Orfeão Madeirense e daquele inolvidável espectáculo de Fim-de-Ano na lagoa dos jardins públicos da antiga Quinta Vigia.
   E o “Cais do Carvão”!... Como eu o conheci, há cerca de 70 anos, o nosso local de passeio semanal, os muros em ruínas, a maquinaria da velha fábrica - ainda lá estão alguns vestígios – o mesmo mar ao lado galgando as mesma pedras do ‘calhau’…
Belíssima iniciativa do Orfeão em convidar o Grupo Coral de Machico e o Grupo Coral da Ponta do Sol para “damas de honor” do seu centenário.
E de tudo quanto vimos e ouvimos – outras são as vozes e outros os reportórios – o que fica é a grande lição da história: Valeu a pena! Talvez atravessar o “Cabo Bojador”, vencer baixios e nortadas, aguardar enseadas estratégicas… mas nunca desistir! Cada um de nós e cada geração somos um episódio na grande novela do Tempo!
Parabéns ao ORFEÃO MADEIRENSE!
Os vossos 100 anos de sonora liberdade contribuíram também para apagar o rasto de 100 anos de desafinada e desatinada escuridão.

27.Set.19
Martins Júnior


quarta-feira, 25 de setembro de 2019

100 ANOS DE FASCISMO NUM CEMITÉRIO QUE AINDA SOBREVIVE !


                                                               

    O fascismo faz 100 anos. Há quem o tenha enterrado definitivamente,  mas há também quem lhe acenda 100 velas e lhe cante “Parabéns”. São os extremos em presença! Mas há outros – a grande multidão – que, inconscientemente, alimenta dentro de si resquícios, sementes  inatas de um culto ao fascismo reincarnado nos tronos dos regimes políticos e nos meandros do quotidiano relacionamento dos diversos agregados sociais. Umberto Eco analisou este estranho fenómeno da condição do homem-em-sociedade, no seu livro a que deu o expressivo título “O Fascismo Eterno” (1995).
         Num tempo movediço como aquele que o mundo vive, onde as estruturas governativas e as tensões internacionais ameaçam fazer colapsar o equilíbrio sócio-político e ambiental do planeta, será útil revisitar a génese do fascismo, o seu crescimento, as metamorfoses camaleónicas com que se disfarçou e, retomando Umberto Eco, a sua revivescência até aos nossos dias, talvez até sempre. Sobretudo, para lhe descobrirmos o embuste e a peçonha que nele se escondem.
         Itália – a pontifícia e sacra Itália – foi  seu berço. Em 1919. O pai: Benito ( Bento,Bendito) Mussolini. A ‘bíblia’ programática do fascismo foi publicada nas páginas de Il Popolo d’Italia, Junho 1919. Qual a atracção fatal do fascismo? É Ian Kershaw quem nos explica, em À Beira do Abismo, que na tradução espanhola se define como Descenso a los infernos:
         “O lado emocional, romântico e idealista  do fascismo, bem como o seu activismo violento e aventureiro, exerceram uma atracção desmesurada sobre os homens jovens que tinham sido expostos aos mesmos valores nos movimentos juvenis da classe média – quando não pertenciam já às organizações da juventude esquerda ou católicas”.
         O mesmo historiador continua e traça as causas conjunturais que deram origem ao movimento:
         “A vitória do fascismo dependeu do descrédito total da autoridade do Estado, de élites políticas fracas que já não conseguiam garantir que o  sistema defendesse os seus interesses, da fragmentação da política partidária e da liberdade para a construção de um movimento que prometia uma alternativa radical”. Andrea Rizzi, colunista do El País, acrescenta “outros objectivos louváveis, como o sufrágio universal, (e a elegibilidade das mulheres), as jornadas laborais de 8 horas e o salário mínimo”.
         Porque não está no escopo destas linhas escalpelizar a anatomia do fascismo, só importa aqui e agora erguer na amplidão do planeta um grito de revolta à espera de uma resposta que nunca chega: Como foi possível que  o movimento italiano chegasse ao cúmulo da barbárie, aos paroxismos do nazismo alemão, do salazarismo português, do franquismo espanhol?... (A propósito, saudemos a decisão da Justiça madrilena em retirar do ‘Vale dos Caídos’ o corpo do generalíssimo Franco, pois o assassino não é digno de ocupar o chão sagrado onde estão as vítimas que ele mandou matar)…
          A resposta deveria sabê-la cada um de nós. “Os homens fizeram o mundo assim”! O povo assim quis! O egoísmo, o oportunismo, a inércia, os silêncios cúmplices… E em muitíssimas circunstâncias, a nossa desatenção, os panem et circenses (pão, patuscadas, jogos, arraiais) que oferecem ao povo. E enquanto o povo se diverte, os seus inimigos manipuladores preparam na noite minas e armadilhas para tramá-lo. No dia do voto!... Todos os ditadores do fascismo ganharam o pódio na urna do voto. Para, de seguida,  meterem os votantes na urna do fascismo.
         Os madeirenses, de tantas décadas passadas, já são “doutores” nesta ciência política. Apetece cantar, a plenos pulmões, a proclamação de Fernando Lopes Graça: “Homens, Acordai”!
Homens, Mulheres, Jovens de todas as idades, Acordai!
         Após, 100 anos, “o fascismo não passará”!
25.Set.19
         Martins Júnior

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

CONTRA O IMPÉRIO “MONO” – VIVA “SETEMBRO 22”


                                                              

         No princípio era a Ilha. – afogada pelo mar, o mesmo e único mar.
Eram os DDT, os ‘Donos Disto Tudo’, capitães Donatários.
Era e continuou a ser a Diocese. Aliada do Poder.
E domesticadora, castigadora, castradora do Povo.
Era a Monarquia de lá. Depois,  veio a República e veio a Democracia.
Mas continuou a Monarquia. A de cá.
Habituámo-nos e ‘gostámos’ do mar que aperta, do DDT (não de dois, mas de um, o Único) que nos garroteou e depois nos deixou órfãos. Gostámos das sotainas vermelhas que nos metiam debaixo delas para nos salvar.
Sitiados, anestesiados, domesticados até ao tutano, já não podíamos viver sem a grilheta que nos prendia à cela, sem a peneira que nos tapava o sol e sem o tapume de chumbo que não nos deixava respirar.
Quantos madeirenses puderam respirar o ar puro da liberdade ou sentir o cheiro álacre da sua verdadeira autonomia?... Quantas gerações?...
Até mesmo quando Abril rompeu as cadeias e soltou as rédeas do vento norte para enchermos de um novo sopro os pulmões da Ilha, deixámo-nos ficar acorrentados à sombra da bananeira, a mesma,  regados e untados com a mesma água-benta que lhe engrossava o troço… Durante 43 anos.
Mas alguém chegou e abalou as portas férreas da ditadura eclesiástica. E soltou um Povo!
Terá sido o prenúncio do novo ar que ontem, Domingo 22,  se evolou sobre os insulares? Oxalá! Seja a capicua da sorte o novo rumo desta Nau, chamada Madeira!
 Terminado o reino dos “Monos” – o monopoder absoluto, o monopartido, a monosotaina – abriram-se, enfim, as comportas, ainda incipientes, inseguras,  do diálogo, da cooperação, do respeito mútuo e da construção comunitária. Saibamos segurá-las, ampliá-las!
          
23.Set.19
         Martins Júnior




sábado, 21 de setembro de 2019

QUANDO SARAMAGO NÃO TERÁ RAZÃO…


                                                                        

Será mesmo neste fim-de-semana, entre 21 e 22 de Setembro/2019. Estivesse vivo entre nós e pediríamos ao “nosso” Prémio Nobel de Literatura falasse connosco:
- Lembras-te, ilustre José Saramago, daquela vez em que apostrofaste a Bíblia Sagrada e solenemente afirmaste que quem a lesse perderia a fé?
- Sim, lembro-me perfeitamente. E reafirmo com a mesma convicção. O Livro Judaico é um estendal de crimes, atrocidades e escândalos capazes de tirar a fé ao mais fanático dos crentes.
-  Como assim?
- Então não vedes vós aquela apologia das guerras, umas fronteiriças, outras fratricidas,  em que é o próprio Deus Jeová armado até os dentes, feito comandante das tropas israelitas até ao cúmulo de o proclamarem “Senhor Deus dos Exércitos”?!... Lede, por exemplo, o bárbaro Salmo 135, onde o  “Santo Rei David”  roga a Deus que premeie com o céu  quem despedaçar  contra a rocha  as crianças de peito, filhas dos combatentes  do exército contrário, só para vingar a derrota infligida às tropas israelitas.   
- Certo, porque é a história dos judeus contada pelos próprios. Mas há outra narrativa, paginas brilhantes, proféticas, em que a justiça distributiva ocupa o topo da revolução social.
- Provem-mo, dêem-mo um único exemplo.
- Nem de propósito. Se estiver atento às leituras bíblicas deste fim de semana, ilustre José Saramago, há-de encontrar o texto do profeta Amós, cap. 8, 4-12:

“Escutai bem, vós que espezinhais o pobre
e quereis eliminar os humildes da terra.
Vós dizeis:
«Quando passará a lua nova,
para podermos vender o nosso grão?
Quando chegará o fim de sábado,
para podermos abrir os celeiros de trigo?
Faremos a medida mais pequena,
aumentaremos o preço,
arranjaremos balanças falsas.
Compraremos os necessitados por dinheiro
e os indigentes por um par de sandálias.
Venderemos até as cascas do nosso trigo».
Mas o Senhor jurou pela glória de Jacob:
«Nunca esquecerei nenhuma das suas obras».

E comina com uma série de maldições os opulentos feitores do capitalismo selvagem:
“Não estremeçará a terra por causa disto?
Cobrirei as vossas terras de trevas sem pleno dia.
Converterei as vossas festas em luto.
Porei uma navalha sobre todas as vossas cabeças.
Os cânticos dos vossos palácios serão gritos de aflição”…

Estas e outras mensagens condenatórias, sublinham os comentadores, têm como destinatários os poderosos de então e, entre estes, na primeira linha, ”o clero e a nobreza”. Compulsando muitos outros lugares paralelos, encontramos nos textos bíblicos episódios de relevo, mesmo no Velho Testamento, portadores de uma veemência arrebatadora contra os exploradores do povo, os ditadores, os soberbos detentores do poder. Só que, ao longo dos séculos, a Igreja escondeu aos olhos dos crentes o embrião revolucionário implícito nas páginas do Livro.
Foram essas sementes escondidas que os mensageiros autênticos desentranharam do subsolo bíblico e lhes deram força e clarividência para entrar decididamente na luta por uma sociedade justa, igualitária em direitos, deveres e oportunidades.
Excelente reflexão para este fim-de-semana!
E perdoe-me o laureado Prémio Nobel  da Literatura esta ousadia de circunstância, explicável apenas pelo que de oportuno e construtivo ela pretende traduzir.

21.Set.19
Martins Júnior

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

… “REABRIR DE JANELAS QUE JULGAVA FECHADAS”…


                    

Não há portas nos muros da cidade
Nem janelas nas areias do deserto
Muros e portas são as mãos que as fazem
E dentro delas
Nascem e morrem todas as janelas

Se for no mar fundo o teu castelo
Eu serei as ameias
Por onde verás todas as luas-cheias
Da abóbada celeste

E se no ermo mais agreste
Fizeres térrea a tua choça
Eu serei o velho postigo
Para deixar entrar o chão de estrelas
Que trago comigo

No reino dos dias inteiros
De um tempo sem ponteiros
Não há muros nem janelas
Nada é fechado
Porque tudo é verdadeiro
    
19.Set.19
Martins Júnior                                                                                            
            

terça-feira, 17 de setembro de 2019

A MAGIA DA “RENTRÉE”… QUAL É A TUA?


                                              

Não foram as tropas de Junot  ou Massena que puseram em solo português a marca napoleónica que mais tarde se foi infiltrando até impor-se definitivamente no linguajar dos fins-de-verão de cada ano – a famosa Rentrée. Quer seja entrada ou reentrada, começo ou recomeço - é dela que falamos. Fica-nos até a tradução semântica da “rentrée” como a de uma primavera extemporânea, mas com a mesma intensidade da terra arável que se abre em promessas mil ou como o despertar de uma letargia hibernal para a energia fértil do sol da manhã.
Ei-las que surgem, as “rentrées” de Setembro: umas coloridas, vistosas, outras tímidas, expectantes, outras ainda silenciosas. A primeira é a “rentrée” política, aquela que deu  nome a todas as outras e, por isso, é a mais ruidosa, importuna e atrevida, que invade as casas, os adros, as rotundas, as avenidas, enfim, aquela que mexe com tudo o que mexe e vota. Segue-se-lhe a não menos retumbante, bombástica “rentrée” dos futebóis, dos fanáticos esgrouviados, dos intragáveis “doutores da bola” que agarram a segunda-feira de todas as estações televisivas. Chegam ainda as “rentrées”  das férias, voos e cruzeiros carregados de cansaço, com o espectro do trabalho à porta. Outras são as “rentrées” escolares, da pré-primária que deixa correr uma lágrima furtiva na face das mães quando deixam a criança na escola, a reentrada no liceu, o ‘privilégio’ da faculdade. Tantas e tantas são que marcam vincadamente a estação e a psicologia de cada “caloiro” ou “veterano” da vida! Até nos oásis oficiais do sagrado – leia-se hierarquia eclesiástica – as sotainas voam como pássaros extra-terrestres, de cor preta, vermelha ou escarlate, uns para as capelas rurais, outros para as nunciaturas ditas apostólicas (caso de Portugal) e outros para o purpúreo principado do cardinalato.
Reabrem-se as portas. Resta saber com que espírito entram todos esses corpos. Corpos que somos nós! Com que passo franqueamos a entrada ou reentrada? Faz toda a diferença não tanto o tempo mas o modo de atravessar o portão. Por isso, num outro dia deixei escapar aqui este desabafo: diz-me qual a tua “rentrée” e eu dir-te-ei quem és. Percorrendo as diversas alas descritas no parágrafo anterior, detectamos como são tão distintas, algumas até contraditórias, as “rentrées” de cada ser, de cada classe profissional, de cada estatuto social, de cada faixa etária! Há os que são levados pela sofreguidão do poder, outros cujas chuteiras andam e tresandam a livros de cheques, a cofres dos euros e dólares, ao purulento cancro da corrupção. E sentem-se bem nesse seu meio ecológico! Há, ainda, os criadores de sonhos, almejando o enriquecimento cultural, espiritual, o seu e o daqueles que usufruirão da sua entrega total. E, nos antípodas, há os mercenários e os que das alfaias sagradas fazem trampolim para os altares da fama, do poder e do dinheiro…    
Aqui chegados, à porta da nossa “rentrée” está a inexorável sentinela da nossa própria consciência, semelhante à misteriosa esfinge de Tebas. E pergunta:
Com que alma e coração reentras no “ano novo” que Setembro te oferece?...
Só saberá responder-lhe quem tiver a coragem de empreender a grande, a maior e sempre quotidianamente repetida viagem da vida: a viagem para dentro de si mesmo. Onde haverá por aí quem queira fazer a “rentrée” para dentro de si mesmo?!...
    
17.Set-19
Martins Júnior

domingo, 15 de setembro de 2019

EM TERRAS DO PORTO SANTO: O EPISÓDIO QUE SOMOS!


                                                               

              De há muito que me acompanha esta invisível pitonisa a bater e rebater-me no subconsciente latente activo: “Por mais que faças e sonhes, a tua vida não é mais que um episódio breve na grande ‘novela’ da história”.
         E se, de uma parte, ela nos espeta o ferrete da desilusão, também, por outra parte, ela nos pacifica e redime, porque nos faz “cair na real”, fazendo-nos olhar com estoicismo e redobrado prazer a trajectória dos nossos passos na areia.
         Avesso que sou a escancarar as portas do quotidiano particular, tipo strip-tease instragram, tão ao mórbido gosto do rebanho cibernético, vou abrir uma excepção para provar em três cenários a veracidade daquela pitonisa. Tudo é um episódio, até a nossa própria vida.
Aconteceu entre 13 e 15 de Setembro.
Convidado para presidir a um casamento na ilha do Porto Santo, aceitei com duplicado júbilo. E porquê? Porque nos jovens  nubentes, à minha frente , eu “via” um outro casal também jovem outrora –  hoje, sexagenário, marcado pelas rugas do tempo. Este casal, fui eu que presidi ao seu enlace matrimonial, já lá vão quatro décadas. E aí, ciciava a pitonisa aos meus ouvidos: “Estás a ver? O episódio de outrora, voltou a repetir-se quarenta anos depois, com novas roupagens e novos ritmos.       Mais tarde, a carruagem do tempo percorrerá mais quatro estações, apagar-se-ão os episódios anteriores e os holofotes do palco reabrir-se-ão para ‘representar-se’ novo episódio com novos descendentes, filhos, netos, bisnetos, a todos simulando um perfeito e único episódio, porque dos anteriores já ninguém ter-se-á lembrado”.
A abrilhantar o cenário – e este é o segundo episódio – esteve a “Tuna de  câmara de Machico (TCM) fundada na Ribeira Seca em 1983. Nos instrumentos-cordofones  que estes jovens dedilhavam, eu sentia o pulsar de dezenas, centenas de outras mãos extraindo dos bandolins, bandolas, bandoloncelos, guitarras e baixos, idênticas sonoridades. Foram pais e mães, vizinhos de há mais de 30 anos que ‘pegaram’ nos mesmos instrumentos e construíram então o seu episódio. Fechou-se, porém, o seu tempo porque a vida assim exigiu. Surgiram novos instrumentistas, os jovens e adolescentes, que hoje constroem o seu episódio em diversos concertos que realizam, entre os quais, a festa do novo casal. Para quem acompanhou todos estes percursos, nem é preciso que lhe tragam a pitonisa de Delfos para concluir que cada um de nós, por mais esplendorosa e especiosa que seja a sua vida, não será mais que um episódio de valor acrescentado ao incomensurável enredo do Tempo.
Como cereja em  cima do bolo, surgiu na grande festa o  gracioso - antigo, mas sempre novo -  Grupo de Folclore do Porto Santo. que remonta a 1963, altura em que à vida pastoral aliei a vivência cultural da ilha, criando no lugar de “Campo de Baixo” o dito grupo que levou aos residentes e a milhares de turistas visitantes as memórias da ilha em danças e cantares típicos da “sede territorial do capitão donatário Bartolomeu Perestrelo”. Gostei de ver e ouvir a beleza contagiante das velhas melopeias da ilha. Mas foi tanto o gosto como o ‘desgosto’, termo com que designo a nostalgia dos tempos de há mais de 50 anos. É que no elenco do Grupo não vi nenhum dos rostos tisnados do sol de há meio século. Todos já nos deixaram. Ficaram os filhos, netos e bisnetos. À mágoa de os não ver associei a gloriosa génese do agrupamento, recordando o episódio que eles e elas e eu, então, vivemos. Hoje, são estes jovens garbosos  e estas doces raparigas que escrevem o “seu” próprio episódio, acrescentando mais uma página aos centenares Anais da Ilha do Porto Santo, sabendo desde já que outros mais tarde deixarão outra página definidora de novos episódios de memória futura.
Com saudade, mas sem saudosismos inúteis, vivamos intensamente o nosso Episódio, com energia, “alma, coração e vida”. É a nossa única, irrepetível oportunidade. Mesmo que os destinatários e usufrutuários do nosso empenhamento não nos reconheçam e, em vez de aplausos, nos atirem pedras, sintamos até à medula que nunca mais voltaremos cá. Nem haverá Plano B para a concretização plena do nosso Episódio. E se nós não o fizermos, ninguém fá-lo-á por nós. Como cantam os jovens da nossa TCM e seja qual a nossa idade, soltemos todos os dias o novo e nosso grito do Ipiranga: “Esta é a Nossa Hora”!
Obrigado, Porto Santo, por esta redescoberta da nossa História pessoal e colectiva.
13-15.Set.19
Martins Júnior
             

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

“600 ANOS” NA VOZ DO POVO


                                                            

     Muito se tem afanado a Comissão Oficial para oferecer aos madeirenses – quase impondo até à exaustão – a épica proclamação dos “600 ANOS” do Achamento da Ilha. Importante seria abrir um espaço de silêncio e  prestar ouvidos  ao eco dessas comemorações junto dos madeirenses. Passaria, então, o Povo ao estatuto de emissor e a Comissão quedar-se-ia no papel de destinatário. Mais que importante ou interessante, seria intensamente enriquecedor auscultar a sensibilidade popular face à Grande Nova do seu nascimento para a História e, muito acima disso, situar a efeméride não apenas no pó dos arquivos ou nas rocambolescas e ruidosas manifestações públicas, mas transplantar para o quotidiano das gentes as mensagens que daí advêm.
         Ora, quem no último fim-de-semana subiu até ao recinto de festas da Ribeira Seca, terá fruído uma das mais gratas sensações ao ver desfilar no grande palco, precisamente, a sensibilidade do genuíno Povo Madeirense face aos “600 ANOS”,  descrevendo a fisionomia dos concelhos desta Região. Numa linguagem limpa de artifícios, ao som de melodias originais, jovens e adultos, adequadamente indumentados, exprimiram em canto e dança episódios marcantes de cada concelho.
Eis alguns tópicos mais identitários:
O primeiro, como ilustra a gravura em epígrafe, enaltece a chegada da nau henriquina, com esta legenda:
Lá vem o navio
Lá fora na barra
Traz uma bandeira
Traz uma guitarra
A canção da vida
Lá fora na barra

                                              

Apresentou-se, depois, a coreografia representativa do concelho de Santana, com esta mensagem, de vincada inspiração telúrica:

Cá nesta ilha
Tudo é regional
A espetada e o vinho e a semilha,
O Governo e o Povo em geral

Santana cidade
Jovem da Madeira
Quem cultiva a terra
É gente de primeira

Lindas maçarocas
Casinhas de palha
Palácios do Povo
Glória a quem trabalha
…………………………………………………………..
                                             

Seguiu-se-lhe  Santa Cruz, “Cidade antiga e famosa, Nossa vizinha e amiga”, com trovas dirigidas a cada uma das suas cinco freguesias, entre as quais:
Santa Cruz já tem
Imagem de marca
Juiz e juíza
Na sua comarca

Alô sr, piloto
Mais a hospedeira
Viva o aeroporto
Porta da Madeira

À nova cidade
Chamada Caniço
Olhem p’rao betão
Cuidado com isso


Somos da Camacha
Somos camacheiros
Cá para o bailinho
Somos os primeiros

Parabéns a Gaula
Gaula do Amadis
Um Povo que canta
É um Povo Feliz
…………………………………………………………..
                                           

Termino esta primeira fase da viagem pelos vários concelhos da Madeira e Porto Santo, com a evocação de Câmara de Lobos, cujos figurantes ostentavam no canto e na coreografia  as duas componentes distintivas das suas gentes: a pesca e a música.
Câmara de Lobos
De lobos do mar
Numa mão a espada
Na outra o cantar

Gente benfazeja na terra a lavrar
Gente destemida que desbrava o mar
Cabo das tormentas
Ilhéu de esperanças
Viva a Juventude
Vivam as crianças

Gente lá bem alto do Cabo Girão
E Povo que sofre colado ao chão
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         Eis algumas das mensagens que no vale da Ribeira Seca ecoaram em homenagem aos “600 ANOS”, expressões genuínas de uma faixa da sensibilidade madeirense que assim pretende demonstrar a sua interpretação de um acontecimento que se quer dinâmico e actualizado e não apenas artificioso e superficial. Assim se prova que pertencem ao Povo os “600 Anos” da sua história.

11.Set.19
Martins Júnior