domingo, 29 de setembro de 2019

“OS VAMPIROS” NA BÍBLIA


                                                     
                     
É nas manhãs de domingo que descubro a luz que irradia para a semana inteira. Ela – a luz – surge de dentro das folhas jacentes do Livro que vem de longe, das areias do Oriente. Livro, umas vezes  enigmático como a esfinge do Egipto, outras vezes assertivo e cortante como a espada de Dâmocles sobre a cabeça da humanidade.
Já na semana passada compus o debate aberto entre nós e José Saramago tentando contraditar, em parte, a tese do “nosso” Prémio Novel da Literatura quando sugere que a Bíblia é um estendal da atrocidades, as mais cruéis, desumanas, injustas e  que quem a lê perde a fé.
Não está longe da verdade histórica a afirmação de Saramago, pois a narrativa do povo judeu, que o Livro condensa, está ensopada em sangue inocente, com o aplauso do justiceiro Deus Iahveh. Mas há excepções. E demonstrei-o através de um homem corajoso, paladino do direito e da justiça social – o Profeta Amós.
Hoje, a estrada de domingo trouxe revérberos ainda mais intensos sobre esta questão. Pudesse eu reencontrar Saramago (como o fiz na sua casa da “Rua da Madeira”, em Madrid, um ano antes de morrer, a propósito do seu aniversário natalício no mesmo dia que o meu) e talvez me não reproduzisse a observação crítica que ele próprio tinha feito a um ilustre clérigo, hoje laureado na hierarquia eclesiástica: “O senhor dita dogmas, mas não responde às minhas objecções, não apresenta argumentos para contrariá-las”.
Pois, mais uma vez abro o Livro, em Amós, cap.6, 1-5) e fico atordoado com a veemência furibunda (nem as mais agressivas catilinárias de Cícero se lhe aproximam)  contra os magnatas governantes de Jerusalém, esses que vivem na opulência, sem um pingo de justiça e mágoa pelo povo que vive na miséria, arruinado de dia para dia.
Eis o que diz o Senhor omnipotente:
«Ai daqueles que vivem comodamente em Sião
e dos que se sentem tranquilos no monte da Samaria.
Deitados em leitos de marfim,
estendidos nos seus divãs,
comem os melhores cordeiros do rebanho
e os vitelos mais gordos do estábulo.
Improvisam ao som da lira
e cantam como David as suas próprias melodias.
Bebem o vinho em grandes taças
e perfumam-se com finos unguentos,
mas não os aflige a ruína do povo.
Por isso, agora partirão para o exílio à frente dos deportados
e acabará esse bando de voluptuosos».

“Grandíloquo, alto e sublimado”, cito Camões. Arrebatador!
Milénios mais tarde, viria José Afonso e chamá-los-ia “Vampiros”
 “Que vêm em bando  pela noite calada
Comem tudo e não deixam nada…
Trazem no ventre despojos antigos
Bebem o sangue fresco da manada
Mas nada os prende às vidas acabadas…
Senhores à força, mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei…
Eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada…

Quem não vê na vigorosa canção de Zeca Afonso o libelo condenatório inexoravelmente lançado pelo Profeta Amós? Mas vai mais além na sentença inapelável: “Serão deportados. É preciso acabar com esse bando de parasitas”! (Sic).
Cuidado! A Bíblia não é só um cemitério de vítimas ou um rosário de preces. É também este grito de denúncia, esta sentença arrasadora das injustiças e este combate sem tréguas às assimetrias sociais! O que faz falta é saber ler. E agir, em vez de nos ‘deleitarmos’ no charco das lamúrias pias, estéreis. A este propósito, importa reter o pensamento do Prof. Doutor Anselmo Borges, o maior intérprete em Portugal da mensagem do Papa Francisco:
“É verdade que a crise é também, e talvez sobretudo, de cultura moral e espiritual, mas não é possível avançar sem uma implicação séria e a fundo na social. Não se pode pretender fugir ao problema social invocando apenas o caminho da crise espiritual e de valores. Citando o Papa Francisco, “Nada mais alienante e falso do que a religião desencarnada”. (Francisco, Desafios à Igreja e ao Mundo, Gradiva, pág. 240).
Belo caminho, Estrada da Luz, para a semana e para a vida!

29.Set.19
Martins Júnior

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