terça-feira, 31 de janeiro de 2023

CONFISSÕES, CONFESSORES E CONFESSIONÁRIOS – ANATOMIA DO PERDÃO (1)

                                                                         


        Sou, por natureza, avesso a uma espécie de desnudamento público da própria personalidade ou de casos pessoais, género expositor de feira ‘a céu-aberto’, como agora parece ser moda, via face book e afins. Mas hoje lá vai…

         Teve Monsenhor Jardim Moreira, meu amigo e dedicado presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, a amabilidade de telefonar-me, a partir do Porto, dando-me notícia de uma afirmação da conhecida historiadora Raquel Varela, no programa televisivo, de vasta e comprovada audiência, denominado “O Último Apaga a Luz”: Há um padre na Madeira que aboliu a confissão. É o padre Martins Júnior. Razão:  porque Deus não precisa de intermediários”.

         Aceito a eventual surpresa (e, para outros, talvez um inusitado sobressalto) que tenha causado a afirmação produzida, a qual corresponde à verdade, no seu enunciado principal, embora careça de um segundo tempo quanto à sua causalidade, como tentarei esclarecer nas parcas linhas de um blog. Para melhor facilidade didáctica, recorro ao ordenamento numérico das matérias em causa:

Primeiro: Não tenho nada que abolir ou deixar de abolir em questões de índole confessional que, embora negacionistas em relação ao texto bíblico, tornaram-se dogma imposto pelos dicastérios da Igreja Romano-Vaticana. Apenas o que me apraz dizer é que eu, padre católico ordenado há 60 anos, deixei de ouvir  confissões há mais de 50 anos, no litúrgico módulo de ‘confissão auricular’. Cheguei a esta conclusão após muita reflexão, apoiado na informação do LIVRO: Evangelho, Actos e Cartas Apostólicas. E, por imperativo de consciência, é assim que tenho transmitido a mensagem à comunidade.

Segundo: Na concepção eclesiástica, o padre-juiz delegado, vulgo dicto, confessor, representa Deus-Juiz Supremo. O pecado situa-se na relação pecador (agressor, ladrão) -  e Deus agredido (ofendido, roubado). Ora, em estrito rigor semântico, personalista, a Deus ninguém ofende, ninguém lhe toca, ninguém lhe rouba. Se a um simples mortal é permitido dizer ‘Não me ofende quem quer’, quanto mais poderá dizer o Deus Soberano, Todo Poderoso, Inacessível à nossa humana fragilidade?!... Portanto, provado que ninguém ofende o Juiz-Supremo, Este nada tem a perdoar, absolver ou condenar. E se não tem o Juiz-Supremo, menos terá o juiz-delegado.

   Terceiro: Mas há agressões, há ofensas, há roubos e, daí, há agressores, ladrões, em consequência há os agredidos, os lesados, as vítimas. E quem são estas? Nem será necessária demonstração: são seres humanos, familiares, vizinhos, colegas, amigos e inimigos. Têm nome, casa, família. Nestes termos, quem tem o poder de perdoar? E o agressor: a quem tem de pedir perdão? Não há argumentação lógica contra a evidência: o perdão é um acto (relação, contrato) bilateral entre agressor e agredido. Por isso, os terceiros não fazem parte deste contrato relacional. O perdão digno desse nome só acontece entre o pedido - ressarcimento do criminoso e a sua vítima.

Quarto: A nossa imaginação ilusionista, mais cruamente, a nossa cobardia metódica para branquear a culpa levou-nos a substituir os vocábulos  crime, erro, ofensa, roubo –  a realidade – por um único sntagma redondo, uma ficção: pecado. Não é inocente nem ingénua esta dupla e ardilosa conceptualização. É que o erro-crime-roubo têm um complemento directo, sensível, concreto e, por isso, exige reparação-acção directa, concreta, com nome e endereço sensíveis., plenamente identificados. Ao contrário, a noção de pecado projecta-nos para o Além, para a estratosfera, tipo nefelibata suspenso, em busca de um Ser Inacessível que nunca vimos nem conhecemos e a quem queremos ardentemente pedir perdão. Ah, se pudéssemos ouvir a ‘sentença’ desse Juiz-Supremo, seria bem clara e potente: “Mas isso não é comigo, enganaste-te no destinatário. Volta para trás, porque o teu único juiz-perdoador está lá em baixo, está mesmo perto de ti”.

Quinto: À luz da razão, nunca haverá perdão enquanto os dois polos – agressor e agredido – não se encontrarem face-a-face. E aí, mediante o pedido prévio do agressor, esteja o lesado pronto a dar-lhe o abraço da concórdia. Ninguém mais pode arrogar-se o direito de procuração nem para formular o petição nem para deferir o pedido. O confessor é, portanto,  um intruso neste processo. Ensinar e sacralizar o contrário, à luz da mais elementar  casuística processual,  é uma declarada escola para a irresponsabilidade mais estrénua, um resvalar para o pântano da cobardia institucional. Nunca se aceitará que o assaltante João espere o perdão de António pelo roubo que fez a José!

Se é tão evidente e límpida a lógica dos homens, quem se atreve a tornar opaca e baça a lógica de Deus?... Por outras palavras, é ainda mais exigente e claro o código deontológico que nos deixou o Mestre da Galileia.

Vê-lo-emos amanhã.

 

31. Jan.23

Martins Júnior

    

domingo, 29 de janeiro de 2023

A FRAQUEZA QUE VENCE A FORÇA!

                                                                              


Não é uma bomba, bem ao contrário. Mas tem o efeito de uma alterosa mutação climática, semelhável a um abalo sísmico que fará ruir o mundo velho e dele emergir um mundo novo, Refiro-me aos textos que nos são oferecidos neste fim de semana, através do LIVRO, uma práxis a que hoje pretendo regressar.

         O que está em jogo, desde os fundos da história, é o confronto entre o aparente e o real, entre a autenticidade dos valores e a sua deformação empolada pela razão da força, contrariamente à força da razão. De um lado – e é esse o império que domina o nosso mundo, o mundo velho – está o poder, que toma a couraça da força bruta, do armamento, a capacidade de esmagar o mais fraco, associando-se-lhe a potência do dinheiro, a opulência do ter, instrumento da venalidade, da escravatura, a todos os níveis. Friso: o mundo velho, fermento e pântano da espectacularidade vazia, enfim, a lei do mais forte, a lei da selva. Do outro lado, o esforço redobrado que produz o talento, a eficiência, o verdadeiro ouro social, extraído das raízes do silêncio, fabricado na oficina da adversidade, quase da impotência total! É o mundo novo que a geração dos fracos, filhos de um povo ignorado, ostracizado, persistentemente vai construindo. Até chegar a vitória dos escravos sobre os senhorios do poder! A história não desmente, antes confirma-o à saciedade.  

         Mais expressivo e garantido que tudo o que escrevo é ler Sofonias, Paulo de Tarso e Mateus.

         Em síntese: Deixarei ficar entre vós apenas um povo modesto e humilde… que não voltará a praticar injustiças nem proferir mentiras e, por isso, achará alimento e paz (Sofonias,2, 3, 3-11).  Entre vós, não há muitos sábios, segundo o mundo; não há poderosos, influentes ou bem-nascidos. Mas Deus escolheu o que é louco, aos olhos do mundo, para confundir os sábios; escolheu o que é fraco para vencer o forte e o que é desprezível e nada vale para reduzir a nada o que vale. (I Coríntios, 26-31). Bem-aventurados, felizes os pobres em espírito… os humildes… os que sofrem por amor da justiça,.. os pacíficos…(Mateus, 5, 1-12).

         Hoje é o elogio dos mais fracos, mas produtivos: dos mais marginalizados, mas trabalhadores eficientes; dos pequeninos .- os pequeninos que hoje subiram à tribuna para fazer a leitura dos textos a toda a assembleia presente..

         Hoje, o dia de fazer uma retrospectiva sobre o passado de um Povo que foi abandonado e até proscrito, vilipendiado durante décadas (e séculos anteriores) pelos senhorios e, mais recentemente) pelos poderosos da governação política e religiosa - o Povo da Ribeira Seca - um Povo fraco, pobre, humilde. Mas foi este Povo que venceu a prepotência de generais e brigadeiros, governantes, comandantes da polícia, bispos (Santana, Teodoro, Carrilho) todos os que, a ferro e fogo, com água benta e imagens, pretenderam dominar ou fechar a modesta igreja, a mesma que se apresenta actualmente limpa, saudável, convidativa, reflexiva, física e espiritualmente operacional.    Mais importante, porém, não é o acervo material chamado igreja. O mais importante e decisivo é a escala de valores – os valores humanos e cristãos, o único ADN que distingue os construtores de um mundo novo. Sendo o Dia dos Fracos, o Elogio dos Pequeninos, é também a hora de inscrever no topo dos valores essenciais o pensamento de Teilhard de Chardin:

Somente o amor é capaz de unir os seres vivos de modo a completá-los e a preenchê-los, pois apenas ele os toma e os une pelo que há de mais profundo em si mesmos.

 

29.Jan.23

Martins Júnior

        

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

«PORTUGAL-MADEIRA-CLUBE»:UMA SAUDAÇÃO DE 37 ANOS!

                                                                         


Ainda bem que , lá de bem longe, desde a baía de Sidney, ergueu-se a bandeira da portugalidade entrelaçada à nossa insularidade na festividade anual organizada pelo Portugal-Madeira Club.  Sublinho “Ainda bem”, pois permite-me sair deste poço da morte em que nunca cessam os fogos cruzados de toda a espécie, desde os palcos da guerra até aos altares-de-palco.

         “Ainda bem”, repito agora, alto e bom som, porque a notícia fez-me reviver o último sábado de Janeiro/1986 . já lá vão 37 anos! Foi um deslumbramento puro e singelo, porque nativo, digno de uma ’Aguarela’ de Cesário Verde. Após alguns dias de ensaio na garagem do Why not /alcunha do Manuel Freitas) a romagem saiu à rua, numa das avenidas de Marrickville, rumo ao larguíssimo recinto da festa.   

         Quando digo “romagem”, refiro-me exactamente ao figurino popular das nossas romarias em Machico e, genericamente, na Madeira, em que o povo e a terra são os protagonistas da festa, autores e actores, músicos, dançarinos e bailarinas. Assim aconteceu em Sidney/1986: a nossa trupe de madeirenses, na grande maioria, de Machico, fazia parar os transeuntes e as viaturas, curiosos por ver aquelas cores garridas, ondulando na avenida. Eram jovens, eram adultos e até idosos, mas sobretudo as adolescentes e as crianças saltitavam em volteios graciosos, ao ritmo das vozes, dos tambores e das violas, com o acordeão a acompanhar o brilho do sol daquela manhã de Janeiro. Na altura, ocorreu-me o cenário descrito na Banda de Chico Buarco de Holanda,   enquanto a nossa trupe ia soltando desinibida e feliz: Chegou a nossa festa, chegou o nosso dia, a gente da Madeira, saiu em romaria.

         Entrando no Quartel, começou o “concerto” em pleno palco artisticamente decorado à moda regional. Mas… o que era o Quartel?... Era um enorme espaço de estádio de futebol, desactivado, mas aberto a todas as etnias radicadas em Sidney. Cada comunidade estrangeira (e eram muitas e diversificadas) gregas, italianas, britânicas, timorenses, etc., tinham o direito de usar o mesmo recinto em datas previamente requisitadas, numa harmonia perfeita – um outro ‘concerto multicultural e plurirracial’’. A este propósito, impressionou-me vivamente o facto de, no elenco ministerial, estar consagrado um Departamento Anti-Descrimination, para obviar aos conflitos raciais, caso surgissem queixas fundamentadas.

         Voltando ao chamado Quartel, após a exibição do grupo madeirense e dos restantes artistas, sucederam-se os discursos oficiais (nesse ano, não estiveram as habituais figuras de proa da política regional, apenas usou da palavra o representante, aí residente, da comunidade madeirense) seguindo-se o típico arraial muito nosso, com todos os petiscos e adereços, sendo o principal e mais amistoso o convívio fraterno entre filhos da mesma pátria e irmãos da mesma Ilha.

Permitam-me uma revelação, a um tempo pitoresca e muito séria também. No final da Festa, já noite, fiquei a olhar, surpreendido, dois homens corpulentos, quase gigantes, uniformizados a preceito de farda e calção tipo-escuteiro, colocados um de cada lado no portão de saída: eram dois elementos da Polícia Rodoviária, ali notoriamente posicionados, sorridentes, mas lendo-se no seu semblante um aviso prévio: “Se bebeu, não conduza”.  Foi então que também notei que, na sua maioria, as viaturas eram conduzidas por mulheres (esposa ou filha do respectivo titular) como quem entendeu a mensagem preventiva dos ‘simpáticos’ homens fardados.

Volvidos 37 anos sobre o honroso e prestimoso convite feito pelos emigrantes machiquenses radicados na Austrália, aproveito para saudar o Dia de Portugal Madeira Club, (actualmente festejado em sede própria) e desejar os melhores sucessos aos seus corpos gerentes, aos seus associados e a todos os madeirenses que vivem nessa mítica e inspiradora Mega-Ilha. Um abraço de gratidão a esses meus conterrâneos que me dispensaram o melhor que se pode oferecer a um visitante: o José Manuel Gois, o Miranda, os Irmãos Teixeira, o Salvador e respetivas famílias, uma saudade inesquecível ao super-Peter Freitas, Representante das Comunidades Portuguesas, que já nos deixou.

Não posso deixar passar este momento de fruição histórico-cultural sem sentir sob os meus pés o agridoce do ‘chão’ da Ponte de Sidney que atravessei com o alvoroço de quem descobre um mundo novo e se sente embalado nas ogivas aladas do edifício da Ópera, águia gigante serenamente pousada na baia azul.

 

27.Jan.23

Martins Júnior          

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

“NÃO SOU NADA… NÃO POSSO QUERER SER NADA… À PARTE ISSO, TENHO TODOS OS SONHOS”…

                                                                                      


Puxei Fernando Pessoa, em Álvaro de Campos – talvez atrevidamente – para dizer que hoje sou ortodoxo, sou romano, sou anglicano, sou presbiteriano, sou evangélico, I am Mormon, Je suis  , Ich lutheran… Mas não chega, porque se sou ortodoxo, tenho de subdividir-me em russo ou ucraniano (russo, do lado do Patriarca Kirilos e colado à guerra de Putin, ou ucraniano, contra essa guerra). E se sou anglicano, estarei ainda ao lado de Henrique VIII ou tão-só fiel ao culto de  Westminster?... Como estamos no mesmo teatro de guerrilha camuflada, podemos alargar os papéis e afirmar sem pejo que hoje sou judaico, israelita ou sefardita,  sou muçulmano e retalho-me entre sunita, xiita e afins.

Em suma, sou de todos os credos e não quero ser nada, não quero saber nada dessas religiões institucionalizadas. Imagino que o nosso genial poeta também meteria neste mesmo saco, o dos sonhos possíveis, o universo religioso, mas ao mesmo tempo repudiava-os a todos.

Falta saber o porquê deste abstruso arrazoado, a meio da semana, É porque hoje, 25 de Janeiro, as confissões cristãs encerraram uma semana de reflexões sobre o divisionismo que há milhares de anos mina e definha os alicerces do grande edifício unitário conhecido por Cristianismo. É sintomático o facto de ter sido um pastor protestante, Paul Wattson (ramo da Igreja Episcopal) que, lá desde as Américas,  incomodado e angustiado pelo triste espectáculo de tantas igrejas e seitas cristãs, todas de costas voltadas, propôs ao Papa de Roma um tempo histórico de oração para sarar e fazer cicatrizar esta chaga escandalosa, aberta no coração do seu Fundador, Jesus de Nazaré.

Sucederam-se reuniões, colóquios, acordos, abraços e formulários de orações fraternas, enfim, repetidas campanhas ecuménicas, não só entre as confissões cristãs, do Ocidente ao Oriente, mas entre o Líder Supremo da Igreja Romana e os congéneres do Judaísmo e do próprio Islão. Entretanto, os resultados são de pura cosmética exibicionista, ficando cada qual entrincheirado no seu ideário classista e nos seus padrões dogmático-litúrgicos.

Ressalva-se o princípio proclamado pelo eminente teólogo do Vaticano II, Hans Kung: “Sem paz entre as religiões, nunca haverá paz entre as nações”. Valha-nos isso, ao menos: uma aparente coexistência pacífica nas sés catedrais dos diversos credos. Quanto ao mais, quando chega a hora da verdade, os hierarcas de todas as religiões não hesitam em colar-se ao poder político para fazer valer o seu próprio Poder, o seu Império. Aí temos o já citado Patriarca Ortodoxo Kirilos, tal como já tivemos nós na Igreja Católica Portuguesa aquando da guerra colonial. Assim aconteceu também com a Igreja Galicana, em França e com a Igreja Luterana, sob o proteccionismo dos príncipes germânicos.

A este propósito, cito Tomás Halig:  “A evangelização de ‘novos mundos’ (as culturas não europeias) andou muitas vezes de mãos dadas com a sua colonização por exploradores e conquistadores europeus. O zelo e a dedicação dos missionários, comprometidos até ao martírio, não foram a única face da expansão europeia. O seu lado sombrio era a ganância e a violência saqueadora os conquistadores – o seu poder e interesses comerciais, os seus ideais políticos”.

Hoje como ontem, a matriz pragmática das religiões não consegue varrer-se impunemente para debaixo dos tapetes vermelhos que ornamentam as mais seráficas basílicas, mesquitas e sinagogas. Hoje pisam os mesmos trilhos de outrora: poder, império, ostentação, encenação premeditada. Lamento, nesta hora, ver o Papa Francisco – o Grande Paladino da Reconversão ao Evangelho – vê-lo agora envolvido nesta paranoia publicitária das JMJ (não confundam com as minhas iniciais, ah ah…) em pretender rebentar as escalas do proselitismo expansionista e do exibicionismo teatral, aliciando milhões de jovens, sob a mantra de católicos, mas afinal extensivas, as Jornadas, a todos os jovens do mundo, católicos ou não, novos ou velhos.

Com as imensas facilidades hodiernas de comunicar e tomar conhecimento da genuína mensagem evangélica, conducente ao culto da verdadeira espiritualidade,  é uma evidência constatar que as religiões institucionalizadas não conseguem concitar a nossa vocação inata para o Espírito, antes assemelham-se a vulgares agências de ‘markting’ religioso, associado à contabilidade nacional, como se de uma mega-multinacional se tratasse.

Daí, o meu cepticismo inultrapassável perante o hipermercado dessas religiões. Forçoso é voltar às ‘igrejas domésticas’ e aos valores humano-cristãos do Nazareno. O resto, citando o nosso Épico, são “nomes com que se o povo néscio engana”.

 

25.Jan.23

Martins Júnior

     

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

“23 EM 23” – A CÚPULA

                                                                              


Dos doze “23 em 23” que ocorrerão neste ano que começa, este é o primeiro. E é do cimo desta cúpula que vou avistar e descrever a paisagem que me deixou parado e absorto no último blog, justamente o epílogo de uma saga de 600 anos de Natais e de História da Ribeira Seca.

         Após um estendal polícromo, em que tudo aconteceu - desde o grau infra-zero das condições mínimas de habitabilidade (sem água, sem luz, sem estradas nem assistência médica) até às hostilidades perpetradas pelo poder político regional e pela diocese, em estreito conluio contra uma população rural e indefesa – chegaram, enfim, os alvores de uma nova era de respiração social e de uma autonomia local, no sentido mais genuíno deste conceito. Foram dois os momentos altos que, muito em síntese, passo a descrever.

         O CARRILHÃO DA TORRE E A REQUALIFICAÇÃO DO TEMPLO – 1999

         Volvidos 40 anos sobre o templo-sede, construído a pulso pela população residente, confrontámo-nos com a necessidade de reformular o edifício primitivo, tanto na capacidade como na estética e na logística essencial, tornando-o um espaço mais amplo, saudável, onde a luz totalmente indirecta convida à introspecção e à oração, facilitadas pela extrema sobriedade de motivos decorativos (a igreja não é um museu de pintura ou escultura), privilegiando-se a efígie do ‘Grande’ Padre Mário Tavares Figueira,  inesquecível colaborador, enquanto viveu, do Povo de Deus da Ribeira Seca.

             Mas o grande monumento que o Povo ergueu foi o novo torreão, onde se instalou o carrilhão e o relógio. Instrumentos singelos, comuns a todos os templos, portanto, sem direito a referências-extra, se outros poderes não lhes tivessem movido guerra - uma guerra abjecta, se considerarmos a sua origem. Porque foi do Prelado da diocese que tudo partiu, o mesmo bispo que ‘co-mandou’ o assalto da PSP ao templo em 1985. Em poucas palavras: fez-se o contrato verbal com a maior empresa portuguesa da especialidade, sediada em Braga. Durante seis meses, nenhuma resposta tivemos às mensagens, telefonemas, cartas, enviadas à empresa, após o que nos deslocámos pessoalmente a Braga e aí ouvimos a justificação: “O Senhor Bispo proibiu-nos de montar o carrilhão na torre da Ribeira Seca. E se o fizéssemos, rescindiria todos os contratos já feitos com outras igrejas da Madeira”. Voltámo-nos para outra empresa, em Avintes, região do Grande Porto,  em articulação com um outro industrial de Barcelos. Esquecendo os muitos percalços, despesas e constrangimentos inenarráveis, o torreão recebeu garbosamente o respectivo carrilhão que até hoje tem enchido de canções festivas todo o nosso vale. Enquanto os sinos repicavam os alleluias pascais, o Povo cantava o refrão que ficou  gravado em CD:

                                      Não se deve nada ao bispo

                                      E ao governo nem pensar

                                      Dizemos a todo o mundo

                                      Esta é uma Igreja Popular    

           

         NEM JULGAMENTO NEM AMNISTIA – UMA FICÇÃO NEM JURÍDICA NEM CANÓNICA – 2019

         Finis coronat opus – é o que se pode modestamente dizer da última efeméride inscrita em pedra roliça da Ilha no ‘Chão Sagrado’ do logradouro público da Ribeira Seca. Traduzindo – O fim coroa a Obra – afirma-se a revogação pura e simples de um processo sem o mínimo da tramitação jurídica e do princípio geral do Direito (o direito ao contraditório). Justifica-se, portanto, este acontecimento como a joia final de todo um percurso representado pelas mãos de jovens e adultos no palco aberto da sua terra.

         Por tratar-se de um verdadeiro study case, tanto a nível da Justiça como da Teologia-Religião, ficarão aqui apenas ligeiros traços cronológicos de uma tragicomédia eclesiástica que merecerá, por certo, um debruçamento mais aprofundado dos analistas jurídico-canónicos.

         Tudo começou em 1974, quando o Prelado diocesano de então retirou ao pároco (subscritor destas linhas) a jurisdição da igreja da Ribeira Seca sem justificação minimamente atendível e com a qual a população não concordou. Daí em diante, nem esse bispo nem nenhum outro visitaram aquela paróquia, nem para administrar o Crisma. Em 1977, o mesmo titular da diocese decide suspender a divinis o referido pároco em cerimónia pública realizada na matriz de Machico. A opinião publicada martelou repetidamente o cérebro dos madeirenses, permeando a notícia que o visado exercia funções políticas, mas está sobejamente provado que nem era deputado nem presidente de Câmara. Foi, isso sim, uma decisão unilateral, estritamente política, por parte do Prelado, aliado indisfarçável do governo regional.

Os seus sucessores mantiveram o mesmo libelo acusatório, sabendo que não havia qualquer fundamento jurídico-canónico, tendo até sofrido um notório desaire aquando da acção intentada no tribunal judicial de Santa Cruz, Madeira.

Chegou, alfim, o ano de 2019, altura em que o novo Prelado, revogou todo um passado, iter horribilis, restituindo a paz não só ao Povo da Ribeira Seca, mas a toda a população madeirense inconformada com uma mancha que faltava reparar, um atentado contra uma parcela do Povo de Deus sem outro crime senão o de manter a sua Fé viva no Evangelho, juntamente com o seu pastor e companheiro de viagem, o qual nunca abandonou a gente firme e solidária.

Assim, de forma simples, descritiva e modesta, para memória futura, encerro a trajectória de 600 anos compendiados nos motivos natalícios (já retirados) do palco aberto da Ribeira Seca, mas engastados para sempre nas lajes do adro e nos calhaus roliços, de uma brancura que nos toca, onde sobressai a canção de 1985:

                   Este chão é um Chão Sagrado

                   Onde cantámos Vitória      

        

         23.Jan.23

         Martins Júnior

        

sábado, 21 de janeiro de 2023

                                                                   


Para quem não conhece as nossas tradições, eu abro as folhas já puídas do Natal e Ano Novo do leste da Ilha - puídas as folhas, mas não a alma delas – pois que em Santa Cruz, da Madeira, a ‘Festa’ termina em 15 de Janeiro, Dia do Santo Amaro, Orago da Freguesia e, coincidentemente, Dia Oficial do Município.

Mas a criatividade dos ilhéus puxados para o extremo oriental da Pérola do Atlântico não tem limites e ‘decretou’ que o epílogo dos acordes natalícios teria de coincidir com o Dia de São Sebastião, Padroeiro da Vila do Caniçal, 20 de Janeiro, estendendo-se por todo o fim-de-semana, sábado,21 e domingo, 22.

E cá estamos nós, vizinhos do Caniçal, acompanhando o rufar dos tambores, o saltitar dos chocalhos e o agitar das vassouras para varrer os armários . E não só. Sobretudo para coroar o pequeno monumento do PRESÉPIO PÚBLICO com as joias de um percurso de 600 anos habitados pela população da Ribeira Seca e já sucintamente narrados em blogs anteriores.

O CARRILHÃO DA NOSSA TORRE – “SINO CORAÇÃO DA ALDEIA, CORAÇÃO SINO DA GENTE” – 1999

 

CASTIGO SEM CRIME E ABSOLVIÇÃO SEM PROCESSO – UM PASSEIO FORÇADO DE 42 ANOS, SUSPENSO ENTRE AS GALÁXIAS DO ESPANTO,  DA DESCRENÇA E DA MADUREZA NA FÉ – de 1977 A 2019

Joias da coroa – assim qualifiquei os dois acontecimentos que estão gravados no adro em genuínos calhaus brancos da Ilha e reconfigurados no vértice do palco aberto da Ribeira Seca. Joias, sim, mas descartadas da grande informação regional. Joias, sim e preciosas, coladas ao coração das gentes que sofreram, lutaram, condenadas a engolir monstros sacro-satânicos da religião e da política! Alegrias íntimas, quase silenciosas para os viventes e saudades longas para aqueles que levaram até à sepultura os soluços sentidos e maiores que eles as esperanças numa vitória que não chegaram a ver os olhos do corpo, mas deixaram-nas como herança aos descendentes vindouros!

Perdoe-me quem me lê até este instante. Mas o teclado escapa-se-me dos dedos ao tentar dizer e identificar o brilho dos factos que quero contar. E paro, absorto, como quem ‘puxou para trás’ um filme já vivido, mas nunca visto até ao dia de hoje.

 Ocorre-me um pensamento da juventude, atribuído a Lacordaire, o eloquente  orador do púlpito de Notre Dâme de Paris: “Uma dor, quando é grande, dá-nos para gritar. Mas quando é muito grande, quando ela é enorme, dá-nos para silenciar”. Pois bem, o vocábulo ‘dor’ (ou desgosto) neste momento substituo-o pelo seu antónimo ‘prazer’ (gosto. alegria, conforto) – quando ele é grande apetece-nos cantar aos quatro ventos.  Mas quando é enorme, dá-nos para calar e sentir”.´

Hoje, parei, porque estou neste segundo tempo emocional. Amanhã, retomarei o contexto. Porque faz parte de uma pequena-grande história, a nossa. E também porque me entra na alma “e fica em mim presa” a voz centenária de Eugénio de Andrade:

 

“É urgente

Descobrir rosas e rios

E manhãs claras…”   


 21.Jan.23

Martins Júnior

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

MEMÓRIAS DE OUTROS NATAIS…

                                                                               


A gestação dos anos e dos dias – décadas e séculos de um corpo gregário em constante progressão – vacila inevitavelmente entre a promessa auroreal de algo que está para nascer e as dores de um parto nem sempre bem sucedido ou muitas vezes indesejado.

Foram assim os Natais que a história registou no arquivo de memórias da Ribeira Seca e ficaram gravados no chão empedrado do logradouro público da localidade, com a transposição cénica no palco aberto. A par dos tempos confortáveis já descritos anteriormente, hoje fica aqui monitorizado o duplo atentado à paz social e à alegria natalícia de uma população periférica.

O MENINO PRISIONEIRO EM SUA PRÓPRIA CASA: 18 DIAS E 18 NOITES – 1985 

Aconteceu na manhã brumosa de 27 de Fevereiro. Terei de contá-lo na primeira pessoa, pois os factos assim  ditaram. Após descer as escadas para celebrar a Eucaristia matinal, eram as 7 horas, uma mulher sexagenária avisa-me com voz pesarosa: “Senhor Padre, o meu filho que trabalha na venda ambulante do peixe, telefonou-me às 5 da manhã e disse que estão na vila de Machico dez carrinhas com setenta polícias para atacar a nossa igreja”. – “Então, espero aqui por eles” – respondi. – “Não, atalharam logo outros circunstantes que vinham para a missa. O Senhor Padre vá para a casa dos seus pais, lá em baixo na vila, nós tomamos conta disto”. Apesar da minha insistência em ficar, tive que obedecer à voz do grupo. E fui embora.

Depois, foi o que alvoroçou todo o Machico. Os setenta efectivos entraram na igreja, fecharam as portas a barrotes, levaram objectos de culto, missais, alfaias sacras, livros de registo de baptismos, casamentos e afins. Microfones, amplificadores, enfim, tudo o que lhes apeteceu. Subiram depois à residência paroquial e saquearam-na como quiseram. Nestas operações instantâneas foram coadjuvados pelo pároco da igreja matriz e pelo presidente da Câmara, que seguiram atentamente todo o assalto.

Continuou a repressão sobre as pessoas que protestavam contra os actos de vandalismo praticados diante dos seus olhos,, algumas foram arrastadas para os carros da polícia, depois levadas ao tribunal de Santa Cruz para julgamento sumário, mas o juiz recusou-se e relegou o caso para processo comum. Para a decisão terá contado o abuso do governo regional e da diocese em mandar a PSP violar igreja e residência sem mandado judicial.  

A ocupação durou 18 dias e 18 noites, sem que os paroquianos pudessem entrar na sua igreja, nem sequer lhes era permitido atravessar o adro, como seu costume diário, a caminho de casa. Cantavam, de longe, canções de reivindicação – A Igreja é do Povo/ O Povo é de Deus – e consta que até serviam café e cacau aos polícias em serviço durante aquelas noites frias de inverno. Ao fim desse período, o contingente da PSP destacado na Ribeira Seca abandonou ‘misteriosamente’ a igreja e o adro, deixando o Povo definitivamente em paz.

Para a história ficou o “Menino preso em sua própria casa”. Ficou ainda a memória viva de que “O Povo perdoa, mas não esquece”- 

                                                           


UMA MÃE QUE UM BISPO NÃO DEIXOU VISITAR O MENINO, SEU PRÓPRIO FILHO  - 2010

Como se não bastasse o malfadado legado de 1985, a história da Ribeira Seca teve que suportar um outro atentado à sua igreja, à sua Padroeira (a Senhora do Amparo) e à sua crença. Foi em 8 de Maio de 2010. Para a sua narrativa, pouparei as palavras, porque serão todas envergonhadas se aplicadas ao gesto único na história da Ilha, só comparável às sacrílegas sentenças do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição.

A Imagem Peregrina de Fátima visitou, com pompa e circunstância, todas as paróquias da Madeira. Não obstante os preparativos realizados para a condigna entrada no adro e igreja da Ribeira Seca, o Prelado da Diocese decidiu proibir que tal acontecesse e preferiu levar a dita Imagem para o campo de recreio da escola da localidade.

No entanto, o mais ofensivo e perturbador foi ver a Imagem passar na estrada contígua ao adro e ficar ali, estacada, diante de milhares de crentes (até oriundos de outras freguesias) que enchiam literalmente o recinto paroquial. Passados 15 minutos de diálogo com os eclesiásticos oficiais que acompanhavam o séquito, e apesar do pedido insistente da multidão, a Imagem, notoriamente escoltada por um forte dispositivo policial, fez meia-volta e foi embora, deixando a descrença e a indignação em quantos ali estavam. Indignação e descrença não contra a Imagem Peregrina (que foi impedida de entrar na casa do Filho) mas contra os seus indignos decisores.

Por mais doloroso e decepcionante para a história dos nossos Natais, não podemos ignorá-lo nem subvertê-lo, Com este e outros cabos-de-tormenta, vividos com resiliência e fé maior, ganhámos a esperança de renascer para a alvorada de um Mundo Melhor.

É o que encontraremos na próxima e última estação desta caminhada.

 

19.Jan-23

Martins Júnior       

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

O MAIS LINDO CRAVO EM TERRA SECA !

                                                                           


 

         Árida e dura era a terra de colonia, os montes embora verdes chamavam-lhes tristes e a ribeira a que nunca faltou água corrente disseram que era seca.

Séculos cinco, quase seis! Mas dentro dela, a terra seca, corria a alma de um Povo que, em vez de água, tinha nas veias sangue de pais e avós, sedentos de ver a alvorada em que na fímbria dos montes e no chão do vale braçados de cravos, orquídeas, estrelícias brilhariam viçosos como prenúncio de um mundo novo, de uma terra fértil, libertada.

Essa manhã chegou, enfim, em Abril de 1974. E cumpriram-se então os vaticínios latentes nas pregas da história destas gentes. Se enorme e dura foi a escravidão da colonia, maior e eufórica abriu-se a vitória dos ‘humilhados e ofendidos’ sobre o regime que os torturou durante séculos.

A Ribeira, antes Seca, tornou-se maré cheia de esperanças e certezas. A começar pela abolição da colonia. Embora tal acontecesse de jure, a partir de 1977, a verdade é que o poderio dos senhorios morreu de facto logo na madrugada de 25 de Abril de 74, com a decisão unânime dos ‘caseiros’ em melhorar as casas de colmo onde habitavam famílias inteiras sem as mínimas condições de salubridade. O verde da paisagem revivesceu com as cores brancas e os telhados vermelhos das novas habitações. Os velhos camponeses recuperaram instintivamente  o sentido originário da Lei das Sesmarias, enriquecendo-a com a tonalidade inspirada na sua Fé: A terra é de Deus e o fruto é de quem a trabalha!

     Não ficou por aí a libertação do campesinato, não só em Machico, mas em todas as zonas rurais da Ilha. Viu-se notoriamente a intervenção popular nas instituições musculadas do chamado ‘Estado Novo’, nomeadamente nos titulares dos cargos municipais, posteriormente saneados pelas novos centros de decisão regionais. As reivindicações sociais, sobretudo a nível de justiça laboral e distributiva, foram decisivas no pagamento justo da cana sacarina e da banana, até então entregues aos industriais do sector, sem a menor vigilância dos produtores, que recebiam o quanto e o quando lhes queriam dar.

A própria Igreja foi posta em questão, visto que a autoridade diocesana tomou partido, ostensivamente, pelos inimigos do novo regime, que teimavam em restaurar as forças totalitárias apeadas na manhã de 25 de Abril. Já se pode tomar um fôlego! – exclamava um velho aldeão, estivador reformado, abrindo os braços e a voz, sem medo,  diante da multidão.

Foi neste berço iluminado e liberto que a Ribeira Seca viveu o seu Natal – a Festa - como nunca antes tinha vivido. Os cravos vermelhos encheram o Presépio. E nas mãos do Menino apareceu o Cravo Maior que arrastou consigo todos os crentes, cantando as loas tradicionais ao ‘Infante de Belém’, os versos e os acordes de pais e avós, mas com um sublinhado especial adequado ao momento:

EM TERRA SECA,

NASCE O MAIS LINDO CRAVO DO MUNDO!

 Por essa razão, de luz inapagável, o adro do templo feito pelo Povo registou em pedra viva e para memória futura a gloriosa bandeira de 1974, transplantando-a para o Grande Presépio 2022/2023 no palco aberto da Ribeira Seca.

                                                               (Continua)   

17.Jan.23

Martins Júnior  

domingo, 15 de janeiro de 2023

O MENINO E O POVO À PROCURA DE CASA SUA

                                                                          


    Enquanto ainda passam as últimas vassouradas nos armários da ‘Festa’, resta-nos um tempo de contemplação sobre o díptico plasmado no  palco aberto da Ribeira Seca: a História de seiscentos anos e a sua transposição para o cenário tradicional intemporal denominado Presépio. Já percorremos os dois primeiros períodos, desde o início do povoamento até 1692 e desde esta data até 1960/1963.

         O MENINO E O POVO EM SUA PRÓPRIA CASA

         Foi de uma autêntica revolução sócio-cultural o período subsequente aos quase trezentos anos de vigência da  Capela do Amparo (1692) como centro local de culto religioso. Tudo se alterou, a partir de 24 de Novembro de 1960, quando o Bispo D. David de Sousa, titular da diocese, promulgou o histórico decreto do desmembramento das paróquias tradicionais em todo o arquipélago, dando origem a novas centralidades canónicas, sociais, culturais e até económicas. A matriz de Machico,sede da única paróquia da freguesia desmembrou-se em quatro: Vila, Piquinho ou Caramanchão, Ribeira Seca e Ribeira Grande.

         Nuca será demais exaltar a iniciativa do Bispo David de Sousa. Numa época de concentração de poderes – num regime político totalitário, salazarista, extensivo à própria instituição eclesiástica – quando descentralizar era conceito e vocábulo banidos do sistema, a decisão do prelado diocesano caiu como uma bomba, tanto na orgânica paroquial como aos olhos dos administradores políticos. Pensemos que o regime salazarista nem consentia que na Madeira houvesse Juntas de Freguesia. Quanto aos párocos das grandes paróquias, ao verem-se cerceados do poder e do pecúlio que auferiam, moveram surdas oposições ao novo decreto. Mas sem sucesso.

         Não obstante todos os constrangimentos da classe, a descentralização tirou do esquecimento e quase ostracismo populações que viviam na mais rude ruralidade, perdidas nas montanhas,  e colocou-as no mapa da Ilha e da sociedade, com as consequentes exigências logísticas e sociais perante os poderes públicos. Nunca nem ninguém poderá negar à Igreja Diocesana de então a atitude pioneira, eminentemente pedagógica, do instituto da Descentralização Administrativo-Canónica, em quase seiscentos anos de história.

          Assim nasceu a Paróquia da Ribeira Seca, como Pessoa Colectiva de Sede e Direito próprios, como ficou gravado em letra e música, ainda hoje no ouvido, na boca e no coração da população local, filhos e netos.

         No entanto, o privilégio acarretou sacrifícios em todas as novas paróquias. Na Ribeira Seca também. Era preciso fazer casa própria, isto é, igreja para o Menino e para o seu Povo. Foi esta uma saga escrita em letras de oiro e páginas de suor derramado pelos residentes  que, juntamente com o pároco de então, Padre Manuel de Freitas Luís Júnior, transportavam aos ombros pedra, areias e outros materiais destinados à obra. O maior volume da mão-de-obra era fornecido gratuitamente pelos mestres e serventes da Ribeira Seca, após o seu dia de trabalho normal e nos dias feriados. A aquisição dos terrenos foi custeada pelas verbas resultantes das tradicionais ‘romagens’ populares por ocasião das festas de verão.

             Após tantos esforços, avanços e recuos, desânimos e redobrados entusiasmos, o sonho tornou-se realidade: o novo templo da Ribeira Seca abriu-se ao culto no verão de 1963. Foram três longos anos de entrega global: jovens, adultos, homens, mulheres e até crianças e idosos. A foto em epígrafe realça um aspecto parcelar da alegria da população, a caminho da sua Casa-Mãe. Modesto, embora, e mais tarde (1999) motivo de requalificação, o templo primeiro foi como que a obra-prima daquela geração de 1960/1963!

         Numa quadra de castiça inspiração popular, deixo aqui um ligeiro recorte dessa luta comum, numa canção inesquecível, na sequência de uma outra citada no blog anterior:

                            Queríamos uma igreja nossa

                            Pobre, sim, mas verdadeira

                            Carregámos tudo aos ombros

                            Da ribeira e da pedreira

         Pelo peso histórico que contêm, estas duas datas mereciam ficar sinalizadas no Livro de Pedra do adro e no Livro Aberto do Presépio, para memória futura. E aqui ficam também como partilha da história de um Povo, antes esquecido, agora lembrado.

Homenagem e Gratidão a D. David de Sousa, ao Padre Manuel de Freitas Luís Júnior e ao Grande Obreiro, o Povo da Ribeira Seca!  

        

         15.Jan.23

         Martins Júnior

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

“O MENINO NA CASA DO SENHORIO” - 1692

                                                                          


Sobrevoemos a ponte movediça da sexta-feira, dia treze – “essa fatídica sexta-feira”, como a classificava  Frei Dinis, das Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, obedecendo aos cânones do Romantismo restaurador das lendas e superstições medievais. Sobrevoando a ponte pomos pé, de novo, no pequeno vale da Ribeira Seca, onde o presépio de 2022/2023 reproduz os tempos fortes do seu historial.

         O capítulo anterior – o primeiro, O MENINO DO TINTUREIRO ENTRE OS ESCRAVOS DO AÇÚCAR -  abarcou genericamente os aspectos sociológicos, económicos e sacro-culturais da Primeira Capitania do Reino, Machico, Ribeira Seca inclusive, num período que vai desde 1419 até 1692, com maior incidência na data fundacional do “8 de Maio de 1440”, como ficou demonstrado.

         O MENINO NA CASA DO SENHORIO

         O Senhorio chamava-se Francisco Dias Franco, capitão-secretário da Câmara Municipal de Machico. O seu nome fica indelevelmente perpetuado no território da Ribeira Seca por ter sido o criador do ‘proto-monumento arquitectónico’ construído nesta localidade, a Capela de Nossa Senhora do Amparo, em 1692. Ali começou, portanto, o culto oficial, hierarquicamente reconhecido, prestado pelo clero adstrito à matriz de Machico, ao bom estilo dos morgadios sediados em toda a Ilha, como é exemplo, entre outros, o Solar de São Cristóvão, em Machico.

         Para aquilatar-se cabalmente do subtítulo-supra e das gritantes assimetrias sociais que dividiam o campesinato e a burguesia  - caseiros ou colonos e senhorios – fixemos o amplo estatuto hegemónico de Francisco Dias Franco: latifundiário, rico (construiu, também a expensas suas, em 1706, o Forte de Nossa Senhora do Amparo, na Vila de Machico) e, acima de tudo, detentor do poder, enquanto militar e executivo operacional do Município. Foi neste ‘caldo’ conjuntural que se queimou a justíssima Lei das Sesmarias (as terras eram dadas pelo Rei a quem e só enquanto as trabalhasse) e engendrou-se o “leonino contrato da colonia” que durou até 1974. O colono assumia a condição de escravo da terra, com requintes de humilhante exploração de toda a família.

         É neste berço que nasce o Menino. Na casa do Senhorio.

Na tribuna contígua ao solar da residência lá estava o explorador e seus distintos familiares, olhando sobranceiros para a turba curvada dos caseiros-servos da gleba, que no chão térreo da capela cantavam ‘Bendito, Bendito’ ao Deus Menino de olhos azuis e rezavam descalços e de joelhos agradecidos ao “senhor-amo”, com o celebrante a ajudar os pobres camponeses a beijar os pés que os espezinhavam. Gloria in excelsis!

Quem subscreve o presente testemunho é o próprio que presenciou os factos há cerca de 75 anos quando, ainda criança, era solicitado pelos celebrantes da matriz a acompanhá-los a ‘ajudar à missa’ na Capela do Amparo.

Assim foram os Natais entre 1692 e 1960/1963, data em que a população começou a construir a Casa própria para o Menino, como descreverei em próximo texto e os residentes fixaram mais tarde no  Cancioneiro da sua história:

                            Na Capela do Amparo

                            Foi lá que a paróquia abriu

                            Mas ela não era nossa

                            Pertencia ao senhorio.

 

N.B. – À margem da narrativa, mas de um certo sabor à ironia dos tempos, permitam-me informar que a capela e solar, pertença do antigo capitão-secretário Francisco Dias Franco, foram recentemente adquiridos pelo emigrante da Ribeira Seca, antigo caseiro, coincidentemente de sobrenome Franco.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”…

 

13.Jan.23

Martins Júnior