Enquanto
ainda passam as últimas vassouradas nos armários da ‘Festa’, resta-nos um tempo
de contemplação sobre o díptico plasmado no
palco aberto da Ribeira Seca: a História de seiscentos anos e a sua
transposição para o cenário tradicional intemporal denominado Presépio. Já
percorremos os dois primeiros períodos, desde o início do povoamento até 1692 e
desde esta data até 1960/1963.
O
MENINO E O POVO EM SUA PRÓPRIA CASA
Foi
de uma autêntica revolução sócio-cultural o período subsequente aos quase
trezentos anos de vigência da Capela do Amparo (1692) como centro
local de culto religioso. Tudo se alterou, a partir de 24 de Novembro de 1960,
quando o Bispo D. David de Sousa, titular da diocese, promulgou o histórico
decreto do desmembramento das paróquias tradicionais em todo o arquipélago,
dando origem a novas centralidades canónicas, sociais, culturais e até
económicas. A matriz de Machico,sede da única paróquia da freguesia
desmembrou-se em quatro: Vila, Piquinho ou Caramanchão, Ribeira Seca e Ribeira
Grande.
Nuca será demais exaltar a iniciativa
do Bispo David de Sousa. Numa época de concentração de poderes – num regime
político totalitário, salazarista, extensivo à própria instituição eclesiástica
– quando descentralizar era conceito e vocábulo banidos do sistema, a decisão
do prelado diocesano caiu como uma bomba, tanto na orgânica paroquial como aos
olhos dos administradores políticos. Pensemos que o regime salazarista nem
consentia que na Madeira houvesse Juntas de Freguesia. Quanto aos párocos das
grandes paróquias, ao verem-se cerceados do poder e do pecúlio que auferiam,
moveram surdas oposições ao novo decreto. Mas sem sucesso.
Não obstante todos os constrangimentos
da classe, a descentralização tirou do esquecimento e quase ostracismo
populações que viviam na mais rude ruralidade, perdidas nas montanhas, e colocou-as no mapa da Ilha e da sociedade,
com as consequentes exigências logísticas e sociais perante os poderes
públicos. Nunca nem ninguém poderá negar à Igreja Diocesana de então a atitude
pioneira, eminentemente pedagógica, do instituto da Descentralização
Administrativo-Canónica, em quase seiscentos anos de história.
Assim
nasceu a Paróquia da Ribeira Seca, como Pessoa Colectiva de Sede e Direito
próprios, como ficou gravado em letra e música, ainda hoje no ouvido, na boca e
no coração da população local, filhos e netos.
No entanto, o privilégio acarretou
sacrifícios em todas as novas paróquias. Na Ribeira Seca também. Era preciso
fazer casa própria, isto é, igreja para o Menino e para o seu Povo. Foi esta
uma saga escrita em letras de oiro e páginas de suor derramado pelos residentes que,
juntamente com o pároco de então, Padre Manuel de Freitas Luís Júnior,
transportavam aos ombros pedra, areias e outros materiais destinados à obra. O
maior volume da mão-de-obra era fornecido gratuitamente pelos mestres e
serventes da Ribeira Seca, após o seu dia de trabalho normal e nos dias
feriados. A aquisição dos terrenos foi custeada pelas verbas resultantes das
tradicionais ‘romagens’ populares por ocasião das festas de verão.
Após tantos esforços, avanços e recuos,
desânimos e redobrados entusiasmos, o sonho tornou-se realidade: o novo templo
da Ribeira Seca abriu-se ao culto no verão de 1963. Foram três longos anos de
entrega global: jovens, adultos, homens, mulheres e até crianças e idosos. A
foto em epígrafe realça um aspecto parcelar da alegria da população, a caminho
da sua Casa-Mãe. Modesto, embora, e mais tarde (1999) motivo de requalificação,
o templo primeiro foi como que a obra-prima daquela geração de 1960/1963!
Numa quadra de castiça inspiração
popular, deixo aqui um ligeiro recorte dessa luta comum, numa canção
inesquecível, na sequência de uma outra citada no blog anterior:
Queríamos uma igreja nossa
Pobre,
sim, mas verdadeira
Carregámos
tudo aos ombros
Da
ribeira e da pedreira
Pelo peso histórico que contêm, estas
duas datas mereciam ficar sinalizadas no Livro de Pedra do adro e no Livro
Aberto do Presépio, para memória futura. E aqui ficam também como partilha da
história de um Povo, antes esquecido, agora lembrado.
Homenagem
e Gratidão a D. David de Sousa, ao Padre Manuel de Freitas Luís Júnior e ao
Grande Obreiro, o Povo da Ribeira Seca!
15.Jan.23
Martins
Júnior
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