domingo, 15 de janeiro de 2023

O MENINO E O POVO À PROCURA DE CASA SUA

                                                                          


    Enquanto ainda passam as últimas vassouradas nos armários da ‘Festa’, resta-nos um tempo de contemplação sobre o díptico plasmado no  palco aberto da Ribeira Seca: a História de seiscentos anos e a sua transposição para o cenário tradicional intemporal denominado Presépio. Já percorremos os dois primeiros períodos, desde o início do povoamento até 1692 e desde esta data até 1960/1963.

         O MENINO E O POVO EM SUA PRÓPRIA CASA

         Foi de uma autêntica revolução sócio-cultural o período subsequente aos quase trezentos anos de vigência da  Capela do Amparo (1692) como centro local de culto religioso. Tudo se alterou, a partir de 24 de Novembro de 1960, quando o Bispo D. David de Sousa, titular da diocese, promulgou o histórico decreto do desmembramento das paróquias tradicionais em todo o arquipélago, dando origem a novas centralidades canónicas, sociais, culturais e até económicas. A matriz de Machico,sede da única paróquia da freguesia desmembrou-se em quatro: Vila, Piquinho ou Caramanchão, Ribeira Seca e Ribeira Grande.

         Nuca será demais exaltar a iniciativa do Bispo David de Sousa. Numa época de concentração de poderes – num regime político totalitário, salazarista, extensivo à própria instituição eclesiástica – quando descentralizar era conceito e vocábulo banidos do sistema, a decisão do prelado diocesano caiu como uma bomba, tanto na orgânica paroquial como aos olhos dos administradores políticos. Pensemos que o regime salazarista nem consentia que na Madeira houvesse Juntas de Freguesia. Quanto aos párocos das grandes paróquias, ao verem-se cerceados do poder e do pecúlio que auferiam, moveram surdas oposições ao novo decreto. Mas sem sucesso.

         Não obstante todos os constrangimentos da classe, a descentralização tirou do esquecimento e quase ostracismo populações que viviam na mais rude ruralidade, perdidas nas montanhas,  e colocou-as no mapa da Ilha e da sociedade, com as consequentes exigências logísticas e sociais perante os poderes públicos. Nunca nem ninguém poderá negar à Igreja Diocesana de então a atitude pioneira, eminentemente pedagógica, do instituto da Descentralização Administrativo-Canónica, em quase seiscentos anos de história.

          Assim nasceu a Paróquia da Ribeira Seca, como Pessoa Colectiva de Sede e Direito próprios, como ficou gravado em letra e música, ainda hoje no ouvido, na boca e no coração da população local, filhos e netos.

         No entanto, o privilégio acarretou sacrifícios em todas as novas paróquias. Na Ribeira Seca também. Era preciso fazer casa própria, isto é, igreja para o Menino e para o seu Povo. Foi esta uma saga escrita em letras de oiro e páginas de suor derramado pelos residentes  que, juntamente com o pároco de então, Padre Manuel de Freitas Luís Júnior, transportavam aos ombros pedra, areias e outros materiais destinados à obra. O maior volume da mão-de-obra era fornecido gratuitamente pelos mestres e serventes da Ribeira Seca, após o seu dia de trabalho normal e nos dias feriados. A aquisição dos terrenos foi custeada pelas verbas resultantes das tradicionais ‘romagens’ populares por ocasião das festas de verão.

             Após tantos esforços, avanços e recuos, desânimos e redobrados entusiasmos, o sonho tornou-se realidade: o novo templo da Ribeira Seca abriu-se ao culto no verão de 1963. Foram três longos anos de entrega global: jovens, adultos, homens, mulheres e até crianças e idosos. A foto em epígrafe realça um aspecto parcelar da alegria da população, a caminho da sua Casa-Mãe. Modesto, embora, e mais tarde (1999) motivo de requalificação, o templo primeiro foi como que a obra-prima daquela geração de 1960/1963!

         Numa quadra de castiça inspiração popular, deixo aqui um ligeiro recorte dessa luta comum, numa canção inesquecível, na sequência de uma outra citada no blog anterior:

                            Queríamos uma igreja nossa

                            Pobre, sim, mas verdadeira

                            Carregámos tudo aos ombros

                            Da ribeira e da pedreira

         Pelo peso histórico que contêm, estas duas datas mereciam ficar sinalizadas no Livro de Pedra do adro e no Livro Aberto do Presépio, para memória futura. E aqui ficam também como partilha da história de um Povo, antes esquecido, agora lembrado.

Homenagem e Gratidão a D. David de Sousa, ao Padre Manuel de Freitas Luís Júnior e ao Grande Obreiro, o Povo da Ribeira Seca!  

        

         15.Jan.23

         Martins Júnior

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