quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

O PRIMEIRO NATAL NA PRIMEIRA CAPITANIA - HARMONIAS E CONTRASTES

                                                                              


    É hoje que trago ao nosso convívio o memorial de um pequeno vale incrustado no grande vale, o maior da Ilha ~Machico, a primeira capitania da Madeira, desde 8 de Maio de 1440. O pequeno vale, marcado pela ruralidade profunda, tomou o nome de Ribeira Seca. O memorial de 600 anos de história apresenta-se plasmado na representação figurativa do presépio tradicional, implantado no palco aberto desta localidade e pretende responder a uma pergunta, talvez a mais empírica e natural: Como viveram os nossos antepassados os seus Natais?... Ou, desdobrando a mesma questão: Que Menino ‘apareceu’ renascido aos olhos que se apagaram há séculos no recôndito destas montanhas?...

         Sejam quais as respostas que a nossa criatividade retrospectiva possa congeminar, tudo se resumo ao genérico: COMO SE ELE NASCESSE AQUI !

         Por tratar-se de um ‘documento’ para memória futura, complementa-se o contexto escrito, esclarecendo que o que se configura no palco é a tradução do Livro Aberto materializado em calhau roliço, tipicamente madeirense, datado em toda a extensão do adro do templo da Ribeira Seca, como passo a descriminar.

         O MENINO DO ‘TINTUREIRO’ ENTE OS ESCRAVOS DO AÇÚCAR

         Foram os primeiros passos do povoamento da Ilha. Ribeira Seca marcou presença e tão notória que ainda hoje permanecem vivos os topónimos dessa época. Concretizando: Paulo da Noia, industrial italiano sediado na Ilha, desenvolveu o ramo da tinturaria, a partir do arbusto denominado ‘tintureiro’ e das folhas de uma espécie de leguminosa conhecida por pastel. Era uma indústria de elevado conceito artístico e comercial utilizado no ramo têxtil, de tal relevância que, por imposição do Rei D. Manuel I, o imposto da exploração era pago ao Reino, não em numerário, mas em espécie. A reminiscência desses remotos tempos ficou para sempre sinalizada na Ribeira Seca pela simbiose de três sítios contíguos, cuja nomenclatura manteve-se intacta até aos dias de hoje. Eles aí estão: Nóia, Pastel e Tintureiro.

         Consabido sobejamente é o cultivo da cana sacarina, o ouro branco, com o qual se transacionaram os famosos quadros da Arte Flamenga, entre os quais, a famosa “Adoração dos Reis Magos” da Igreja Matriz de Machico, actualmente no Museu de Arte Sacra do Funchal. Mas o doce do açúcar trazia misturado o travo amargo da negritude esclavagista. Foi a Madeira, para vergonha nossa, um dos maiores entrepostos de escravatura africana. As terras férteis de Machico, inclusive da Ribeira Seca, conheceram a humilhante presença da exploração açucareira.

         Foi esta a primeira fase do presépio a que se refere o texto em análise e, com ele, procura indagar-se como é que os frades franciscanos, pioneiros da evangelização Ilha, instrumentalizaram os primitivos crentes a celebrar o nascimento do “Menino doTintureiro entre os escravos negros do açúcar”. E como compaginavam a penúria dos então servos da gleba com o luxo, os torneios e a vida romântica do donatário da Primeira Capitania da Madeira?!

         Não obstante a ancestralidade inicial, desde 1419,  da conjuntura descrita, fixou-se a data de 8 de Maio de 1440, quando o Infante D. Henrique outorgou a Tristão Vaz Teixeira o Privilégio Régio da Primeira Capitania da Ilha, cuja efeméride motivou recentemente  a instauração cronológica do Dia do Concelho de Machico.

         Voltando ao presépio, o Menino (a sua imagem) ‘nasceu’ no bucolismo dos campos da cana sacarina, sob o tintureiro, o pastel e o folhado, ao ritmo cantante das águas descendentes das montanhas e o bafo dos animais domésticos, guardiões da rural lapinha madeirense.

                                                (Continua)

         11. Jan.23

         Martins Júnior

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