É
hoje que trago ao nosso convívio o memorial de um pequeno vale incrustado no
grande vale, o maior da Ilha ~Machico, a primeira capitania da Madeira, desde 8
de Maio de 1440. O pequeno vale, marcado pela ruralidade profunda, tomou o nome
de Ribeira Seca. O memorial de 600 anos de história apresenta-se plasmado na
representação figurativa do presépio tradicional, implantado no palco aberto
desta localidade e pretende responder a uma pergunta, talvez a mais empírica e
natural: Como viveram os nossos antepassados os seus Natais?... Ou, desdobrando
a mesma questão: Que Menino ‘apareceu’ renascido aos olhos que se apagaram há
séculos no recôndito destas montanhas?...
Sejam quais as respostas que a nossa
criatividade retrospectiva possa congeminar, tudo se resumo ao genérico: COMO
SE ELE NASCESSE AQUI !
Por tratar-se de um ‘documento’ para
memória futura, complementa-se o contexto escrito, esclarecendo que o que se
configura no palco é a tradução do Livro Aberto materializado em calhau roliço,
tipicamente madeirense, datado em toda a extensão do adro do templo da Ribeira
Seca, como passo a descriminar.
O
MENINO DO ‘TINTUREIRO’ ENTE OS ESCRAVOS DO AÇÚCAR
Foram
os primeiros passos do povoamento da Ilha. Ribeira Seca marcou presença e tão
notória que ainda hoje permanecem vivos os topónimos dessa época.
Concretizando: Paulo da Noia, industrial italiano sediado na Ilha, desenvolveu
o ramo da tinturaria, a partir do arbusto denominado ‘tintureiro’ e das folhas
de uma espécie de leguminosa conhecida por pastel. Era uma indústria de elevado
conceito artístico e comercial utilizado no ramo têxtil, de tal relevância que,
por imposição do Rei D. Manuel I, o imposto da exploração era pago ao Reino,
não em numerário, mas em espécie. A reminiscência desses remotos tempos ficou
para sempre sinalizada na Ribeira Seca pela simbiose de três sítios contíguos,
cuja nomenclatura manteve-se intacta até aos dias de hoje. Eles aí estão: Nóia,
Pastel e Tintureiro.
Consabido sobejamente é o cultivo da
cana sacarina, o ouro branco, com o qual se transacionaram os famosos quadros
da Arte Flamenga, entre os quais, a famosa “Adoração dos Reis Magos” da Igreja
Matriz de Machico, actualmente no Museu de Arte Sacra do Funchal. Mas o doce do
açúcar trazia misturado o travo amargo da negritude esclavagista. Foi a
Madeira, para vergonha nossa, um dos maiores entrepostos de escravatura
africana. As terras férteis de Machico, inclusive da Ribeira Seca, conheceram a
humilhante presença da exploração açucareira.
Foi esta a primeira fase do presépio a
que se refere o texto em análise e, com ele, procura indagar-se como é que os
frades franciscanos, pioneiros da evangelização Ilha, instrumentalizaram os
primitivos crentes a celebrar o nascimento do “Menino doTintureiro entre os
escravos negros do açúcar”. E como compaginavam a penúria dos então servos da
gleba com o luxo, os torneios e a vida romântica do donatário da Primeira
Capitania da Madeira?!
Não obstante a ancestralidade inicial,
desde 1419, da conjuntura descrita,
fixou-se a data de 8 de Maio de 1440, quando o Infante D. Henrique outorgou a
Tristão Vaz Teixeira o Privilégio Régio da Primeira Capitania da Ilha, cuja efeméride
motivou recentemente a instauração
cronológica do Dia do Concelho de Machico.
Voltando ao presépio, o Menino (a sua
imagem) ‘nasceu’ no bucolismo dos campos da cana sacarina, sob o tintureiro, o
pastel e o folhado, ao ritmo cantante das águas descendentes das montanhas e o
bafo dos animais domésticos, guardiões da rural lapinha madeirense.
(Continua)
11.
Jan.23
Martins Júnior
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