quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

MEMÓRIAS DE OUTROS NATAIS…

                                                                               


A gestação dos anos e dos dias – décadas e séculos de um corpo gregário em constante progressão – vacila inevitavelmente entre a promessa auroreal de algo que está para nascer e as dores de um parto nem sempre bem sucedido ou muitas vezes indesejado.

Foram assim os Natais que a história registou no arquivo de memórias da Ribeira Seca e ficaram gravados no chão empedrado do logradouro público da localidade, com a transposição cénica no palco aberto. A par dos tempos confortáveis já descritos anteriormente, hoje fica aqui monitorizado o duplo atentado à paz social e à alegria natalícia de uma população periférica.

O MENINO PRISIONEIRO EM SUA PRÓPRIA CASA: 18 DIAS E 18 NOITES – 1985 

Aconteceu na manhã brumosa de 27 de Fevereiro. Terei de contá-lo na primeira pessoa, pois os factos assim  ditaram. Após descer as escadas para celebrar a Eucaristia matinal, eram as 7 horas, uma mulher sexagenária avisa-me com voz pesarosa: “Senhor Padre, o meu filho que trabalha na venda ambulante do peixe, telefonou-me às 5 da manhã e disse que estão na vila de Machico dez carrinhas com setenta polícias para atacar a nossa igreja”. – “Então, espero aqui por eles” – respondi. – “Não, atalharam logo outros circunstantes que vinham para a missa. O Senhor Padre vá para a casa dos seus pais, lá em baixo na vila, nós tomamos conta disto”. Apesar da minha insistência em ficar, tive que obedecer à voz do grupo. E fui embora.

Depois, foi o que alvoroçou todo o Machico. Os setenta efectivos entraram na igreja, fecharam as portas a barrotes, levaram objectos de culto, missais, alfaias sacras, livros de registo de baptismos, casamentos e afins. Microfones, amplificadores, enfim, tudo o que lhes apeteceu. Subiram depois à residência paroquial e saquearam-na como quiseram. Nestas operações instantâneas foram coadjuvados pelo pároco da igreja matriz e pelo presidente da Câmara, que seguiram atentamente todo o assalto.

Continuou a repressão sobre as pessoas que protestavam contra os actos de vandalismo praticados diante dos seus olhos,, algumas foram arrastadas para os carros da polícia, depois levadas ao tribunal de Santa Cruz para julgamento sumário, mas o juiz recusou-se e relegou o caso para processo comum. Para a decisão terá contado o abuso do governo regional e da diocese em mandar a PSP violar igreja e residência sem mandado judicial.  

A ocupação durou 18 dias e 18 noites, sem que os paroquianos pudessem entrar na sua igreja, nem sequer lhes era permitido atravessar o adro, como seu costume diário, a caminho de casa. Cantavam, de longe, canções de reivindicação – A Igreja é do Povo/ O Povo é de Deus – e consta que até serviam café e cacau aos polícias em serviço durante aquelas noites frias de inverno. Ao fim desse período, o contingente da PSP destacado na Ribeira Seca abandonou ‘misteriosamente’ a igreja e o adro, deixando o Povo definitivamente em paz.

Para a história ficou o “Menino preso em sua própria casa”. Ficou ainda a memória viva de que “O Povo perdoa, mas não esquece”- 

                                                           


UMA MÃE QUE UM BISPO NÃO DEIXOU VISITAR O MENINO, SEU PRÓPRIO FILHO  - 2010

Como se não bastasse o malfadado legado de 1985, a história da Ribeira Seca teve que suportar um outro atentado à sua igreja, à sua Padroeira (a Senhora do Amparo) e à sua crença. Foi em 8 de Maio de 2010. Para a sua narrativa, pouparei as palavras, porque serão todas envergonhadas se aplicadas ao gesto único na história da Ilha, só comparável às sacrílegas sentenças do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição.

A Imagem Peregrina de Fátima visitou, com pompa e circunstância, todas as paróquias da Madeira. Não obstante os preparativos realizados para a condigna entrada no adro e igreja da Ribeira Seca, o Prelado da Diocese decidiu proibir que tal acontecesse e preferiu levar a dita Imagem para o campo de recreio da escola da localidade.

No entanto, o mais ofensivo e perturbador foi ver a Imagem passar na estrada contígua ao adro e ficar ali, estacada, diante de milhares de crentes (até oriundos de outras freguesias) que enchiam literalmente o recinto paroquial. Passados 15 minutos de diálogo com os eclesiásticos oficiais que acompanhavam o séquito, e apesar do pedido insistente da multidão, a Imagem, notoriamente escoltada por um forte dispositivo policial, fez meia-volta e foi embora, deixando a descrença e a indignação em quantos ali estavam. Indignação e descrença não contra a Imagem Peregrina (que foi impedida de entrar na casa do Filho) mas contra os seus indignos decisores.

Por mais doloroso e decepcionante para a história dos nossos Natais, não podemos ignorá-lo nem subvertê-lo, Com este e outros cabos-de-tormenta, vividos com resiliência e fé maior, ganhámos a esperança de renascer para a alvorada de um Mundo Melhor.

É o que encontraremos na próxima e última estação desta caminhada.

 

19.Jan-23

Martins Júnior       

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