A
gestação dos anos e dos dias – décadas e séculos de um corpo gregário em
constante progressão – vacila inevitavelmente entre a promessa auroreal de algo
que está para nascer e as dores de um parto nem sempre bem sucedido ou muitas
vezes indesejado.
Foram
assim os Natais que a história registou no arquivo de memórias da Ribeira Seca
e ficaram gravados no chão empedrado do logradouro público da localidade, com a
transposição cénica no palco aberto. A par dos tempos confortáveis já descritos
anteriormente, hoje fica aqui monitorizado o duplo atentado à paz social e à
alegria natalícia de uma população periférica.
O MENINO PRISIONEIRO EM
SUA PRÓPRIA CASA: 18 DIAS E 18 NOITES – 1985
Aconteceu
na manhã brumosa de 27 de Fevereiro. Terei de contá-lo na primeira pessoa, pois
os factos assim ditaram. Após descer as
escadas para celebrar a Eucaristia matinal, eram as 7 horas, uma mulher
sexagenária avisa-me com voz pesarosa: “Senhor Padre, o meu filho que trabalha
na venda ambulante do peixe, telefonou-me às 5 da manhã e disse que estão na
vila de Machico dez carrinhas com setenta polícias para atacar a nossa igreja”.
– “Então, espero aqui por eles” – respondi. – “Não, atalharam logo outros
circunstantes que vinham para a missa. O Senhor Padre vá para a casa dos seus
pais, lá em baixo na vila, nós tomamos conta disto”. Apesar da minha
insistência em ficar, tive que obedecer à voz do grupo. E fui embora.
Depois,
foi o que alvoroçou todo o Machico. Os setenta efectivos entraram na igreja,
fecharam as portas a barrotes, levaram objectos de culto, missais, alfaias
sacras, livros de registo de baptismos, casamentos e afins. Microfones,
amplificadores, enfim, tudo o que lhes apeteceu. Subiram depois à residência
paroquial e saquearam-na como quiseram. Nestas operações instantâneas foram
coadjuvados pelo pároco da igreja matriz e pelo presidente da Câmara, que
seguiram atentamente todo o assalto.
Continuou
a repressão sobre as pessoas que protestavam contra os actos de vandalismo
praticados diante dos seus olhos,, algumas foram arrastadas para os carros da
polícia, depois levadas ao tribunal de Santa Cruz para julgamento sumário, mas
o juiz recusou-se e relegou o caso para processo comum. Para a decisão terá
contado o abuso do governo regional e da diocese em mandar a PSP violar igreja
e residência sem mandado judicial.
A
ocupação durou 18 dias e 18 noites, sem que os paroquianos pudessem entrar na
sua igreja, nem sequer lhes era permitido atravessar o adro, como seu costume
diário, a caminho de casa. Cantavam, de longe, canções de reivindicação – A Igreja é do Povo/ O Povo é de Deus – e
consta que até serviam café e cacau aos polícias em serviço durante aquelas
noites frias de inverno. Ao fim desse período, o contingente da PSP destacado
na Ribeira Seca abandonou ‘misteriosamente’ a igreja e o adro, deixando o Povo definitivamente
em paz.
Para
a história ficou o “Menino preso em sua própria casa”. Ficou ainda a memória
viva de que “O Povo perdoa, mas não esquece”-
UMA MÃE QUE UM BISPO NÃO
DEIXOU VISITAR O MENINO, SEU PRÓPRIO FILHO - 2010
Como
se não bastasse o malfadado legado de 1985, a história da Ribeira Seca teve que
suportar um outro atentado à sua igreja, à sua Padroeira (a Senhora do Amparo)
e à sua crença. Foi em 8 de Maio de 2010. Para a sua narrativa, pouparei as
palavras, porque serão todas envergonhadas se aplicadas ao gesto único na
história da Ilha, só comparável às sacrílegas sentenças do Tribunal do Santo
Ofício, a Inquisição.
A
Imagem Peregrina de Fátima visitou, com pompa e circunstância, todas as
paróquias da Madeira. Não obstante os preparativos realizados para a condigna
entrada no adro e igreja da Ribeira Seca, o Prelado da Diocese decidiu proibir
que tal acontecesse e preferiu levar a dita Imagem para o campo de recreio da
escola da localidade.
No
entanto, o mais ofensivo e perturbador foi ver a Imagem passar na estrada
contígua ao adro e ficar ali, estacada, diante de milhares de crentes (até
oriundos de outras freguesias) que enchiam literalmente o recinto paroquial.
Passados 15 minutos de diálogo com os eclesiásticos oficiais que acompanhavam o
séquito, e apesar do pedido insistente da multidão, a Imagem, notoriamente
escoltada por um forte dispositivo policial, fez meia-volta e foi embora,
deixando a descrença e a indignação em quantos ali estavam. Indignação e
descrença não contra a Imagem Peregrina (que foi impedida de entrar na casa do
Filho) mas contra os seus indignos decisores.
Por
mais doloroso e decepcionante para a história dos nossos Natais, não podemos
ignorá-lo nem subvertê-lo, Com este e outros cabos-de-tormenta, vividos com
resiliência e fé maior, ganhámos a esperança de renascer para a alvorada de um
Mundo Melhor.
É
o que encontraremos na próxima e última estação desta caminhada.
19.Jan-23
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário