domingo, 31 de maio de 2020

QUATRO BANDEIRAS QUE MOSTRAM E ESCONDEM O “DIVINO”


                                                     

Nunca o abstracto coabitou tão perto com o concreto. Nunca as sombras conviveram tão embrulhadas na luz. E nunca a matéria esteve tão consubstanciada com o espírito. De tal forma que não chega a saber-se onde acabam as sombras, o corpo concreto, a matéria e onde começam a luz, o abstracto, o espírito.
Refiro-me à osmose quase perfeita entre os dois opostos ou, mais explicitamente, entre o sagrado e o profano, entre o divino e o humano. Isto verifica-se, precisamente, hoje,  Festa do Espírito Santo, de cujos conteúdos fiz eco durante todos os “dias ímpares”  da semana transacta. Vou terminar, também hoje, aquilo que não tem fim - ou não deveria tê-lo.
O interesse da questão reside nos diversos figurinos com que a tradição crente vestiu um Ser supra, infinitamente supra-terrestre: O Espírito de Deus! Perante os episódios descritos nos três últimos blog’s, fica evidente uma estranha mestiçagem entre o infinitamente incorpóreo e o mais supinamente rasteiro, a roçar e ultrapassar o ridículo. No correr de muitos séculos, a devoção ao Espírito esteve empacotada, senão mesmo desbragada, em manifestações completamente contrastantes com o seu original, a sua essência. Eles eram folias e abusos, eles eram encenações grotescas simulando megalomanias imperiais à mistura com solenes pendões vermelhos e, sem faltar, camufladas extorsões pias do ‘vil metal’.
Trata-se de um sério study case (para usar a designação corrente) o qual, não cabendo nos estreitos limites deste escrito, tentarei sintetizar, após prolongada reflexão sobre o caso, sendo certo que tudo quanto se possa explanar cai sempre sob a alçada da vulgarmente designada “religiosidade popular”.
Como síntese que é, monitorizarei em quatro alíneas genéricas a interpretação ou anatomia deste composto híbrido da devoção ao “Divino Espírito” e da sua arreigada implantação em Portugal, sobretudo na Madeira e Porto Santo. Ei-las, como quatro estandartes que mostram e, paradoxalmente, escondem o “Divino”:
1º - A condição de dependência/contingência inata ao ser humano, em virtude da qual obriga-o, como náufrago abandonado em ilha deserta, a voltar-se para o Alto, a pedir socorro. E quanto mais abstracta for a ‘entidade seguradora’, maior o clímax de confiança por parte do impetrante. Embora transversal a todos os patronos e a todas aras, a petição endereçada  ao Espírito invisível, intocável e soberano ganha uma extensão maior e mais duradoura.
2º - A fome e sede de alegria, como lenitivo ou catarse natural ao caminhante nos desertos da vida, mormente ao cristão moldado nos estigmas do seu Crucificado. É preciso inventar oásis de conforto e praças da canção adequadas à mentalidade de cada aglomerado populacional. Cada qual cria o seu estilo.
3º - A cumplicidade do Sagrado. A diversão (sempre os resquícios de uma vã pedagogia cristã) impele o crente para um vago sentimento de culpabilidade, se se aproximar das (muitas vezes, inexistentes) linhas vermelhas. Aí, se o mesmo crente descobrir (ou fabricar) um suposto “habeas corpus”,  isto é, uma sensação de que a Entidade Sagrada  está de acordo e também se diverte com os machetes, os bailado, as folias e até perdoa  os excessos “em louvor do Divino” – então aí todas  as inibições somem-se como por encanto e  as demasias abrem os cordões à bolsa. Define-o bem Miguel Real: “O espectáculo barroco, exuberante, copioso, ludicamente excessivo, torna-se assim, a única categoria estética capaz de mostrar o deus escondido, de intermediar o deus silencioso. Redunda no  excesso e na desproporção. Manifesta o drama do desequilíbrio  da razão”.
4º - A nostalgia do “Quinto Império”. É este um dos aspectos mais secretos, porque imperceptíveis à multidão, mas (segundo os investigadores) sedimentados no inconsciente colectivo do povo português.
Voltando ao figurino cultual do Espírito Santo, notamos toda uma nomenclatura e uma cenografia tendencialmente monárquicas: o Imperador, os Reis, as Damas da Corte, os Pajens, o Marechal, a Coroa, as Bandeiras e os Pendões. Não esqueçamos que a saga devocional ao Espírito foi iniciativa da Rainha Santa Isabel e seu marido D. Dinis, desde Alenquer. Outrossim, na Madeira, foram  Zargo e o fidalgo Esmeraldo os construtores dos primeiros templos dedicados ao Espírito Santo. Leiamos agora, o nosso filósofo Agostinho da Silva: “O messianismo, filosofia de exilados e infelizes, mas também de forte afirmação espiritual, tem-se revelado uma das persistentes  expressões do espírito português, desde Os Lusíadas, assumindo várias formas, uma das quais foi o sebastianismo propriamente dito”. E Miguel Real acrescenta: “Agostinho da Silva defende que a introdução do culto do Espírito Santo é o símbolo do futuro reinado do amor universal, que rapidamente se generalizaria entre as populações como celebração de festa do futuro através da entronização do menino como Imperador do Mundo, o bodo geral e a abertura  dos portões das prisões. Entende-se agora muito bem que o Português tenha tido uma paixão, não pelo previsível Pai ou previsível Filho, mas por aquela coisa, aquela pomba errante, que vai para onde quer, como o português”…
Já vai longa esta síntese. Talvez possa desenvolvê-la noutra reflexão, porque a questão não é tão romântica ou superficial como se possa imaginar. Génios do pensamento luso, como o Padre António Vieira e Fernando Pessoa revelaram-se acérrimos defensores de Portugal à cabeça do Quinto Império. Messianismos hoje completamente fora do léxico político internacional, mas que deixaram arquétipos no subconsciente latente de um povo, mais a mais injectado por inconfessados interesses de regimes ditatoriais, não muito distantes de nós.
É nesta órbita que se situa toda a teatralidade esfuziante do chamado “Espírito Santo” na Madeira e Porto Santo. No entanto, dando de barato todo o folclore, superstições, foguetórios, danças e andanças “em louvor do Divino” e consideradas as quatro alíneas descritas, é legítimo e até imperativo apelar ao discernimento e à sã pedagogia teológica para separar o trigo do joio e tratar com dignidade os rituais que a merecem.
A este propósito, cito dois fiéis intérpretes da ortodoxia em Portugal, o Padre Joaquim Alves Correia e Frei Bento Domingues, ambos unânimes nesta judiciosa observação: “A religião dos portugueses não é só uma compensação imaginária de uma frustração, como alguns pretendem. Temos também uma imaginária compensação da falta de religião”.    
          
  31.Mai-01.Jun-20
Martins Júnior

sexta-feira, 29 de maio de 2020

VAMOS À FESTA DO ESPÍRITO CONTRA A LUTA DE OUTRO “SPIRITUS”!... VIAGEM AO PORTO SANTO


                                                     

É na Semana do Espírito que continuamos a viajar, entre 24 e 31 de maio. Mas tão estranha esta viagem, comparada com a de outros tempos e até mesmo com a do ano transacto! Antes, era a azáfama inquietante, saltitante, dentro e fora dos templos: as bandeiras, os arcos floridos nos adros, nos caminhos. E nas casas, as receitas dos avós, os manjares para receber fidalgamente  os mordomos, as saloias, a orquestra folclórica, enfim,  o cortejo “imperial”, como ficou demonstrado na anterior narrativa. As usanças de Alenquer trouxeram-nas para a ilha os primeiros povoadores, entre os quais Zargo em Câmara de Lobos e Esmeraldo em Ponta do Sol.
E o mais curioso é o paradoxo por todos aceite, quer na Madeira, Açores e Portugal Continental:  Na Festa do Espírito  o protagonista era o corpo dela, isto é, o barroco, o ruidoso, o espectacular, a apoteose da folia popular e o arrecadar do “vil metal”  nos sacos vermelhos, da cor das bandeiras do “Divino”.
Assinalável, pela sua original simbólica, foi a vivência que tive na ilha do Porto Santo, com a visita domiciliária das “insígnias”. O imponente cortejo saía   do templo seiscentista do Espírito Santo, orago do lugar. Dezoito homens compunham o “Pelotão do Divino”. À frente, pendão e bandeira, os pajens segurando a coroa numa salva de prata, as saloias  precediam o Imperador  que  ostentava, ufano e altaneiro, a vara da liderança dos mordomos. A formatura fechava com o vigário, ladeado pelo  Marechal e seu Ajudante. Surpreendido pela designação da mais alta patente militar para um homem rural quase octogenário, perguntei-lhe o porquê de tal promoção, ao que ele prontamente e garbosamente respondeu: “Sabe, sou eu que mando marchar toda essa gente que vai à nossa frente”. Caprichosa e deliciosa explicação!
Em cada casa, a visita começava com o “Hino ao Divino” que compus expressamente para o efeito. Trocavam-se abraços familiares e saudações vicinais. Um dos mordomos recolhia a oferta, enquanto a dona da casa metia nos cestinhos das saloias uma mancheia de ovos. No final, após um brinde frugal, erguia-se a voz do Marechal: “Pessoal, Ála”! Devo confessar, passados já 57 anos, o que mais vincadamente me ficou no subconsciente e que ainda hoje ecoa dentro de mim: o coro daqueles homens, a sua voz timbrada e solene, apanágio das vozes portossantenses,  entoando o Hino dentro de cada habitação, que comovia até ao íntimo, prolongando-se depois pelos campos de trigo, à beira dos caminhos, com o acompanhamento ritmado  da rabeca, rajões e violas de arame.
Manda a verdade dizer que, durante os dois anos consecutivos em que cumpri a tradição daquela ilha, o “Espírito Santo” concitava o júbilo imanente dos corações, a saudade dos ausentes, o bulício das crianças, enfim, uma variante de catarse psico-sociológica que contagiava a todos, sem os excessos de outras regiões, como os citados  no blog último.  
 E tudo o vento levou… Foi preciso chegar ao Ano da Graça de 2020 para que um outro spiritus (vento) invisível destronasse e afastasse da torre imperial  o Grande Espírito que fazia rodar corpos e almas nas ondas da sua bandeira. Foi o estranho e intocável CoVid que apeou o invisível Div’Espírito do palco da  espectacularidade cultual. E não haverá por aí e por aqui quem, nesta  impiedosa quarentena devocional, tenha a coragem de apostrofar o spiritus letal  para descobrir a essência do Espírito Imortal ?
Eis a questão geradora de mil questões: Quem é e Como é esse Espírito?... Tem Castelo e tem Bandeira?... Qual a cor e o tamanho dela?...
A quantos centímetros Te reduzimos e porquê?...
Onde moras, onde moras?...
Ficarei desperto e vigilante até à madrugada de Domingo – o Dia do Espírito – para aguardá-lo na curva do caminho da Vida e perguntar-lhe como é que O fizemos tão pequeno, tão venável e tão histriónico?!
Perguntar-lhe também onde quer e como quer se faça a Sua Festa?!

29.Mai.20
Martins Júnior

     

quarta-feira, 27 de maio de 2020

“CLERO, NOBREZA E POVO NO BAILE DO DIVINO ESPIRITO SANTO”…


                                              

Sempre me interessou a anatomia das crenças, a forma e o fundo, o coração e a pele, por outras palavras, a ideia e o símbolo. Mas, se sempre esta dicotomia perseguiu os meus passos, muito mais nesta que considero providencial conjuntura, em que foi superiormente e dogmaticamente decretada greve geral às igrejas. É o que se vê: os templos quase vazios, mesmo quando é permitida a ocupação parcial das instalações. Para o comum dos chamados “fiéis observantes” é uma mágoa igual ao toque a finados. Insere-se neste luto e com notória estranheza a amputação das vistosas e fartas “Visitas do Espírito Santo”, que teriam o seu ponto alto nesta semana que antecede o Pentecostes. Tanto para os devotos como para as hierarquias, representa um pesado ‘deficit’: naqueles, de devoção,  folclore e alegria; nestas, de baixa nas finanças da comissão fabriqueira, assim designada nos cânones eclesiásticos.
Mesmo pressupondo a indiferença generalizada que o tema suscita, elegi como denominador comum de toda a semana  um esboço de estudo sócio-antropológico deste movimento buliçoso que faz dançar, de lés a lés, as nossas ilhas de Madeira e Porto Santo. No escrito anterior rememorei, em verso co-produzido pela população onde vivo, a encenação de tais visitas, em cujo conteúdo fica bem ao rubro a fusão entre o material e o imaterial, a divertida invasão, sem apelo nem agravo, do profano sobre o sagrado. Digo profano, mas mandam certos factos dizer: a deturpação do espírito pelos instintos da carne.
Sem desvalorizar de modo algum o empenho e a alegria espontânea que as pessoas põem no asseio das casas e dos caminhos por onde passarão as bandeiras ou “insígnias”, os rituais da praxe ufanam-se em ostentar abastança, mesas cheias, copos a rodos, sobretudo os envelopes tripartidos  (um para o padre, outro para a igreja e um terceiro para a festa do Espírito Santo) não faltando ainda a arrematação das ofertas, novamente mexida e não menos regada. Eram frequentes os abusos, chegando-se ao ponto de serem proibidos certos usos e costumes.
Por exemplo, nas “Ilhas de Zargo”, obra do ilustrado historiador madeirense Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, lê-se expressamente que “na Madeira, excedeu-se essa folgança e luzimento com tantos desmandos e abusos, que mereceram a intervenção do Governador Civil, porque as chamadas esmolas que se extorquiam por sortes de grande valor, os sumptuosos teatros púbicos que se erigiam, as competências de luxo neles,  as gulas, as ebriedades e as demasias que até à noite do Espírito Santo se cometiam e até a concorrência de ambos os sexos que, em noites sucessivas, vinham por entre sombras com muitas ofensas a Deus… tudo isto foi regulado com a proibição”. Noutra altura, foi a própria autoridade eclesiástica, o Bispo D. Manuel Agostinho Barreto, que “por provisão diocesana, restringiu as insígnias das visitas domiciliárias apenas à Bandeira e ao Pendão, com o fim se evitarem despesas, irreverências e abusos, exigindo ainda  o exame das músicas e dos cantores desses actos”, o que manifestamente evidencia os deslizes chocarreiros, senão mesmo brejeiros, a que tais visitas se prestavam, sempre “em honra do Divino Espírito Santo”.
Mas não só na Madeira. Fortunato de Almeida, na sua monumental e única “História da Igreja em Portugal”, em quatro volumes, descreve o aparatoso cortejo da Festa, em que “desfilava o Imperador, assistido de dois  Reis,  quatro Pagens, que traziam as coroas, uma delas dada pela própria rainha Santa Isabel, e acompanhados da nobreza e do povo... Duas donzelas honestas acompanhavam o Imperador e dançavam durante todo o préstito, por isso se lhes dava dote para o casamento. No fim, havia folias e bailes para os nobres e para o povo”.
“Nos tempos modernos – continua Fortunato de Almeida – o Imperador era um menino, cognominado de bispo inocente, porque vestiam-no com as vestes e insígnias  episcopais, governava o clero até ao dia seguintes, visitava as paróquias como se fora o prelado da diocese, deitava bênção, etc.. Era uma folia, de que o povo ria e que afinal foi proibida por diversos concílios”.(Op.citada, II vol. pg.556-557).
Ridicule, mais charmant – poderíamos, aqui também, classificar estes episódios que têm tanto de ridículo como de engraçado, talvez ingénuo e encantador,  aos nossos olhos. Mas a verdade é que eles existiram, há cem, duzentos anos. E ainda persistem,  resquícios mitigados, por certo, mas portadores dos mesmos estereótipos sócio-antropológicos. Seja em Alenquer, seja em Viseu, seja nas Ilhas, seja em Alcântara do Brasil, como documenta a foto.
É a pergunta que fica: O que estará, de mais íntimo e estrutural, pegado ao osso e ao coração da devoção que o povo nutre pelo Espírito Santo? Ontem e hoje?! … Ou, numa visão mais ampla e naturalmente holística: Quais os alicerces do edifício a que chamamos a “Nossa Religião?”. Por outras palavras: E a pandemia, será ela capaz  de  abalar esses alicerces?
Porque, em terras do Porto Santo e na Madeira, experimentei no terreno os vestígios, ao menos parciais, de quanto foi acima narrado, continuarei no próximo “dia ímpar” a incursão sobre este mesmo tema.

27.Mai.20
Martins Júnior
  
  

segunda-feira, 25 de maio de 2020

UMA SEMANA DE CORPO E ESPÍRITO


                                            

É tempo de tréguas, se falamos de guerra, seja de combate entre as hostes, seja de embate com  a natura. E se falamos de incêndio, o tempo é de rescaldo. Num caso e noutro, a palavra de ordem é meter as mãos, esticar os braços para varrer os destroços, juntar os cacos, salvar as raízes e segurar as paredes que sobraram. Numa palavra, reconstruir. E, se possível, aproveitando o que de sólido ficou após a catástrofe.
Esforço hercúleo que convoca o poderoso batalhão planetário para esta “pancruzada” irrecusável e urgente! Na economia, através das estruturas empresariais públicas e privadas e, sobretudo, no potencial do operariado remanescente. Na saúde, recuperando o volume das consultas e cirurgias em espera. No ensino, com recurso às tecnologias comunicacionais. Em tudo. E também na religião.
Embora não exija a materialização concreta da reconstrução, como noutros segmentos retro-mencionados – o edifício da Fé transcende o empírico e visual – o certo é que tem sido militantemente agitada nas redes sociais a bandeira das práticas religiosas. Até Mr. Trump ameaça guerrear contra os governadores que não mandem abrir as igrejas!...
Nesta semana, dedicarei a esta “causa” todos os nossos “dias ímpares”. Porquê? É que entrámos na recta final de um ‘atípico’ tempo pascal, precisamente na esfuziante e folclórica tradição do chamado “Espírito Santo”, em que casas, caminhos e veredas vestiam-se do vermelho da alegria, com opas, bandeiras, saloias e foguetes atravessando a freguesia.
Começo hoje pela caracterização genérica dessas “romarias do Divino” . Trata-se de um feixe narrativo, em verso, (já editado no CD:  “A Igreja é do Povo/ O Povo é de Deus”) cantado e coreografado há mais de quatro décadas no palco da Ribeira Seca. Sabendo que os tempos são outros e diversos, deixo as conclusões ao critério de quem lê e desde já prometo para mais tarde a minha  interpretação, não só deste episódio, mas de todo o fenómeno prático-religioso.   

REFRÃO
Porque hoje é dia de festa
Nós iremos recordar
A história do nosso povo
Que hoje veio apresentar
A história do Espirito santo
 Fica bem aqui lembrar
Bandeirinhas e saloias 
Tudo aqui vamos contar

Estava o Rei D. Dinis
Em Portugal a reinar
A Rainha lhe pediu
P’ra uma igreja levantar

Logo o Rei fez a vontade
Alenquer foi o lugar
Procissões e romarias
Começou a organizar

Zarco em Câmara de Lobos
Fez capela e fez altar
Ponta do Sol o Esmeraldo
Fez igreja de encantar

Depois a Igreja gostou
E fez sua ferramenta
Arranjou capas vermelhas
Bandeiras e água benta

Assim começou a festa
Com violas e machetes
À conta do Espirito Santo
Veio o homem dos foguetes

Mas não podia faltar
O saquinho do dinheiro
Grandes arrematações
Vinho e brigas pelo meio

Até as pobres criancinhas
Sem saber qual era o fim
Vieram como saloias
Elas cantavam assim

Acudi gente da casa
Abri a vossa portinha
Aqui tendes o Divino
Na figura da pombinha

Abençoada é a esmola
Se a dais com alegria
Espirito Santo Divino
Fique em vossa companhia

O Espirito Divino
Quando fez sua descida
Não fez nenhum carnaval
Só veio p’ra dar a vida

Mas agora o nosso povo
Já descobriu a Verdade
O Divino Espirito Santo
Traz a Vida e a Unidade

25.Mai.20
Martins Júnior

        


sábado, 23 de maio de 2020

QUEM AO MAIS BAIXO DESCE AO MAIS ALTO HÁ-DE SUBIR


                                                 

Hoje, sábado, véspera de todos os dias!
Porque todos os dias são dias de subir e de transpor. Não só no Domingo da Ascensão, que está mesmo à porta, mas em toda a hora, em todo o mês e em todo o ano: ascender, buscar  mais alto e mais além, se possível tocar as franjas do infinito. Por isso, a tradição fixou em letras de oiro a  “Quinta-Feira da Ascensão” (transitada agora para o Domingo) mas ainda assinalada como feriado em certos países da Europa. Dia de profunda densidade psico-religiosa, pois que se trata de um momento intensamente caro à condição humana,  pleno de vivência e dramatismo: uma despedida – despedida para sempre! O Padre António Vieira dedica-lhe um dos seus discursos, proclamado na igreja de São Julião, em Lisboa. Emociona-se, relevando o qualitativo litúrgico de “Admirabilem Ascensionem tuam” , a que adiciona a retórica nostalgia que a partida do Mestre deixou no (des)ânimo dos  discípulos:  a Ascensão de Jesus  foi como “ desandar o que tinha andado,  desfazer o que tinha feito, desamar o que tinha amado”.
Por mais extasiante e mística que seja aquela hora do adeus, tanto para aqueles que “Ele amara até ao fim,” como para o “Imperador da Língua Portuguesa” e para nós que o lemos, escolhi como ‘aperitivo e sobremesa’ deste fim-de-semana a última cena do relato bíblico: Após a Ascensão e estando os discípulos com os olhos postos sempre nas nuvens, “apareceram dois homens vestidos de branco que lhes disseram: Homens da Galileia! Por que razão continuais  vós aqui parados e  ainda de olhos no alto?... Ide embora para Jerusalém!” … (Act.1,11-12). Então  eles deixaram o Monte das Oliveiras e voltaram para Jerusalém”.
  recomeçou a grande marcha, a incisiva revolução pacífica do Mestre. Sem Ele… Embora lhes fosse dito, na despedida, “Não vos deixarei órfãos… Eu estarei convosco até ao fim dos tempos”, imaginamos o vazio daquela separação e, ainda mais dura, a sensação de impotência e de pavor daqueles homens frágeis, iletrados, perante a magnitude de uma  “missão impossível”! Agora, chegara a sua vez, a sua hora! Não na exclusiva contemplação do seu Mestre e Líder, mas na acção inclusiva e abrangente como Ele bem protagonizara.
É neste binómio – de um outro e firme betão ciclópico – que assenta a Ponte que o Nazareno veio trazer ao mundo. Contemplação e Acção! Muitos equívocos se têm cimentado e deformado, ao longo de séculos na história da Igreja. É assunto visto e revisto – fiado e desfiado -- mas que persiste, como cardume de enguias nas entranhas da instituição, desde os mais pesados baixios até aos mais leves calhaus deste “Mar da Galileia” que é a cristandade. Nem sequer me ocupo em demonstrar, de tão evidente, a tendência armadilhada de transformar a Fé num cardápio de manjares celestiais onde superabundam receitas de “alecrim e manjerona” entre mãos enclavinhadas, mas onde faltam e fenecem as atitudes cristalinas e frontais do Mestre, demonstrativas da coragem e da coerência com o Projecto Renovador do Evangelho.
Cito apenas dois momentos. O primeiro vem na biografia do Bispo Manuel Vieira Pinto -- um grosso volume  onde  o Prof. Pe Anselmo Borges coligiu muitas das homilias do então Bispo de Nampula. Enviado para Moçambique em 1967 (o mesmo ano em que fui eu mandado para a guerra colonial…), caíu-lhe em cima a ‘metralha’ do colonialismo fascista de Lisboa, tendo sido de lá  expulso, pouco antes do “25 de Abril de 74”. Voltou à sua diocese após a Revolução dos Cravos e foram muitos os encontros do Bispo Vieira Pinto com o Presidente Samora Machel. Num desses encontros, sempre reivindicativos em prol da valorização dos moçambicanos,  o Presidente Machel ‘atira-lhe’ com esta provocação:”
“Porque é que tu, que és Bispo, quando vens falar comigo, nunca me falas de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?”. Resposta imediata do Bispo: “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que O defendam. O Homem sim”.
Tradução esta, a mais fiel, do Dia da Ascenção. A verdadeira. Elevar, defender a Pessoa, coroa da criação!
A confirmar a trajectória do programa ascensional de uma  Fé genuína, termino com o pensamento do Grande Frei Beto, autêntico bandeirante revolucionário, por quem tive a  honra de ser recebido, em 1972:
“É interessante constatar que grandes místicos foram simultaneamente pessoas mergulhadas na efervescência política de sua época. Francisco de Assis questionou o capitalismo nascente. Tomás de Aquino defendeu, em O Regime dos Príncipes, o direito da insurreição contra a tirania. Catarina de Sena, analfabeta, interpelou o Papado. Teresa de Ávila – ‘mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz’, como a qualificou D. Felipe Sega, núncio papal em Espanha, 1578 – ela revolucionou a espiritualidade cristã” (A Mosca Azul, 2008).
Homens da Galileia, por que ficais assim embasbacados, ostensivamente, farisaicamente orantes?... Homens da Galileia, Homens de Hoje, senhorios das Igrejas, sejam elas quais forem! Em tempo de pandemia, assusta-me o ardor pró-neurótico que tem invadido os templos, (até entre nós)  relegando o altar para uma espécie de  banca  milagrosa, a baixo-custo. Até Trump, insensato promotor da falência da saúde americana, até ele já manda abrir as igrejas…para acudir ao Covid!
Bem hajam os Homens Bons, ao lado do Papa Francisco que quer as vestes dos pastores cheirando ao bafo do rebanho!
Hoje e Sempre, Dia de subir. Porque descer à terra e à vida, mergulhar para salvar é o melhor e mais directo GPS para chegar às Alturas. Per angusta ad Augusta!

23.Mai20
Martins Júnior    

quinta-feira, 21 de maio de 2020

21 DE MAIO EM 21 ANOS DE VIDA – SOLSTÍCIO DE VERÃO ANTECIPADO NO VALE DE MACHICO !


                                                                       

              Não há metro nem metrónomo que definam cabalmente o tamanho ou o batente do fenómeno chamado Vida. Porque o viver não está nas léguas percorridas. Há-as longas e tão morosas, ruidosas, mas não enchem sequer uma mão fechada. E há-as, outras vidas, tão breves e fugidias, quase imperceptíveis na agorá da barafunda publicitária, mas que ultrapassam e preenchem corpos e almas. Para medi-las, as vidas, talvez só um densímetro apurado, capaz de sinalizar a densidade, a resiliência e a fecundidade que elas intimamente possuem. Mais tarde que cedo, naturalmente e sem estorvo,  elas assomam ao mirante da sociedade e vêem reconhecida a sua existência.
         Hoje foi esse dia. No “Solar-Museu do Ribeirinho”, em Machico, o Município rubricou o documento oficial da cedência, de quatro salas da Escola da Ribeira Seca, actualmente desactivada, ao CCCS-RS, “Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira Seca”. Dia de sol, por dentro e por fora. Dia de sol no berço do seu 21º aniversário, ocorrido precisamente há dois dias.
         Desde essa primeira hora da  fundação por escritura pública, em 19 de Maio de 1999, o CCCS-RS tem sido um veículo de socialização e cultura, não só no perímetro semi-rural, semi-urbano, da Ribeira Seca, mas também fora dele. Recordo figuras proeminentes da intelectualidade portuguesa, tais como Luís Moita, no “Dia da Europa”, Hasse Ferreira, João José de Sousa  e outros nas comemorações da Revolta da Madeira, 4 de Abril, Rui Carita, na evocação do “25 de Abril”. O CCCS-RS honra-se sobremaneira com a lição dada pelo historiador  Nelson Veríssimo e pela investigação de Manuel Rufino Teixeira sobre o Achamento da Madeira, em terras de Machico, 2 de Julho de 1419.
Inesquecível o “Parlamento Infanto-Juvenil” , no Dia Mundial da Criança, já lá vão 18 anos,  realizado no salão-biblioteca da Ribeira Seca, em que crianças e adolescentes subiram “à tribuna” para debater a Proclamação Universal dos Direitos da Criança. Datas assinaláveis, como o Dia da Mulher, em que a saudosa Dra. Maria Aurora e a Dra. Luísa de Paiva Boléo sustentaram um prestimoso diálogo com as mulheres da localidade, evento este realizado dentro do próprio templo, visto que o salão não comportava tão grande número de participantes. Em idênticas circunstâncias, as sessões sobre saúde, entre as quais o “Mês do Coração”, destacando-se  a “aula” da especialista cardiologista Dra. Eva Pereira, além de outros profissionais do sector.
Na área da formação musical e sua divulgação, a “Tuna de Câmara de Machico, TCM”, embora criada em 1983, passou a integrar a estrutura do CCCS-RS, promovendo mais intensamente audições e espectáculos, quer  em Machico, quer no Funchal, no Teatro Baltazar Dias, por ocasião do Festival Internacional de Tunas. A nível das festas tradicionais, o CCCS-RS tem marcado presença ininterrupta nos desfiles de Carnaval concelhio e nas "Marchas  Populares" a cargo da Junta de Freguesia. A Noite do Mercado e o Cantar dos Reis, da responsabilidade do Município e da Freguesia, respectivamente, contam sempre com a presença dos jovens desta associação. Como contaram também os quatro CD’S, já publicados, não obstante  ser de Autor a sua  edição. De assinalar a presença em Machico, no palco da Ribeira Seca, de cantautores nacionais, como Janita Salomé, Francisco Fanhais e o malogrado Pedro Barroso, em 2012, por convite especial  do CCCR-RS. A participação no programa televisivo nacional, “Praça da Alegria”, em 2005, constituiu um momento gratificante da associação.
Na sua folha de serviços, avulta a publicação de três obras – “Poemas Iguais aos Dias Desiguais”, “Legado” e “Olhares Múltiplos” – cuja compilação pertenceu ao mesmo Centro. Ficaria incompleta a presente listagem, embora sucinta, se não mencionássemos a elucidativa mensagem presencial do Padre  Agostinho Cesário Jardim Moreira, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, que abriu as mentalidades sobre o verdadeiro serviço social, não apenas assistencial, mas holístico e geracional. Neste âmbito, já o CCCS-RS realizara, com sucesso, em 2011-2012, o Curso de Operador de Serviços Sociais e Culturais, financiado pelo Fundo Social Europeu, RUMOS.
 Senti-me no dever de trazer ao “mirante da sociedade” este feixe de notícias, para muitos desconhecido, mas verídico e actuante, do CCCS-RS, em cujo rol tenho a honra de integrar-me, como simples colaborador. Daí, o ter classificado o dia de hoje, 21 de Maio, como um antecipado solstício de verão. Digo-o, sentidamente,  porque a associação nunca teve sede própria (reunia no salão-biblioteca da igreja) nem beneficiou até à data de subsídios oficiais para os seus programas. Foi uma luta insana a iniciativa da construção de um “Pavilhão Multiusos”, pois que tínhamos terreno e projecto, mas outros desvalores mais baixos se alevantaram… Só pela dedicação e  empenho dos seus dirigentes e benfeitores eventuais conseguiu manter-se de pé o CCCS-RS. É o espelho da resiliência que caracteriza a alma da Ribeira Seca, desde tempos imemoriais.
Felicito a Câmara Municipal de Machico, particularmente o seu presidente Ricardo Franco e a vereadora da cultura, Mónica Vieira, presentes no acto da entrega das chaves do edifício à presidente do CCCS-RS, Irene Catanho, numa cerimónia singela, em virtude da época restritiva em que o Covid-19 nos enclausurou. Mais felicito as autoridades municipais e entusiasticamente congratulo pelo facto de terem entrelaçado nesse acto a associação coreográfica “Prestige Dance”, na pessoa da professora Oksana Kerekesh, a qual associação, já com provas dadas dentro e fora da Madeira, partilhará de forma autónoma as mesmas instalações, contribuindo assim para a valorização global da população ribeira-sequense.
Que o solstício antecipado de 21 de Maio aqueça a terra e o coração das gentes para que produzam luzidios e saborosos frutos!

21.Mai.20
Martins Júnior

terça-feira, 19 de maio de 2020

ENTRE “PAN” E “EPI”-DEMIAS: O FADO E O FADÁRIO DE MACHICO


                                                              

Num ápice, ficou o mundo encadeado e possesso de um estranho visitante que entra em cena, agarra-nos pelo braço, aperta-nos o pescoço e, como o credor ao devedor - “paga-me o que deves” - ele nem nos deixa respirar: “agora és meu, não te largo um instante, nem de noite nem de dia”. Prende-nos o pensamento, os neurónios, a vida. E assim fica o mundo, feito prisioneiro compulsivo do ‘Covid’. Como se em nenhum tempo nada mais houvesse além do ‘Covid’. É ele que tem polarizado a atenção de tudo quanto mexe neste planeta.
Lembra a ardilosa peça dramática de José Régio, “O Meu Caso” que bem me lembro ter visto representada, há mais de 60 anos, no palco do então chamado “Liceu Jaime Moniz”. Curiosamente, também levada à cena, no ano transacto, em Vila do Conde.
Aproveito esta aragem de descompressão ou desconfinamento para trazer à memória de madeirenses e machiquenses episódios similares, ocorridos aqui na ilha, ao longo dos 600 anos de viagem atlântica desta mini-“jangada de pedra”. Certo é que as tragédias insulares confinam-se apenas aos 57mX22m de território. Mas, tal como se diz que “os homens não se medem aos palmos”, também se apura que os factos não se medem pela extensão, mas pela profundidade dos seus efeitos.
Basta pensarmos nos 7014 mortos registados na Madeira entre Junho e Outubro de 1856. Mais de 1700 mortos/mês !!! Causados também por uma epidemia que, consideradas as circunstâncias e as carências de então, assumiu proporções pandémicas para os habitantes irremediavelmente  presos aqui por terra, mar e ar. Foram os soldados do regimento de infantaria nº1, chegados de Lisboa nos finais de Junho de 1856, que transportaram o mortífero “cólera-morbus”. O governador não tinha hipótese de metê-los em quarentena, muito menos em hotéis…
 Mas a saga das epidemias vinha de mais longe, muito longe. Desde o princípio da colonização e povoamento. Compulsando os Anais do Município de Machico, descobre-se que já em 2 de Maio de 1489,   findo o surto de peste de que foi vítima esta capitania, o Capitão dirigiu-se ao Funchal para dar conta que “já não havia  mal de contágio e que mandassem desimpedir os portos”. Noutro âmbito, o das Aluviões, a Madeira e, mais intensamente Machico, sofreram trágicas consequências da voragem cíclica das torrentes, concretamente as de 1803, 1815, 1842, todas em Outubro, 1583 em Fevereiro, 1678 em Novembro, etc.. O Autor, José António de Almada, cita ainda os tufões devastadores, as pragas de gafanhotos, as fomes,  as secas e os abalos de terra, sobretudo os do 1º de Abril de 1748 e 1º de Novembro de 1755. É um estendal funéreo a descrição dos acontecimentos, cuja memória registaram os Anais. Aí se destacam também os heróis, abnegados defensores da população, inclusive profissionais de saúde que morreram contaminados pelo mesmo vírus, ao serviço dos infectados!
Há um aspecto, porém, que importa realçar e que apresenta alguma similitude com os tempos actuais. À míngua de melhores recursos científicos e tecnológicos, os nossos antepassados recorriam ao sobrenatural, aos santos protectores. É sintomático o relato do cronista, a propósito dos esforços impotentes das autoridades e da população: “Nesse dia 18 de Julho, de tarde, concorreu o povo à igreja de S. Roque e de lá veio uma procissão de penitência para a igreja matriz onde expuseram à veneração dos fiéis as imagens de S. Roque, do sr. dos Milagres e do sr. dos Passos”. Mas de nada serviu, pois que, continua o relator, “A epidemia foi grassando, com aspecto assustador, nos dias subsequentes”.
Mais impressivo - e revelador da angústia que amarrava os próprios governadores – aconteceu quando “Em 7 de Fevereiro, o governador do bispado, a pedido do governador civil, ordenou aos respectivos párocos que fizessem preces públicas e procissões de penitência”.
Não resisto a transcrever, dos Anais, o ofício do governador civil José Silvestre Ribeiro a toda a população, uma eloquente e comovedora peça de oratória sacra, passível actualmente de alguma discrepância num dos argumentos propostos, mas indiscutivelmente  demonstrativa de um coração apertado entre a dor e o desespero, face ao sofrimento do povo madeirense. Ei-la:
«Uma philosophia  desdenhosa e altiva pergunta  nestas circunstancias se a natureza não obedece por ventura a leis geraes e imprescriptiveis, e argumenta com esse facto para regeitar a submissão, as supplicas, e as ferverosas orações ao Omnipotente. Sim, a natureza obedece a leis geraes; mas quem prescreveu essas leis? Foi Deus. Humilhemo-nos pois ante os seus Decretos, e não nos envorgonhemos de lhe pedir soccorro nas nossas tribulações. E ainda quado esta piedosa crença deixasse de assentar em solidas convicções do espirito, conviria em todo o caso não arrancar aos infelizes a consolação unica, que nos dolorosos trances da vida pode ter o desgraçado.»
Em forma de roda-pé  e a propósito de datas históricas e precedências cultuais ou religiosas relacionadas com Machico, os Anais informam que “A Câmara de Machico tomou por Padroeiro o Glorioso S. Roque, na era de 1728, em que a peste afligiu esta ilha da Madeira”. Mais concluso e preciso é o Anotador dos Anais, ao situar o lugar da história, afirmando: “São Roque era o santo quase sempre invocado contra as pestes, tal como São Sebastião. A Câmara pode ter votado São Roque como padroeiro em 1728, mas pelo menos a capela já existia e a intenção deve datar desde 1489, quando Machico foi alvo de um surto de peste”.
Enfim, é bom saber que não estamos sós. Muito antes de nós, outros sofreram iguais e piores tormentos, nossos antepassados que nos legaram nas ondas mágicas do tempo exemplos de resistência à dor e de esperança no porvir.
19.Mai.20
Martins Júnior      

domingo, 17 de maio de 2020

“ABERTURAS” COM O MEDO NO BURACO DAS “FECHADURAS”…


                                                            

        Está chegando o dia – para alguns até já chegou a hora – em que Sua Majestade Carcereiro ‘Convid’ sobraça a chave de ferro com que fechou portas, portões e pavilhões. “Podem abrir, podem entrar e sair” é o que fazem os gonzos, à ordem dada, gemendo nos eixos cansados de dois meses de descanso. Vai começar a aventura da liberdade, bem mais exigente que a ditadura do confinamento…
         Uma das instituições pioneiras neste ‘novo testamento’ foi a diocese madeirense. Mas, pelos vistos, não obteve sucesso. Os fregueses não acudiram assim tão asinha à igreja da freguesia. E, se calhar, até fizeram o jeito e a vontade aos principais da hierarquia que, nas entrelinhas das instruções fornecidas, preferissem adiar o exercício da carta  de alforria outorgada aos usuais praticantes da liturgia, a exemplo de Portugal Continental e do que explicitamente fizeram outros dignitários eclesiásticos, como o cardeal de Leiria-Fátima e o próprio Papa Francisco em Roma.
         Na realidade, analisada a dita “abertura”, quer a olho nu quer ao microscópio da razoabilidade, toca-se logo com uma insanável contradição, qual seja a de pretender-se um determinado objectivo e o seu oposto.
Ouçamos o badalar do sino da aldeia ou o carrilhão da torre cimeira da catedral. Que é que ele diz? “Venham cumprir o vosso dever dominical”. Vai a aldeia toda e vai meia cidade, chegam à porta santa e o que lá está escrito e, mais que isso, o que está prescrito? “Só cabe um terço da lotação do templo”. Portanto, dois terços não entram, isto é, são excluídos”. Mas a exclusão é contra a Eucaristia…
Por isso, o badalo do sino, ao dizer  “venham”, diz no mesmo timbre “Não venham”.  A nega vai sobretudo para quem tem 65  ou mais anos. Esses, os idosos, são aconselhados, admoestados, quase que intimados a não participar na assembleia dominical. Por uma boa causa, é certo: a saúde. Mas não devem entrar. São os excluídos, por terem a ‘má sorte’ de um pai e de uma mãe que os puseram no mundo “prematuramente”. Seis décadas e meia mais cedo!  No mínimo,  isto é violência contra a terceira idade, logo contra os mais fiéis clientes e praticantes. E a violência é contra a Eucaristia…
Dentro do templo, avoluma-se a contradição. Num ambiente em que se prega o espírito de abertura cristã e de transparência fraterna “diante de Deus e diante dos homens”, eis que nos deparamos (sobretudo quem preside) com um cenário anómalo, falseado no seu semblante e, por isso, pesado e antipático. Nos salões mundanos, dir-se-ia  tratar-se de ‘um baile de máscaras’. Ali, assemelha-se a fantasmas orantes,  opacos. Por uma boa causa, é certo. Mas a opacidade ou a dissimulação (mesmo por uma boa causa) não rimam com Eucaristia…
A contradição sobe de tom no ar que se respira dentro do templo. O medo. No meio ecológico onde deve imperar a “liberdade dos filhos de Deus” paira a ameaça do medo. Medo de quê ou de quem? Do outro, o irmão, o correligionário, o crente que está ali mesmo. A lei, como um chicote, é peremptória: “Põe a máscara, afasta-te dele, conserva ao menos dois metros de distância”. Porquê? Porque ele pode contagiar-te ou, vice-versa, podes contagiar o teu irmão na Fé”. O medo! Nunca se estará em paz total, nem sequer no paraíso da dúvida que gera o medo. Isso é contra a Eucaristia…
Para coroar o paradoxo, tudo termina com o carvão em cima do bolo ou, se quisermos, uma espécie de polícia sem farda, a “Pide” invisível do vírus que, mal terminada a cerimónia, nos manda imediatamente para casa. Nada de ajuntamentos na rua, impossível o convívio semanal entre os vizinhos e não vizinhos que se encontram, após uma semana de ausência forçada. Ora, a Eucaristia não é como quem vai ao mercado ou à farmácia, onde o ritual é  o “despacha-te e anda”. A verdadeira Eucaristia dominical começa dentro do templo e continua na comunhão fraterna fora dele, no adro ou “Átrio dos Povos” da aldeia ou da cidade onde habitam.
Que pretendo eu com este arrazoado, colhido hoje, ao longo do dia? Acabar com as celebrações? Fechar as igrejas?... De modo nenhum! A nossa está aberta todo o dia. O que pretendo, aliás, o que proponho é que se faça uma reflexão séria e consistente sobre a nova paisagem que trouxe ao mundo o ‘Coronavírus”, o pano de um novo cenário sócio-económico-cultural que Sua Invisível Majestade veio abrir. Também (sobretudo, direi) no âmbito religioso, ou seja, na espiritualidade do Homem do Século XXI. Ou será que os responsáveis verão como um mero acaso o tufão que apareceu e varreu o planeta, precisamente  neste primeiro quartel do século XXI?!
Pelo muito que este tema tem por contar, remeto para o meu anterior ‘blog’, onde o grande cientista e teólogo Teilhard de Chardin traça o arco-íris do futuro, a ponte entre o Deus tradicional da Revelação e o Deus “novo” da Evolução.
E se o Cristianismo e os seus corifeus não souberem interpretar  esta vaga poderosíssima que chegou à “nossa praia”, aproveitando, enquanto tempo oportuno, a liderança de um Homem, Visionário do Amanhã, como é Francisco Papa, tenhamos a certeza que a “Barca do Nazareno” corre o risco de naufragar ou, senão, encalhar entre  baixios de museu..
Navegar é preciso. E reinventar. Como escreveu Antero de Quental, “lançar o arco de uma nova ponte”.  Qual e como? Eis a questão. E a coragem também!

17.Mai.20
Martins Júnior
  

sexta-feira, 15 de maio de 2020

“AQUELE MAR DE VELAS QUE CONTAGIA OS NOSSOS SENTIDOS”…


                                                 

Vale um discurso - e mais que um discurso – vale um tratado de teologia “ascética e mística” o lamento, em tom exclamativo, que o jornalista, em directo, debitava desde Fátima na noite de 12 para 13 de Maio de 2020 : “Hoje, já não há aquele mar…”
         E antes que complete o discurso directo, direi que no dentro mais dentro do seu conteúdo assenta, serena e austera, a sombra de um juiz que nos interpela a todos, sobretudo os crentes: ”Que é que aprendeste  com esta pandemia?... Santuários vazios, basílicas órfãs, a Praça de Pedro em Roma e a Cova da Iria, tristemente desertas, as igrejas fechadas, almas sem corpos e corpos sem almas… Que tipos ou  modos de religião queres tu?”…
         O caso não cabe neste curto espaço, nem num manual, nem numa enciclopédia. Por isso, hoje ficar-me-ei, entre inquieto e absorto, como Platão preso à caverna onde  as incógnitas fundamentais perpassam diante de mim como imagens impertinentes que perseguem todo o viandante dos caminhos da existência. Porque, se  algo de novo (ou diverso, ou traumático, ou didáctico e revelador) trouxe ao mundo este “bicho extraterrestre”, desde um novo olhar sobre a vida, a ciência, os costumes, as idiossincrasias, a economia - impõe-se no mais alto e no mais profundo de cada ser pensante esta veemente “chicotada” : “E a Religião não aprendeu nada com isto?... A Igreja não lê nenhum ‘sinal dos tempos’ neste coronavírus que veio abalar o presente e o futuro?... Continuarão ‘analfabetos’ os visionários/mensageiros oficiais da Fé?”…
         Volto ao “mar de velas que contagia os nossos sentidos”.  O cronista de serviço tocou no cerne da questão: O mar, as velas, o contágio e, acima de tudo, os sentidos. Efeito Perfeito! Todos os ingredientes para subir ao sétimo céu da mística pelos degraus ascéticos de um lume etéreo… Fosse numa noite romântica, fosse num concerto de pop-music, fosse numa ‘clausura’ da mais refinada espiritualidade! O cenário é estimulante, excitante, poderoso. Porque sensitivo. Contagia os sentidos.
         Uma religiosidade sensitiva, teimosamente emocional. Ela existe, aliás, sempre existiu. Descreve-a exuberantemente o nosso Eça, quando retrata a psicologia  devotamente doentia da esposa de Afonso da Maia, em Londres:
“A triste senhora continuava a choramingar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira... Foi necessário calmá-la… Voltaram a Lisboa… a casa tinha um bafio de sacristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha”…(“Os Maias”).
         É esta a Igreja que queremos, sensitiva, passional, polvilhada de incenso e salpicada pelo mar de pavios acesos?... Continuaremos a tratar Maria, Mãe de Jesus, como “uma senhora que faz favores a baixo custo”? -  palavras corajosas do Papa Francisco em Fátima, no centenário, 2017.
         Persistiremos no pietismo retardatário e, nalguns casos, idolátrico e farisaico de certa linguagem gestual do culto?... Serão as igrejas fechadas o abismo onde a Fé afundar-se-á, como Pedro se sentiu naufragar e a quem, por isso, o Mestre censurou?... Assentará a nossa crença nos rituais sumptuosos da religião-espectáculo?
         Que aprendemos nós com o ‘Convid-19´?...
Se todo o mundo ganhou um novo olhar sobre a realidade, será a Igreja a única a desaprender e a marcar passo? Perderá o Magistério esta oportunidade histórica de purificar a sua visão teológico-escatológica da Fé e do Universo?
         Muitas outras perguntas e, decerto, muitas respostas encontraremos nós, em processo de corajosa maiêutica, sobre o vasto mundo em que mergulham e, tantas vezes, vegetam as nossas crenças. Tenhamos a ousadia de aprofundar o nosso código de valores, supostamente religiosos.
         Cito, entre outras, as “descobertas” do eminente Sábio e Crente Teilhard de Chardin:
“Enquanto – mediante uma Cristologia renovada, cujos elementos estão todos nas nossas mãos – a Igreja não resolver o conflito aparente desde já aberto entre o Deus tradicional da Revelação e o Deus “novo” da Evolução, o Cristianismo diminuirá de sedução e conversão. É sempre o antagonismo entre  um Deus evolutivo Em-Frente e um Deus transcendente Em-Cima que o Cristianismo apresenta à nossa adoração”. (“Ce que le monde attend en ce moment de l’Église de Dieu”- 1952).
Sem nunca terminar, basta apenas perguntar: Quando é que gravaremos de vez no nosso consciente latente activo o que disse o Mestre à Samaritana de Sicar:
“Mulher, afianço-te que nem neste monte nem em Jerusalém se adora o Deus verdadeiro. Porque Ele só aceita adoradores em espírito e verdade”!  (Jo.4, 21-24).
15.Mai.20
Martins Júnior