domingo, 31 de maio de 2020

QUATRO BANDEIRAS QUE MOSTRAM E ESCONDEM O “DIVINO”


                                                     

Nunca o abstracto coabitou tão perto com o concreto. Nunca as sombras conviveram tão embrulhadas na luz. E nunca a matéria esteve tão consubstanciada com o espírito. De tal forma que não chega a saber-se onde acabam as sombras, o corpo concreto, a matéria e onde começam a luz, o abstracto, o espírito.
Refiro-me à osmose quase perfeita entre os dois opostos ou, mais explicitamente, entre o sagrado e o profano, entre o divino e o humano. Isto verifica-se, precisamente, hoje,  Festa do Espírito Santo, de cujos conteúdos fiz eco durante todos os “dias ímpares”  da semana transacta. Vou terminar, também hoje, aquilo que não tem fim - ou não deveria tê-lo.
O interesse da questão reside nos diversos figurinos com que a tradição crente vestiu um Ser supra, infinitamente supra-terrestre: O Espírito de Deus! Perante os episódios descritos nos três últimos blog’s, fica evidente uma estranha mestiçagem entre o infinitamente incorpóreo e o mais supinamente rasteiro, a roçar e ultrapassar o ridículo. No correr de muitos séculos, a devoção ao Espírito esteve empacotada, senão mesmo desbragada, em manifestações completamente contrastantes com o seu original, a sua essência. Eles eram folias e abusos, eles eram encenações grotescas simulando megalomanias imperiais à mistura com solenes pendões vermelhos e, sem faltar, camufladas extorsões pias do ‘vil metal’.
Trata-se de um sério study case (para usar a designação corrente) o qual, não cabendo nos estreitos limites deste escrito, tentarei sintetizar, após prolongada reflexão sobre o caso, sendo certo que tudo quanto se possa explanar cai sempre sob a alçada da vulgarmente designada “religiosidade popular”.
Como síntese que é, monitorizarei em quatro alíneas genéricas a interpretação ou anatomia deste composto híbrido da devoção ao “Divino Espírito” e da sua arreigada implantação em Portugal, sobretudo na Madeira e Porto Santo. Ei-las, como quatro estandartes que mostram e, paradoxalmente, escondem o “Divino”:
1º - A condição de dependência/contingência inata ao ser humano, em virtude da qual obriga-o, como náufrago abandonado em ilha deserta, a voltar-se para o Alto, a pedir socorro. E quanto mais abstracta for a ‘entidade seguradora’, maior o clímax de confiança por parte do impetrante. Embora transversal a todos os patronos e a todas aras, a petição endereçada  ao Espírito invisível, intocável e soberano ganha uma extensão maior e mais duradoura.
2º - A fome e sede de alegria, como lenitivo ou catarse natural ao caminhante nos desertos da vida, mormente ao cristão moldado nos estigmas do seu Crucificado. É preciso inventar oásis de conforto e praças da canção adequadas à mentalidade de cada aglomerado populacional. Cada qual cria o seu estilo.
3º - A cumplicidade do Sagrado. A diversão (sempre os resquícios de uma vã pedagogia cristã) impele o crente para um vago sentimento de culpabilidade, se se aproximar das (muitas vezes, inexistentes) linhas vermelhas. Aí, se o mesmo crente descobrir (ou fabricar) um suposto “habeas corpus”,  isto é, uma sensação de que a Entidade Sagrada  está de acordo e também se diverte com os machetes, os bailado, as folias e até perdoa  os excessos “em louvor do Divino” – então aí todas  as inibições somem-se como por encanto e  as demasias abrem os cordões à bolsa. Define-o bem Miguel Real: “O espectáculo barroco, exuberante, copioso, ludicamente excessivo, torna-se assim, a única categoria estética capaz de mostrar o deus escondido, de intermediar o deus silencioso. Redunda no  excesso e na desproporção. Manifesta o drama do desequilíbrio  da razão”.
4º - A nostalgia do “Quinto Império”. É este um dos aspectos mais secretos, porque imperceptíveis à multidão, mas (segundo os investigadores) sedimentados no inconsciente colectivo do povo português.
Voltando ao figurino cultual do Espírito Santo, notamos toda uma nomenclatura e uma cenografia tendencialmente monárquicas: o Imperador, os Reis, as Damas da Corte, os Pajens, o Marechal, a Coroa, as Bandeiras e os Pendões. Não esqueçamos que a saga devocional ao Espírito foi iniciativa da Rainha Santa Isabel e seu marido D. Dinis, desde Alenquer. Outrossim, na Madeira, foram  Zargo e o fidalgo Esmeraldo os construtores dos primeiros templos dedicados ao Espírito Santo. Leiamos agora, o nosso filósofo Agostinho da Silva: “O messianismo, filosofia de exilados e infelizes, mas também de forte afirmação espiritual, tem-se revelado uma das persistentes  expressões do espírito português, desde Os Lusíadas, assumindo várias formas, uma das quais foi o sebastianismo propriamente dito”. E Miguel Real acrescenta: “Agostinho da Silva defende que a introdução do culto do Espírito Santo é o símbolo do futuro reinado do amor universal, que rapidamente se generalizaria entre as populações como celebração de festa do futuro através da entronização do menino como Imperador do Mundo, o bodo geral e a abertura  dos portões das prisões. Entende-se agora muito bem que o Português tenha tido uma paixão, não pelo previsível Pai ou previsível Filho, mas por aquela coisa, aquela pomba errante, que vai para onde quer, como o português”…
Já vai longa esta síntese. Talvez possa desenvolvê-la noutra reflexão, porque a questão não é tão romântica ou superficial como se possa imaginar. Génios do pensamento luso, como o Padre António Vieira e Fernando Pessoa revelaram-se acérrimos defensores de Portugal à cabeça do Quinto Império. Messianismos hoje completamente fora do léxico político internacional, mas que deixaram arquétipos no subconsciente latente de um povo, mais a mais injectado por inconfessados interesses de regimes ditatoriais, não muito distantes de nós.
É nesta órbita que se situa toda a teatralidade esfuziante do chamado “Espírito Santo” na Madeira e Porto Santo. No entanto, dando de barato todo o folclore, superstições, foguetórios, danças e andanças “em louvor do Divino” e consideradas as quatro alíneas descritas, é legítimo e até imperativo apelar ao discernimento e à sã pedagogia teológica para separar o trigo do joio e tratar com dignidade os rituais que a merecem.
A este propósito, cito dois fiéis intérpretes da ortodoxia em Portugal, o Padre Joaquim Alves Correia e Frei Bento Domingues, ambos unânimes nesta judiciosa observação: “A religião dos portugueses não é só uma compensação imaginária de uma frustração, como alguns pretendem. Temos também uma imaginária compensação da falta de religião”.    
          
  31.Mai-01.Jun-20
Martins Júnior

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