quarta-feira, 27 de maio de 2020

“CLERO, NOBREZA E POVO NO BAILE DO DIVINO ESPIRITO SANTO”…


                                              

Sempre me interessou a anatomia das crenças, a forma e o fundo, o coração e a pele, por outras palavras, a ideia e o símbolo. Mas, se sempre esta dicotomia perseguiu os meus passos, muito mais nesta que considero providencial conjuntura, em que foi superiormente e dogmaticamente decretada greve geral às igrejas. É o que se vê: os templos quase vazios, mesmo quando é permitida a ocupação parcial das instalações. Para o comum dos chamados “fiéis observantes” é uma mágoa igual ao toque a finados. Insere-se neste luto e com notória estranheza a amputação das vistosas e fartas “Visitas do Espírito Santo”, que teriam o seu ponto alto nesta semana que antecede o Pentecostes. Tanto para os devotos como para as hierarquias, representa um pesado ‘deficit’: naqueles, de devoção,  folclore e alegria; nestas, de baixa nas finanças da comissão fabriqueira, assim designada nos cânones eclesiásticos.
Mesmo pressupondo a indiferença generalizada que o tema suscita, elegi como denominador comum de toda a semana  um esboço de estudo sócio-antropológico deste movimento buliçoso que faz dançar, de lés a lés, as nossas ilhas de Madeira e Porto Santo. No escrito anterior rememorei, em verso co-produzido pela população onde vivo, a encenação de tais visitas, em cujo conteúdo fica bem ao rubro a fusão entre o material e o imaterial, a divertida invasão, sem apelo nem agravo, do profano sobre o sagrado. Digo profano, mas mandam certos factos dizer: a deturpação do espírito pelos instintos da carne.
Sem desvalorizar de modo algum o empenho e a alegria espontânea que as pessoas põem no asseio das casas e dos caminhos por onde passarão as bandeiras ou “insígnias”, os rituais da praxe ufanam-se em ostentar abastança, mesas cheias, copos a rodos, sobretudo os envelopes tripartidos  (um para o padre, outro para a igreja e um terceiro para a festa do Espírito Santo) não faltando ainda a arrematação das ofertas, novamente mexida e não menos regada. Eram frequentes os abusos, chegando-se ao ponto de serem proibidos certos usos e costumes.
Por exemplo, nas “Ilhas de Zargo”, obra do ilustrado historiador madeirense Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, lê-se expressamente que “na Madeira, excedeu-se essa folgança e luzimento com tantos desmandos e abusos, que mereceram a intervenção do Governador Civil, porque as chamadas esmolas que se extorquiam por sortes de grande valor, os sumptuosos teatros púbicos que se erigiam, as competências de luxo neles,  as gulas, as ebriedades e as demasias que até à noite do Espírito Santo se cometiam e até a concorrência de ambos os sexos que, em noites sucessivas, vinham por entre sombras com muitas ofensas a Deus… tudo isto foi regulado com a proibição”. Noutra altura, foi a própria autoridade eclesiástica, o Bispo D. Manuel Agostinho Barreto, que “por provisão diocesana, restringiu as insígnias das visitas domiciliárias apenas à Bandeira e ao Pendão, com o fim se evitarem despesas, irreverências e abusos, exigindo ainda  o exame das músicas e dos cantores desses actos”, o que manifestamente evidencia os deslizes chocarreiros, senão mesmo brejeiros, a que tais visitas se prestavam, sempre “em honra do Divino Espírito Santo”.
Mas não só na Madeira. Fortunato de Almeida, na sua monumental e única “História da Igreja em Portugal”, em quatro volumes, descreve o aparatoso cortejo da Festa, em que “desfilava o Imperador, assistido de dois  Reis,  quatro Pagens, que traziam as coroas, uma delas dada pela própria rainha Santa Isabel, e acompanhados da nobreza e do povo... Duas donzelas honestas acompanhavam o Imperador e dançavam durante todo o préstito, por isso se lhes dava dote para o casamento. No fim, havia folias e bailes para os nobres e para o povo”.
“Nos tempos modernos – continua Fortunato de Almeida – o Imperador era um menino, cognominado de bispo inocente, porque vestiam-no com as vestes e insígnias  episcopais, governava o clero até ao dia seguintes, visitava as paróquias como se fora o prelado da diocese, deitava bênção, etc.. Era uma folia, de que o povo ria e que afinal foi proibida por diversos concílios”.(Op.citada, II vol. pg.556-557).
Ridicule, mais charmant – poderíamos, aqui também, classificar estes episódios que têm tanto de ridículo como de engraçado, talvez ingénuo e encantador,  aos nossos olhos. Mas a verdade é que eles existiram, há cem, duzentos anos. E ainda persistem,  resquícios mitigados, por certo, mas portadores dos mesmos estereótipos sócio-antropológicos. Seja em Alenquer, seja em Viseu, seja nas Ilhas, seja em Alcântara do Brasil, como documenta a foto.
É a pergunta que fica: O que estará, de mais íntimo e estrutural, pegado ao osso e ao coração da devoção que o povo nutre pelo Espírito Santo? Ontem e hoje?! … Ou, numa visão mais ampla e naturalmente holística: Quais os alicerces do edifício a que chamamos a “Nossa Religião?”. Por outras palavras: E a pandemia, será ela capaz  de  abalar esses alicerces?
Porque, em terras do Porto Santo e na Madeira, experimentei no terreno os vestígios, ao menos parciais, de quanto foi acima narrado, continuarei no próximo “dia ímpar” a incursão sobre este mesmo tema.

27.Mai.20
Martins Júnior
  
  

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