sábado, 9 de maio de 2020

“JOÃO, EU VI-TE NASCER”!

                                                                         

O Velho Continente  – A Europa Unida – faz hoje 70 anos. E o João faz 50. Por muito alta e nobre que  seja  a  rainha e madre Europa – e  por muito humilde e rasteiro se afigure o operário João – hoje vou colocá-lo no vértice do Dia Ímpar, Os dois filhos,  bandolim e violão da nossa Tuna, brindaram o pai com sonoros parabéns.
Telefonei-lhe, manifestei-lhe amistosas congratulações  e não me contive: “João, eu vi-te nascer”.
Ele entendeu a mensagem e, comigo, sentiu-a no mais íntimo de si mesmo. Porque,  anos depois, é que lhe  contaram a noite em que veio ao mundo
Passava das 23 horas, quando bateram-me à porta “Venha depressa, sr. padre, que a Rosa está morrendo”. Lanterna na mão dos mensageiros, aos tombos por veredas e ribeiros, chegámos lá acima ao alto da Nóia. Já à distância os gritos de dor e pranto prenunciavam o pior. Entrei. Estarreci. Nem queria acreditar. Uma jovem mãe estendida, já morta, a cama esvaída em sangue e duas crianças renascidas, uma de cada lado: o João e a Rosinha.
Estava consumada a tragédia. O baque do coração lembrava-me o mesmo que senti quando no norte de Moçambique levantei do chão da picada  onze jovens militares do meu batalhão, vítimas de mina anti-carro.
A Rosa Perestrelo Nóia morrera. Por não haver assistência médica, nem estrada por onde circulasse uma ambulância…
Voltando a casa pelos mesmos cabocos, com o sentimento irreprimível de um derrotado,  o pavio da lanterna de rega incendiou dentro de mim um montão de chamas onde se misturavam lágrimas, desespero e gritos de revolta. “Porquê, Senhor? Não por Vós, mas pela incúria dos homens, pela desumanidade dos governantes”!  Só sei que, ao abrir da manhã, sem conseguir fechar os olhos da noite, decidi: “É aqui que devo ficar. Não posso voltar as costas a um povo que sofre, sem água potável, sem estrada e sem luz”. No ar da Europa Unida, ainda vogavam os acordes do Hino da Alegria, concebido por Beethoven. Aqui, porém, na Ribeira Seca, saíam  da terra e dos corações as mágoas inconsoláveis de uma pesada marcha fúnebre…
No entanto, a história fez a sua marcha. Os irmãos gémeos cresceram, lutaram pela vida, construíram a felicidade dos seus lares, o João na Madeira, a Rosinha  no estrangeiro. A Europa fez seu rumo entre expectativas e percalços.
E a Ribeira Seca também. Não foi fácil. E não será exagerado subscrever aqui o velho adágio: “O que o povo conseguiu foi a poder de sangue, suor e lágrimas”. Antes da alvorada de Abril e depois dela.
É esta também uma “Nau Catrineta” que tem muito que contar”…
Por mais incrível que pareça, a Igreja hierárquica diocesana proibiu a venda de hóstias à paróquia da Ribeira Seca, desde 1974. Onze anos depois, em 1985, o “Coronavirato” composto pelo Paço Episcopal-Quinta Vigia mandou 70 polícias fecharem a igreja, construída exclusivamente com  os sacrifícios desta comunidade. E – fez ontem dez anos! – o mesmo “Coronavirato” conluiado impediu que a Imagem Peregrina (em visita a todas as paróquias da Madeira) entrasse no adro e igreja da Ribeira Seca.
E muito mais teria de contar a “Nau Catrineta” desta gente que ainda hoje sobre os estigmas da marginalização e da unilateralidade acintosa dos poderes civil e religioso que até há pouco tempo minaram a ilha de notória e intolerável autocracia. Tudo isto, enquanto na Europa se construíam pontes, connosco armavam velhos muros da vergonha.
Felizmente, o Povo venceu! E continua a sua marcha. Transformou em música e coreografia as suas mágoas que, com a força do tempo e o garante da razão, desabrocharam em flores de esperança no futuro.
Como os 50 anos do João!
Como os 60 anos da Ribeira Seca!
Comos os 70 anos da Europa!

09.Mai.20 -  Dia da Europa
Martins Júnior



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