sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

UM PEQUENO PASSO PARA PORTUGAL E UM GRANDE PASSO PARA OS PORTUGUESES!


                 
   
Foi em 1891.
Janeiro sucumbia. Era o último respiro de vida.
Mas foi o primeiro do Dia Novo de 1910.
A proclamação da República no alto da varanda do Município do Porto foi o passo pioneiro para a definitiva proclamação na varanda do Município de Lisboa. Embora sufocada, dela é que  irrompeu o gérmen da Vitória.
Um pequeno passo na oito vezes secular história do Portugal de então, mas um grande e decisivo passo para os portugueses. No ocaso de Janeiro e do século XIX surgia, enfim, a bandeira verde rubra na alvorada do século XX.
Os heróis vencidos em 31 de Janeiro reincarnaram, 19 anos depois, nos heróis vencedores do 5 de Outubro.
Nunca nada está perdido. O fracasso de hoje será o sucesso de amanhã! 

31.Jan.20
Martins Júnior


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

“PARA QUE ISTO NUNCA MAIS ACONTEÇA”


                                                 

“A sociedade inteira há-de comprometer-se em preservar a memória do genocídio nazi e assegurar que nada de semelhante jamais venha a  acontecer”
Estas as palavras solenes,  saídas das vozes esgotadas pela velhice, mas emocionadas pela memória dos ainda sobreviventes ao Holocausto na cerimónia do 75º aniversário da libertação de Auschwitz! Foi o momento alto das comemorações a que assistiram representantes de cinquenta estados, entre os quais Filipe VI e Letícia, reis de Espanha e o presidente da Polónia Andrejez Duda  que exaltou o heroísmo dos soldados polacos, pois que “foram eles que combateram os invasores alemães, desde o primeiro ao último dia da guerra”. Uma cerimónia que terminou ao cair do dia, “quando o campo se enchia de uma triste tonalidade de bruma, com uma melancólica melodia de violino ecoando na paisagem”, refere  Jacinto Antón, jornalista do El País.
Por todo o mundo se fez eco do memorável e luminoso “Dia D”, de 1945.  Entretanto o jornal Le Monde preferiu destacar o lado negro superveniente, as ameaças cada vez mais espessas que persistem, paradoxalmente, em “branquear” o Holocausto, passando-lhe uma esponja e, daí, abrindo caminho para novos atentados contra a humanidade, a partir de pequenos gestos e subtis manobras do normal quotidiano. Entre esta premeditada série de manobras, figura o crescente número de intérpretes e guias turísticos que, por influência de determinadas ideologias políticas, nomeadamente a extrema-direita Alternativa para a  Alemanha (AdF), informam os milhares de visitantes com execráveis “provocações” (na opinião do historiador Jens-Christian Wagner, actual responsável pelo campo de Bergen-Belsen) como a que se segue: “Se os franceses têm o direito de orgulhar-se de Napoleão e os ingleses de Churchill, não existe nenhuma razão lógica para não nos orgulharmos da perfomance dos nossos soldados alemães na segunda guerra mundial”.
Incrível e muito mais grave quando os visitantes são alunos das escolas, acompanhados pelos respectivos professores! É o discurso revisionista de 1940, retomado agora com nova versão em países onde o anti-semitismo e o discurso anti-migração  vão ganhando força. Esta orquestrada campanha denominada negacionismo (negação do Holocausto) atinge, pasme-se, altos dignitários da hierarquia eclesiástica.
Ora é exactamente contra esta corrente que se torna urgente lutar. Lutar mesmo! “Para que jamais volte a acontecer”. Transcrevo o início do breve poema que escrevi anteontem, dia 27, Dia da Libertação de Auschwitz; “De diamante puro e duro/ Hoje são as últimas cinzas de Auschwitz/ Mas não morreram com elas/  As insaciáveis  goelas/ Do forno crematório”.
E porque são da mesma carne e dos mesmos ossos os facínoras de ontem e de hoje, ditadores, carrascos estranguladores da humanidade, por isso é que se impõe a vigilância e a luta. Refiro  o eloquente pré-aviso do já citadohistoriador Jen-Christian Wagner, o homem actualmente responsável pelo Bergen-Belsen, antigo campo de concentração: “Aos visitantes não basta apenas lamentar as vítimas do nazismo. É preciso ir mais longe. Porque é mais fácil chorar as vítimas do que interrogarmo-nos sobre a fábrica de carrascos. Ora, é com esta espécie de reflexão que teremos mais eficácia”.
Fábrica de carrascos! Elas aí se escondem e disfarçam como cogumelos infestantes, gafos de bactérias invisíveis: nos partidos, nas assembleias, na banca, na droga, nas escolas e até nas igrejas, como o bispo britânico Richard Williamson.  Uns, carrascos das mentalidades; outros, operacionais no terreno.  Contra essa onda tribal é preciso fazer frente! Sob pena de sermos engolidos no turbilhão do forno crematório. E o único antídoto contra essa vaga bacteriana é o Povo, a sua mentalidade, a sua palavra, a sua denúncia sem medo. Destruamos o medo, porque o medo mata.
Escrevo estas palavras e aponho-lhe dois marcos justificadamente proclamatórios. Primeiro, o título onomástico do novo avião de bandeira nacional: JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, o poeta de peito aberto, lusitano de gema, que um dia cantou “Ninguém mais há-de fechar as portas que Abril abriu”! Justíssima homenagem a este novo e  outro “General sem medo”. O segundo, um outro “Capitão de Mar e Guerra”, “Comodoro de Aquém e Além-Mar”, o jovem RUI PINTO, cujo talento tem desbravado os antros da corrupção e desmascarado os monstros do capitalismo internacional devoradores do sangue, do corpo e da alma do Povo – “Povo que trabalha / E faz o Mundo Novo”!

29.Jan.20
Martins Júnior
  


terça-feira, 28 de janeiro de 2020

AUSCHWITZ-ANO 75




De diamante puro e duro
São hoje as últimas cinzas de Auschwitz
Mas não morreram com elas
As insaciáveis goelas
Do forno crematório

Nem têm princípio nem fim
As chamas e o cutelo de Caim
Não mais secaram as fauces do antropófago Minotauro
Nem se apagaram as fogueiras dos sacros autos

Para cevar a raiva e a sede
Os humanos tribais em jarros lautos
Chamam de novo o lume  de Auschwitz
Dão-lhe outro nome e outra cor
Rompem o céu matam-lhe o fulgor
Cavam secretos subterrâneos
Fundam infernos mediterrâneos
E sempre o mesmo furor… e a mesma dor

Saberá quem e não sabe ninguém
Se dentro de nós também
Em aparente e sereno dormitório
Não restarão sequelas
Das intermináveis goelas
Desse monstro crematório…

27.Jan.20
Martins Júnior

sábado, 25 de janeiro de 2020

OS HOMENS NÃO INVENTARAM OS DEUSES, MAS FIZERAM AS RELIGIÕES

      Aponho-lhe o subtítulo declarativo: Leitura breve do divisionismo religioso. E justifico a opção pelo facto de neste dia 25 de Janeiro ocorrer o encerramento  do já centenário “Oitavário pela Unidade das Igrejas”, uma iniciativa do pastor anglicano Paul Wattson, em 1908, logo partilhada pelo Papa de Roma.
         É de fácil narrativa o historial do “Oitavário”: Confrontado com a manta de retalhos das mais diversificadas religiões, o anglo-americano Wattson decidiu lutar contra este atentado à integridade do seu Fundador, Jesus de Nazaré, “O Nazareno”. Grandes progressos, embora de pequenos passos, conheceu o fenómeno religioso, denominado Cristianismo. No entanto, continuaram as divergências (nalguns locais transformaram-se em discórdias acesas) arvoraram-se supremacias, orgulhos, dogmatismos exacerbados, multiplicaram-se as seitas e templos, salpicadas de   celebrações, sessões e orações conjuntas, permutas ‘diplomáticas’ de visitas segmentadas, ora a um, ora a outro templo das confissões em rede…aparente.
         Sublinho “rede aparente” e mantenho. Porque ajustando o microscópio da ‘razão prática’  lê-se, vê-se a olho-nu onde radica o escândalo do divisionismo religioso – precisamente nisto: os corifeus, donos ou capatazes das religiões pretendem sobrepor-se ao seu Fundador. São eles que expõem a Constituição do “seu” reino. São eles que impõem aos ombros dos outros fardos e sanções que nem com um dedo querem tocar. São eles que moldam usos e costumes sempre ao serviço dos “seus” interesses classistas.
Garantem a segurança dos “seus” interesses, lançam os alicerces dos “seus” tribunais e tipificam os ‘crimes’ e as penas, talhadas à imagem dos Códigos de Processo Penal. E assim se contrói um “reino”. De imediato,  inscrevem no alçado frontal – “este é o Reino de Deus” ou “A Porta do Céu” ou O Império de Cristo”,  com trono e coroa, ceptro e anel, palácio e guarda.
         E aqui começam as dissenções, os ‘ciúmes’ e as rivalidades entre os auto-nomeados representantes do “Chefe” (desculpem a crueza), do Pastor, da Divindade. Matam a alma da religião mas engrossam o corpo, arregimentam o “seu” castelo, enchem-se os cofres e os paióis. Acontece o mesmo nos negócios e agências do mundo:  quando o procurador quer ser mais que o Outorgante. Ou o aprendiz superior ao Mestre. Ou o director do club quando pretende “jogar” para fora mais que os atletas em campo. Ou, ainda, como se a cópia quisesse suplantar o original.
         Tenho para mim que se o verdadeiro Pastor e Mestre voltasse destruiria tantas bancas de cúpulas ditas religiosas, destituiria liminarmente tantos  vendilhões do Seu Nome!  E ao Povo verdadeiramente crente diria o mesmo que à Samaritana confidenciou: ”O Meu Pai só aceita adoradores que o sejam em Espírito e Verdade” (Jo.4,1-24).
Em termos directos e, talvez, sensivelmente contundentes, tentei traduzir o que ao longo dos séculos tem sido expresso por autênticos arautos do Espírito, profetas, teólogos, ascetas e místicos. No entanto, por todos aconselho a Primeira Carta de Paulo que será lida amanhã em todos os templos: (1 Cor.1, 10-13.17).
Em Espírito e Verdade!

25.Jan.20 
       Martins Júnior               

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

62 ANOS DE SAUDADE E 36 QUARTOS PARA UM SÓ INQUILINO – A DESERTIFICAÇÃO NA IGREJA


                                                         

Tem aquele gostinho agridoce da saudade e, no mesmo travo, um fio de fel da desilusão escorrendo pelos 34 degraus das escadas do velho Hotel Bela Vista, à Rua do Jasmineiro, Funchal.
Será amanhã o último dia das Jornadas da Actualização do Clero realizadas no Seminário Maior do Funchal. Quanto aos conteúdos - em que participam elementos da Igreja e personalidades da vida social e política regional -  dispenso-me de comentá-los, por hoje. Fixo-me apenas na contemplação daquela velha casa, onde se formaram centenas, talvez milhares, de jovens madeirenses que hoje ocupam lugares de charneira no panorama regional, uns como padres diocesanos, outros nas mais diversas esferas  profissionais e institucionais.
O edifício amplo e de excelente implantação numa zona privilegiada da capital, servido pela envolvente de árvores seculares, desfrutando de uma soberba captação do corpo e da baía da cidade, foi adquirido pela Diocese nos finais da década de 50 do século passado. Até aí, tinha sido uma das mais cobiçadas unidades  hoteleiras da Madeira.
A partir de 1958, instalaram-se os programas e respectiva logística dos Cursos de Filosofia e Teologia do Seminário Maior do Funchal, fase imediatamente mais próxima da Ordenação Presbiteral,  Pertenci ao grupo instalador, isto é, aos alunos de Teologia, que “inauguraram” o prédio. Era uma casa senhorial, a um tempo recatada e buliçosa, amena e dinâmica, onde, além dos estudos clássicos, desenvolveram-se iniciativas culturais de meritória craveira, quer no desporto, na música, no teatro. Lembro-me de termos representado, entre outras, a céu aberto por entre as vetustas árvores de cânfora, as cenas do poema “Finis Patriae”, de Guerra Junqueiro. Memoráveis eram também os “Fogos de Conselho” encenados pelos Agrupamentos do Corpo Nacional de Escutas da Madeira. Em suma, uma mansão de gratas recordações!
Para curtir as saudades, subi os 34 degraus que levavam ao quarto nº 33, onde fui inquilino durante quatro anos. Lobriguei, ainda, as dependências contíguas: uma sala desafogada, um guarda-fato, uma mesa de trabalho, uma pequena estante, uma cama e um lavatório. Ocorreu-me à lembrança o poema “Colegial” de José Régio - “Esta mesa onde estudo e me estudo”… Tudo na mesma. Com uma diferença: Tudo vazio! Perguntei a um dos padres dirigentes o porquê daqueles “desertos” (que eram antigamente “oásis” vívidos) e a resposta saiu espontânea: “Sabe, é que só temos um aluno aqui no Seminário”!
Uma mágoa indescritível. Pese embora a circunstância de haver cerca de 8 a 10 jovens madeirenses candidatos ao sacerdócio na Universidade Católica de Lisboa, o certo é que pesa muito mais ver 35 quartos vazios e apenas 1, ao serviço do aluno único daquela casa. Proporcionalmente, o Seminário tem o dobro de reitores: dois reitores para um só aluno. Paradoxal!
                                                     

Tarefa ingente e não menos inquietante para o recente Prelado que recebeu das mãos dos seus três antecessores uma paupérrima herança, a que se junta um outro monumental edifício, o Seminário Menor, em Santa Luzia, hoje a desfazer-se irremediavelmente!  Quem, como eu,  ali viveu oito anos ininterruptos, não consegue ficar de olhos enxutos perante tamanha degradação. Para mim, considero que a subserviência dos bispos pós-25 de Abril/74 à política governativa regional (em troca de igrejas e casas paroquiais construídas pelo governo) arrastou a Dioceses para o desprezo daquilo que lhe pertencia. Não só o património construído, mas (pior!) o depauperamento da autêntica vivência cristã, espelhada agora na tremenda desertificação vocacional. Não será, sem dúvida, a única causa da presente situação, mas seríamos nós ingénuos se não a contássemos, entre outras.
…”Melhor fora que a mandassem pràs alminhas”… Não direi o mesmo que a Amália disse da “casa de penhores”.  Mas que é um caso – pesado, espinhoso, intrigante – para o bispo e para a Diocese (o Povo Católico da Madeira), lá isso é! Quem ajuda a resolvê-lo?

23.Jan.20
Martins Júnior


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

QUEM MEXEU NO QUEIJO DO NOSSO ORÇAMENTO?


                                                   

Não passará, talvez, de um apelo inaudível ou de uma voz sem eco. Mas nem por isso deixarei de sair à rua e agitá-lo na praça pública. Refiro-me à apresentação, debate e aprovação do Plano e Orçamento para a Madeira e Porto Santo/2020, ora em curso no Parlamento Regional.
Partamos de uma premissa genérica, partilhada e propagandeada pelo vento que passa e entra nos ouvidos das pessoas, nas frinchas das janelas, nas prateleiras dos cafés e que, por muitas e variadas formas, diz mais ou menos isto: “Quem é que pode suportar os políticos, os discursos, as mentiras descaradas, as promessas esfarrapadas, quem os atura?... Não há pachorra!”.
Carradas de razão carregam esses ventos! Mas uma coisa é certa, além da qual não podemos ultrapassar: é essa gente que marca os nossos  destinos, o quanto se come, o como se veste, a casa, casebre ou apartamento onde se deve viver, as cartilhas e as notícias que podemos ler, enfim, são eles que estendem os carreiros e os carris por onde devem andar os nossos pés.
Mas há mais: fomos nós que os pusemos lá, somos nós que lhes emprestamos o microfone e a voz e somos nós que lhes oferecemos rádio, televisão, jornalistas e comentadores – um batalhão de serventes, alguns serventuários, cada qual com as suas orelhas, os seus aparos e as papilas gustativas do sabor e da cor das suas simpatias.
E para quê todo este teatro hemi-circular? Que ali fazem os actores e figurantes?... Mexem no nosso dinheiro, jogam “ao montinho”, pataco para aqui, pataco para acolá (não raro, ‘pataca a mim, a mim pataca’), estes comem carne e peixe, aqueles espinhas e ossos, tu comes o bolo-rei, aquele contenta-se com ‘o pão que o diabo amassou”, senão engoles pó e alcatrão.
Quando constatamos que é a nossa causa e o nosso mundo que estão em jogo, é caso para nos interpelarmos:  Será assim tão inútil, despiciendo, tão afónico ou inaudível aquele combate concêntrico na sala redonda?... De todo!
Para lá do garfo ou do navalhão com que mexem e cortam o “bolo” que é de todos, a minha mensagem tem por objectivo sensibilizar os constituintes pagantes do Orçamento (e esses somos nós!) para a forma como os ‘talhantes’ oficiais exercem a função: os instrumentos que usam, o como afiam ou desafiam as pontas da língua e a cárie dos dentes, a ‘literatura’ rasca ou erudita com que mimam os comparsas do lado, em último remate, como tratam o Povo que lhes deu o voto e, com ele,  poltrona, garganta, computador e gravata a preceito.
Sei que é impossível à imensa maioria da população seguir em directo, via rádio ou TV, todos os conteúdos da “Ordem de Trabalho”, mas desejável seria que tal acontecesse. Tal como o Voto, deveria ser um direito e um dever!... Permitam-me um desabafo, reforçado por décadas de experiência naquela Casa das Leis: Quantas vezes – muitas, muitas – perante atitudes de certos deputados em quem votaram certos aglomerados populacionais, dizia eu no meu íntimo: “Quem me dera que aqui estivessem essas pessoas! Tenho a certeza que nunca mais os escolheriam!”.
É pelo alheamento dos eleitores nos debates relevantes para a comunidade (o Plano e Orçamento/2020) que proliferam a inércia e, no limite oposto, os extremismos populistas, os oportunistas que descredibilizam a nobre missão política de, etimologicamente, ordenar, governar a cidade.
Parafraseando alguém, na voz de um deputado eleito estão os milhares de vozes que nele votaram. O meu respeito e homenagem a todos os que, na Maioria ou na Oposição, exercem dignamente o seu estatuto!

21.Jan.20
Martins Júnior    
   


domingo, 19 de janeiro de 2020

“RIDICULE, MAIS CHARMANT”


                                                        

Em fim de domingo faz bem e até serve para arejar não só o ambiente circundante mas também  o cérebro pensante de quem viveu em directo ou em diferido aquele coro canoro,  superpolifónico, inigualável, dos animais no anfiteatro exterior das igrejas, seguido do cortejo processional sempre com a mesma banda sonora, briosa e livre, desde os metálicos galos-palheiros até aos roncados e cavos carneiros atrás do santo protector, insensível a tão ruidosa manif.. Os felizardos, porque abençoados, bípedes e quadrúpedes faziam a publicidade dos seus dedicados proprietários, vestidos à domingueira para exibir os seus forçados “pupilos” de companhia.
   Dado o palco aos “homenageados”, demos a palavra aos donos, mais divertidos e orgulhosos que os próprios protagonistas domésticos:
“Como a gente, os animais também merecem a bênção de água benta”!
“Os bichos têm direito a ser benzidos, porque é a nossa tradição. E “Eu cá sou católica”.
“Eu vim de longe, porque na minha freguesia só dão missa, não deitam água benta ao meu cão”!
“Como nós, eles também têm o direito a ser baptizados. Para Deus lhes dar mais saúde, mais tempo de vida e mais juízo”. Esta do ´”mais juízo”,  é a cereja em cima do bolo!
Ridicule, mais charmant! – não me ocorre outro sublinhado, que nem chega a ser comentário…
E em que estaria pensando Santo Antão, do alto do seu andor, com aquele “jardim zoológico" ambulante atrás de si? …
Saberá o povo crente que o porquinho e os restantes animais que figuram aos pés do santo eremita representam os demónios que o atormentavam no deserto para onde ele fugiu, apavorado com as tentações mundanas que o perseguiam, noite e dia?...
Mas é tudo tão carinhoso, comovente, enternecedor. E o povo gosta…
Ridicule, mais charmant!

19.Jan.20
Martins Júnior    

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

UM PASSADO COM OLHOS DE FUTURO


Em algum tempo Campos Júnior deu à estampa um prestimoso romance a que deu o titulo: “Pedras Que Falam”. Do livro de Francisco Cantanhede deverá dizer-se que são páginas que falam (as páginas são corpos curvados sobre a terra, mas que resistem), a tinta negra é sangue de inocentes que sofrem (mas que gritam pelo seu lugar ao sol da liberdade) e todo o volume que nos cai nas mãos sabe à terra que o “Cavador”  desbrava. O volume traz-nos também a escura e cruel noite do fascismo salazarista e, sobretudo rasga os horizontes de uma nova madrugada através da leitura enquanto ciência,  informação e vida. Tanto basta para que a tarde de sábado, 18 de Janeiro, o povo libertado se sinta reproduzido e feliz na fruição do “Cavador Que Lia Livros No Tempo De Salazar”.
         Em nome do autor tomo a liberdade, o prazer e a responsabilidade de convidar todos quantos amam e constroem no seu habitat natural o Mundo Novo que está na palma das nossas mãos.

17.Jan.20
Martins Júnior

Hora - 17,30
 Local- Solar do Ribeirinho  


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

VENTOS SAUDAVEIS!


                                               
Privilégio – ocasional e gratuito, é certo mas é sempre um privilégio estar de perto dos promotores deste acontecimento notável. O jornal Le Fígaro e a editora La Fayard  descerraram ao mundo  o pano de cena que encobria aquilo que, para uns é um escândalo, para outros uma verdade libertadora, ou seja, a aparente polémica entre Papas, Cardeais, Secretários do Vaticano  acerca do celibato obrigatório, opcional ou excepcional dos eclesiásticos.
         Enquanto grande parte, talvez a maioria, dos comentadores se ocupa dos pormenores e adereços secundários desta “novela” limito-me a enaltecer o sumo precioso que se extrai deste episódio, volto a sublinhar, notável. Até que enfim, o debate aberto começa a ganhar o seu lugar ao sol numa  Igreja que se diz fraterna e democrata, mas na verdade não o é.
         Quando se vêem Papas, Cardeais, a “Ínclita Geração Vaticana” a divergir publicamente sobre questões consideradas intocáveis ao longo de séculos, aí está aberto o caminho custoso mas dignificante que todo o cristão tem direito a percorrer é em busca da Verdade. E para aqueles que vêem neste projecto galvanizador um motivo escandaloso de  guerras, então deverá citar-se o lapidar  veredicto  do Mestre: “penseis que  vim trazer a paz à terra; Não vim trazer paz, mas  espada.  Pois Eu vim para ser motivo de discórdia entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim os inimigos do homem serão os da sua própria familia (Lucas 10 34-36). Não admira, pois, que o mesmo cenário se repita entre Papas, Cardeais, Arcebispos e afins.
         O episódio presente já alguém o comparou aos preocupantes acontecimentos da Reforma e Contra-Reforma. Felizmente com uma diferença: hoje ninguém é Lutero para cair-lhe em cima a pena capital da excomunhão papal.
         Se “da discussão nasce a luz” a fortiori   da procura serena e corajosa da Verdade alcançar-se-ão as pistas seguras para chegar às fontes, isto é, o pensamento e à vivência do fundador do Cristianismo.

15.Jan.20
Martins Júnior





segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

REALIDADE OU FICÇÃO?


                                                  

Passados ‘Os Reis’ e queimados os últimos estalos da “Festa” e Ano Novo, é nesta semana que se entra definitivamente no curso do normal quotidiano: entra-se na sala de aulas, no estaleiro das obras, na ferrugem da oficina, no relvado dos estádios, enfim, a vida recomeça. E, no calendário litúrgico, entra-se (ou reentra-se) na nave dos templos, com a comemoração do Baptismo do Menino – que, afinal, já não era Menino, era um robusto exemplar de varão, aos 30 anos de idade. Em qualquer idade reentra-se na vida!... Por coincidência, neste início de 2020, têm-me ocorrido diversas “entradas”  no amplo convívio dos crentes: são os baptismos de crianças trazidas pelos pais e padrinhos à pia baptismal.
Pese embora não interessar – num primeiro olhar – a muita gente o assunto em causa, atrevo-me a dedicar esta semana a esse mesmo gesto iniciático, o Baptismo. Precisamente por ser inicial, direi, virgem, madrugador, esse primeiro passo está quase sempre rodeado (revestido, embrulhado) de uma atmosfera angelical, quase mítica, até mesmo romântica, em que o “maravilhoso cristão” (invocação de santos e arcanjos, óleos sacros, repetidos sinais-da-cruz) se mistura com o “maravilhoso pagão” ou profano (padrinhos, comadres e compadres, pulseirinhas, prendas muitas), movendo-se, pois, todo o acto sacramental num bulício de suave expectativa e regozijo sem nuvens.
Talvez por isso mesmo, no ambiente extasiante do templo fica diluído o tronco estruturante do acto, a razão e o escopo últimos do Baptismo, ou seja, a matrícula ou inscrição do neófito (criança ou adulto) na grande colectividade chamada Igreja Cristã e Católica. Aliás, outro significado não terá o ritual começado à porta do templo, com  o ingresso processional até à pia baptismal.
Tremendo passo este, o de tomar a decisão de optar por uma determinada (e não outra) ‘confissão religiosa”, credo, ideologia, código de vida!... Disse ‘tremendo passo’ para o titular do acto (o neófito), mas terei de corrigir para “temerário” este acto para os autores morais do mesmo. Por outras palavras: o titular do acto não foi consultado sobre tão decisiva opção. De todos os presentes, ele, o protagonista é o único que desconhece o que se está passando. É caso para perguntar: mais tarde, quando tiver discernimento, estará ele de acordo com a responsabilidade que pais e padrinhos estão a impor-lhe desde esse momento?...  Ninguém pode garanti-lo.
Responder-me-ão que, ao chegar a essa encruzilhada, a pessoa é livre de tomar a direcção que quiser, isto é, pode livremente mudar de opção, de religião. Direi, então, o que determina a Teologia Dogmática: o Sacramento do Baptismo imprime carácter em quem o recebe. Quer isto dizer, em termos práticos, a marca do Baptismo fica indelevelmente inalterada para toda a vida:  baptizada uma vez – baptizada para sempre!
São longas e nada ligeiras as virtualidades, os pesados corolários,  inclusos  nas teses expostas, o primeira dos quais seria a exigência da idade do discernimento ou livre arbítrio para receber-se o Baptismo. Não será motivo de escândalo para ninguém este eventual normativo se pensarmos que foi aos 30 anos que Jesus aderiu ao Baptismo de João Baptista no rio Jordão. Nas mesmas circunstâncias estão gradas figuras da hierarquia católica, como os canonizados doutores da Igreja: Basílio, Ambrósio, João Crisóstomo, Agostinho, que receberam o Baptismo na idade adulta. (R.Gerardi, in ‘Diccionario Teologico Enciclopédico’ Ed. Verbo Divino, Navarra, pag.103).
Por analogia com as procurações forenses, os pais – primeiros procuradores da criança – se, ao longo do seu crescimento, não a informarem e motivarem para os valores assumidos no Baptismo, deveria o Código da Consciência dizer-lhes que o dia da grande festa baptismal não passou de uma farsa, um embuste, talvez, um esfarrapado episódio de uma novela sem enredo nem conclusão.
O Baptismo é raiz e é tronco promissores de flores e frutos!

13.Jan.20
Martins Júnior

   

sábado, 11 de janeiro de 2020

PARA QUEM ATRAVESSOU A LINHA EQUATORIAL DO EXISTIR…


                          

Antes que abrissem os cravos de Abril
Nasceu em ti o Dia Novo, primeiro,
À luz terna do  Luar de Janeiro

Promessas mil o berço te embalara
Alados sonhos teceu teu enxoval
Um a um em tua pele de seda rara
Largaram asas em voo matinal
Ao ritmo cantante da agulha e do dedal

Foi um poema inteiro esse bordado
Rimas de Aquém e Além-mar encheram teu regaço
Entre Álvares Pequeno e Luís Vaz Sublimado
Inês de Castro, Vieira, Pessoa, o Presente e o Passado,
Todos uniste no mesmo canto e no mesmo abraço
Assim também cumpriste e cumpres Portugal
Sobre este solo, Machico,  da Epopeia Inicial

Feliz de  quem das tuas mãos
Recolhe estrelas de saber, oásis de conforto
Ao teu peito achando manso porto
No equatorial mar vasto que ora atravessas 
Coração-baía azul é o que tu és
Onda de luz dada ao mundo em Janeiro dia dez



Gostoso o terro que te produziu
Onde corre o sumo que os deuses seduziu
Inebriante como o ”50” não há nenhum
Saboroso e quente, porém,  só o “51”!

11.Jan.20
Martins Júnior

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

NA RESSACA…


                                                           

Escrevo em quinta-feira de Ano Novo. À minha volta, porém, tudo me diz que é quarta-feira, a das cinzas. Morreram as luzes da cidade, calou-se a sirene dos cruzeiros no porto, substituídos agora pelo engarrafamento automóvel com insultos e provocações à mistura, os transeuntes cabisbaixos, já não há “Boas Festas, um Santo Natal, um Feliz Ano”  para começar e acabar uma conversa ou um cumprimento, breve que seja. Parece que o fumo intenso que abafou a capital na noite primeira do ano tomou conta da gente, enegreceu o betão das estradas e o rosto dos passageiros. Enfim, Advento, Natal e Ano Novo – três dias de carnaval. Agora, cinzas e trabalho. Quarta-feira!?...
Enquanto não passa a “ressaca” e estamos ainda sonâmbulos diante do ano bissexto, apetece-me acordar toda a gente, pintando um outro arco-íris nas nuvens, escrevendo no alcatrão das estradas, nas tabuletas dos autocarros, em cada muro e na palma da mão de cada um de nós aquela palavra de ordem inspirada no famoso ponto forte do presidente John Kennedy aos americanos:

“NÃO ESPERES NEM PERGUNTES AO 2020 O QUE PODE FAZER POR TI. PERGUNTA, ANTES, O QUE É TU PODES FAZER PELO 2020 ?”.
09.Jan.2020
Martins Júnior    

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A GLÓRIA E O DRAMA DE CADA “NOVO ANO JUDICIAL”


                                                    

É sempre de uma sumptuosidade quase esmagadora a abertura de um “Novo Ano Judicial”. A de ontem, porém, revestiu-se de uma magnitude singular por haver-se realizado no histórico e majestoso Palácio da Ajuda, sede oficial da ‘entronização’ do Supremo Magistrado da Nação. O cenário, com ser belo e sublimado na cor do meio e na aura dos ‘convivas’, nem por isso deixa de ser pesado e taciturno, de ‘cortar à faca’ (em linguagem plebeia), tanto no passo grave dos titulares da Justiça ao subir a escadaria como na negritude das togas forenses que cobriam por inteiro o salão, apenas salpicadas pelas alvíssimas cãs dos venerandos desembargadores e conselheiros.
         Não menos enfáticos e grandíloquos foram os discursos proferidos, desde os representativos do poder judicial aos do poder político, todos em uníssono proclamando a dignidade da magistratura, a premente disponibilidade dos funcionários, a urgente necessidade de recursos materiais e humanos, enfim, o prestígio e a defesa dos maiores pilares da sociedade, a Justiça e a Paz, sendo que aquela precede sempre a segunda. Não obstante a imponência do ritual, ficou à vista a denúncia da vasta criminalidade que, ao mesmo tempo que enche os tribunais, esvazia os valores que sustentam os povos e, no limite, os destroem. Momentos de tremenda carga social e psicológica aqueles que ontem se viveram naquele “salão dourado, de ambiente nobre e sério”, não nos Paços da Rainha, mas no Palácio da Ajuda. O discurso do Presidente da República espelhou, solene e veemente, a grandeza daquela hora e, em contra-luz, o deprimente cortejo das misérias sociais, percebendo-se nas entrelinhas que é ali “naquele salão dourado, de ambiente nobre e sério” e na barra dos tribunais que desaguam os detritos das sociedades, dos bairros insalubres, dos paióis dos traficantes do papel sonante, da carne humana e da mais elementar consciência cívica. Nobilíssima a missão dos juízes e profissionais da Justiça, mas ao mesmo tempo tarefa tão chocante e arrepiante como a do médico legista no laboratório de autópsias.
         De repente, naquelas paredes acolchoadas vi resíduos de favelas onde se acoitam crianças e jovens, potenciais criminosos e candidatos ao banco dos réus; vi lares desavindos manchados de sangue pelos machados da violência doméstica; sob a escuridão daquelas capas negras subentendi a noite má conselheira onde se praticam crimes inomináveis que vão cair depois às mãos dos julgadores.
                                                          

E concluí que não é por ali que começa a transformação da sociedade. Fica mais longe, muito longe daquele salão a chave que abre o grande portão da Justiça e da Paz… Entrando numa das salas do Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira Seca, vejo a psicóloga perante um grupo de crianças, todas entusiasmadas a desenhar uma mão aberta. A psicóloga pergunta: “Meninos, para que servem as mãos? Para bater? Não, respondem os petizes. Então para que servem?... Para ajudar, abraçar, escrever pintar, comer, trabalhar e fazer coisas boas. Não são para bater em ninguém. E as crianças pacientemente transcrevem com a mãozinha trémula a lição do dia.
No grande rio da história, a solene abertura dos “Anos Judiciais” fica a jusante da corrente. Antes dele, do Poder Judicial, muito a montante fica o Poder da Vontade, o berço rural ou urbano, a escola do bairro, a oficina, a educação do amor e do sexo, o respeito pelo vizinho ou companheiro e pelos seus haveres, a motivação para a partilha. Antes do juiz ficam o pai e a mãe, o professor, o colega, o ambiente, o salário justo, a saudável apetência de viver.
Saudando e desejando bons augúrios para o cerimonial ontem realizado no Palácio da Ajuda, sempre se há-de concluir por este Acórdão Global: Um só dia do programa a montante poderia suspender muito ritual a jusante. Em outra redacção: Muitos dias ou toda a vida de Educação  evitariam muitos ou todos os Anos Judiciais. Guerra Junqueiro, já no século XIX, propunha e sancionava como Supremo o “Tribunal da Consciência”!                                                                                                                        
07.Jan.20
Martins Júnior

domingo, 5 de janeiro de 2020

UM OUTRO “CANTAR DOS REIS”


                                                      

Enquanto escrevo, ecoam pelos vales sombrios da noite as mais eufóricas loas aos Magos de outrora, repetindo em múltiplas variantes que  “Vós sabíeis e vós bem sabeis que é do dia cinco para o dia seis que se canta o Reis”. E consabido é também o perfume a incenso com que se venera a chegada sincronizada dos Três Magos do Oriente à gruta de Belém ou, com mais fidelidade histórica,  à “casa”  do Menino e sua Mãe, na cidade de Nazaré, tudo envolvido em crepes de misticismo profético, divinatório.
Ouso, porém, (e não serei o único, por certo) mergulhar em toda a literatura profética, sobretudo no grande taumaturgo das promessas futuras,  o eloquente Isaías, e aí lobrigar aquela vocação apoteótica, congénita a todos os povos marcados pelo nacionalismo patriótico exacerbado: a vocação expansionista, tendo por meta final a ascensão ao trono imperial, dominador de todas as outras nações e etnias.
Com efeito, o sonho imperialista atravessa os genes de todos os regimes tendencialmente hegemónicos, desde a mais remota antiguidade: Suméria, Caldeia, Atenas, a Roma Imperial, enfim, toda a Europa, com as alianças mais espúrias e oportunistas, o Sacro Império Romano-Germânico. Mais recentemente, o Império das URSS’s e o terror maquiavélico do hitlerianismo açambarcador do mundo civilizado, pela destruição da nomenclatura judaica. Actualmente, sob outras roupagens, a galopante ‘invasão’ da China, o poderio intercontinental de Moscovo e, acima de todos, o auto-proclamado Super-Império tump-americano, no sofreguidão paranóica de fazer tremer o Planeta sob as botas cardadas do “maior potencial militar do mundo” – em todos é o vírus da supremacia político-económica que os move.
E mais sintomático e paradoxal, ainda, é constatar que o vírus ataca de forma crua e cega os países pequenos quando lhes chega o cheiro catalisador dessa ambição. Portugal está na frente. Um país periférico, sem recursos, uma vez catapultado para a vanguarda dos Descobrimentos, assentou arraiais nos confins do Mundo e no topo geodésico da Terra arvorou trono e bandeira do Império Português. Luís Vaz de Camões bem pode figurar no galarim da aristocracia patriótica, ao lado de Isaías, mutatis mutandis, ao colocar no discurso de Vénus e Júpiter as façanhas futuras dos nautas lusos, com o Gama e seus heróis à proa da ‘rosa dos ventos’.
De volta aos “Reis do Dia Seis”, os termos em que os Anais do Povo Judaico se lhes referem em pouco ou nada se distanciam dos discursos proclamatórios  comuns à linguagem épica de outros povos e seus heróis. Abramos o seu maior intérprete, Isaías Profeta, cap.60-61:
Levanta-te, Jerusalém, resplandece. Chegou a tua luz. Olha em teu redor: a noite cobre a terra e a escuridão todos os outros povos, mas sobre ti brilha a luz. As nações caminharão no rasto da tua luz e os reis no esplendor da tua aurora. A ti afluirão as riquezas do mar longínquo  e a ti virão os tesouros das nações. Serás invadida por uma multidão de camelos e dromedários de Madiã e Efá. Os reis de Sabá virão trazer-te ouro e incenso…  Os reis da terra servir-te-ão. A nação ou o rei que recusar servir-te morrerá, o seu país será destruído…  Do menor nascerá uma tribo e do mais pequeno uma nação poderosa…
Extensas e numerosas são as citações bíblicas representativas de um povo montanhês, de gente nómada e quase sempre derrotada nas repetidas escaramuças em que se envolvia com os territórios fronteiriços. Um anseio profundo, veemente pulsava no sangue das sucessivas gerações, um apelo genético à libertação e, daí, ao domínio sobre os outros povos. As referências a um Messias libertador vinham sempre consubstanciadas com a aparição de um líder poderoso, capaz de arrancar da opressão um povo sofrido que, ao longo de séculos, fizera um percurso entre espinhos e abrolhos. Era aos profetas entregue pela população o nobre estatuto de semear luz na escuridão e alavancar no coração deprimido de cada geração a chama da esperança, mesmo que ilusória, num mundo melhor, num País Novo, “onde corressem o leite e o mel”.
Em conclusão: fazer assentar nos textos vetero-testamentários  acerca da visita dos (impropriamente) Reis, apenas e só, um misticismo potenciador do fenómeno divino-messiânico, poderá configurar uma interpretação duvidosamente extensiva do acontecimento, visto que o animus inspirador desses mesmos textos não se confina a uma exclusiva e pura espiritualidade, mas vem misturado com propósitos colhidos nas aras da emancipação social e do mais radical patriotismo.
À consideração superior – dos biblistas e dos investigadores sérios.

05-06.Jan.20
Martins Júnior