terça-feira, 31 de janeiro de 2023

CONFISSÕES, CONFESSORES E CONFESSIONÁRIOS – ANATOMIA DO PERDÃO (1)

                                                                         


        Sou, por natureza, avesso a uma espécie de desnudamento público da própria personalidade ou de casos pessoais, género expositor de feira ‘a céu-aberto’, como agora parece ser moda, via face book e afins. Mas hoje lá vai…

         Teve Monsenhor Jardim Moreira, meu amigo e dedicado presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, a amabilidade de telefonar-me, a partir do Porto, dando-me notícia de uma afirmação da conhecida historiadora Raquel Varela, no programa televisivo, de vasta e comprovada audiência, denominado “O Último Apaga a Luz”: Há um padre na Madeira que aboliu a confissão. É o padre Martins Júnior. Razão:  porque Deus não precisa de intermediários”.

         Aceito a eventual surpresa (e, para outros, talvez um inusitado sobressalto) que tenha causado a afirmação produzida, a qual corresponde à verdade, no seu enunciado principal, embora careça de um segundo tempo quanto à sua causalidade, como tentarei esclarecer nas parcas linhas de um blog. Para melhor facilidade didáctica, recorro ao ordenamento numérico das matérias em causa:

Primeiro: Não tenho nada que abolir ou deixar de abolir em questões de índole confessional que, embora negacionistas em relação ao texto bíblico, tornaram-se dogma imposto pelos dicastérios da Igreja Romano-Vaticana. Apenas o que me apraz dizer é que eu, padre católico ordenado há 60 anos, deixei de ouvir  confissões há mais de 50 anos, no litúrgico módulo de ‘confissão auricular’. Cheguei a esta conclusão após muita reflexão, apoiado na informação do LIVRO: Evangelho, Actos e Cartas Apostólicas. E, por imperativo de consciência, é assim que tenho transmitido a mensagem à comunidade.

Segundo: Na concepção eclesiástica, o padre-juiz delegado, vulgo dicto, confessor, representa Deus-Juiz Supremo. O pecado situa-se na relação pecador (agressor, ladrão) -  e Deus agredido (ofendido, roubado). Ora, em estrito rigor semântico, personalista, a Deus ninguém ofende, ninguém lhe toca, ninguém lhe rouba. Se a um simples mortal é permitido dizer ‘Não me ofende quem quer’, quanto mais poderá dizer o Deus Soberano, Todo Poderoso, Inacessível à nossa humana fragilidade?!... Portanto, provado que ninguém ofende o Juiz-Supremo, Este nada tem a perdoar, absolver ou condenar. E se não tem o Juiz-Supremo, menos terá o juiz-delegado.

   Terceiro: Mas há agressões, há ofensas, há roubos e, daí, há agressores, ladrões, em consequência há os agredidos, os lesados, as vítimas. E quem são estas? Nem será necessária demonstração: são seres humanos, familiares, vizinhos, colegas, amigos e inimigos. Têm nome, casa, família. Nestes termos, quem tem o poder de perdoar? E o agressor: a quem tem de pedir perdão? Não há argumentação lógica contra a evidência: o perdão é um acto (relação, contrato) bilateral entre agressor e agredido. Por isso, os terceiros não fazem parte deste contrato relacional. O perdão digno desse nome só acontece entre o pedido - ressarcimento do criminoso e a sua vítima.

Quarto: A nossa imaginação ilusionista, mais cruamente, a nossa cobardia metódica para branquear a culpa levou-nos a substituir os vocábulos  crime, erro, ofensa, roubo –  a realidade – por um único sntagma redondo, uma ficção: pecado. Não é inocente nem ingénua esta dupla e ardilosa conceptualização. É que o erro-crime-roubo têm um complemento directo, sensível, concreto e, por isso, exige reparação-acção directa, concreta, com nome e endereço sensíveis., plenamente identificados. Ao contrário, a noção de pecado projecta-nos para o Além, para a estratosfera, tipo nefelibata suspenso, em busca de um Ser Inacessível que nunca vimos nem conhecemos e a quem queremos ardentemente pedir perdão. Ah, se pudéssemos ouvir a ‘sentença’ desse Juiz-Supremo, seria bem clara e potente: “Mas isso não é comigo, enganaste-te no destinatário. Volta para trás, porque o teu único juiz-perdoador está lá em baixo, está mesmo perto de ti”.

Quinto: À luz da razão, nunca haverá perdão enquanto os dois polos – agressor e agredido – não se encontrarem face-a-face. E aí, mediante o pedido prévio do agressor, esteja o lesado pronto a dar-lhe o abraço da concórdia. Ninguém mais pode arrogar-se o direito de procuração nem para formular o petição nem para deferir o pedido. O confessor é, portanto,  um intruso neste processo. Ensinar e sacralizar o contrário, à luz da mais elementar  casuística processual,  é uma declarada escola para a irresponsabilidade mais estrénua, um resvalar para o pântano da cobardia institucional. Nunca se aceitará que o assaltante João espere o perdão de António pelo roubo que fez a José!

Se é tão evidente e límpida a lógica dos homens, quem se atreve a tornar opaca e baça a lógica de Deus?... Por outras palavras, é ainda mais exigente e claro o código deontológico que nos deixou o Mestre da Galileia.

Vê-lo-emos amanhã.

 

31. Jan.23

Martins Júnior

    

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