Sou,
por natureza, avesso a uma espécie de desnudamento público da própria
personalidade ou de casos pessoais, género expositor de feira ‘a céu-aberto’,
como agora parece ser moda, via face book
e afins. Mas hoje lá vai…
Teve Monsenhor Jardim Moreira, meu
amigo e dedicado presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, a amabilidade de
telefonar-me, a partir do Porto, dando-me notícia de uma afirmação da conhecida
historiadora Raquel Varela, no programa televisivo, de vasta e comprovada
audiência, denominado “O Último Apaga a Luz”: Há um padre na Madeira que aboliu a confissão. É o padre Martins
Júnior. Razão: porque Deus não precisa
de intermediários”.
Aceito a eventual surpresa (e, para
outros, talvez um inusitado sobressalto) que tenha causado a afirmação
produzida, a qual corresponde à verdade, no seu enunciado principal, embora
careça de um segundo tempo quanto à sua causalidade, como tentarei esclarecer
nas parcas linhas de um blog. Para
melhor facilidade didáctica, recorro ao ordenamento numérico das matérias em
causa:
Primeiro: Não
tenho nada que abolir ou deixar de abolir em questões de índole confessional que,
embora negacionistas em relação ao texto bíblico, tornaram-se dogma imposto pelos dicastérios da
Igreja Romano-Vaticana. Apenas o que me apraz dizer é que eu, padre católico
ordenado há 60 anos, deixei de ouvir
confissões há mais de 50 anos, no litúrgico módulo de ‘confissão
auricular’. Cheguei a esta conclusão após muita reflexão, apoiado na informação
do LIVRO: Evangelho, Actos e Cartas Apostólicas. E, por imperativo de
consciência, é assim que tenho transmitido a mensagem à comunidade.
Segundo: Na
concepção eclesiástica, o padre-juiz delegado, vulgo dicto, confessor, representa Deus-Juiz Supremo. O pecado
situa-se na relação pecador (agressor, ladrão) - e Deus agredido (ofendido, roubado). Ora, em
estrito rigor semântico, personalista, a Deus ninguém ofende, ninguém lhe toca,
ninguém lhe rouba. Se a um simples mortal é permitido dizer ‘Não me ofende quem
quer’, quanto mais poderá dizer o Deus Soberano, Todo Poderoso, Inacessível à
nossa humana fragilidade?!... Portanto, provado que ninguém ofende o
Juiz-Supremo, Este nada tem a perdoar, absolver ou condenar. E se não tem o
Juiz-Supremo, menos terá o juiz-delegado.
Terceiro:
Mas há agressões, há ofensas, há roubos e, daí, há agressores, ladrões, em
consequência há os agredidos, os lesados, as vítimas. E quem são estas? Nem
será necessária demonstração: são seres humanos, familiares, vizinhos, colegas,
amigos e inimigos. Têm nome, casa, família. Nestes termos, quem tem o poder de
perdoar? E o agressor: a quem tem de pedir perdão? Não há argumentação lógica
contra a evidência: o perdão é um acto (relação, contrato) bilateral entre
agressor e agredido. Por isso, os terceiros não fazem parte deste contrato
relacional. O perdão digno desse nome só acontece entre o pedido -
ressarcimento do criminoso e a sua vítima.
Quarto:
A nossa imaginação ilusionista, mais cruamente, a nossa cobardia metódica para
branquear a culpa levou-nos a substituir os vocábulos crime,
erro, ofensa, roubo – a realidade –
por um único sntagma redondo, uma ficção: pecado.
Não é inocente nem ingénua esta dupla e ardilosa conceptualização. É que o erro-crime-roubo têm um complemento
directo, sensível, concreto e, por isso, exige reparação-acção directa,
concreta, com nome e endereço sensíveis., plenamente identificados. Ao
contrário, a noção de pecado projecta-nos
para o Além, para a estratosfera, tipo nefelibata suspenso, em busca de um Ser
Inacessível que nunca vimos nem conhecemos e a quem queremos ardentemente pedir
perdão. Ah, se pudéssemos ouvir a ‘sentença’ desse Juiz-Supremo, seria bem
clara e potente: “Mas isso não é comigo, enganaste-te no destinatário. Volta
para trás, porque o teu único juiz-perdoador está lá em baixo, está mesmo perto
de ti”.
Quinto: À
luz da razão, nunca haverá perdão enquanto os dois polos – agressor e agredido
– não se encontrarem face-a-face. E aí, mediante o pedido prévio do agressor,
esteja o lesado pronto a dar-lhe o abraço da concórdia. Ninguém mais pode
arrogar-se o direito de procuração nem para formular o petição nem para deferir
o pedido. O confessor é, portanto, um
intruso neste processo. Ensinar e sacralizar o contrário, à luz da mais
elementar casuística processual, é uma declarada escola para a
irresponsabilidade mais estrénua, um resvalar para o pântano da cobardia
institucional. Nunca se aceitará que o assaltante João espere o perdão de
António pelo roubo que fez a José!
Se
é tão evidente e límpida a lógica dos homens, quem se atreve a tornar opaca e
baça a lógica de Deus?... Por outras palavras, é ainda mais exigente e claro o
código deontológico que nos deixou o Mestre da Galileia.
Vê-lo-emos
amanhã.
31. Jan.23
Martins Júnior
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