sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

AINDA CONFISSÕES E CONFESSIONÁRIOS (2) – A QUEM SE CONFESSA PUTIN?.

                                                                        


    Além da motivação primeira que originou os considerandos ontem formulados (a citação da historiadora Raquel no programa “O Último Apaga a Luz”) juntou-se o anúncio de 150 confessionários no titulado “Parque do Perdão” a instalar no âmbito das JMJ – Jornadas Mundiais da Juventude, decisão que respeito, embora com voto de ‘Vencido’.

         Na sequência das reflexões ontem produzidas – todas de ordem ético-jurídica e de direito natural – hoje tentarei entrar no Santa Sanctorum, no Santuário ou na essência da Religião Revelada, sabendo-se que esta é a que nos legaram os textos bíblicos, em oposição à religião sobreposta, também chamada canónica, metamorfoseada pelo Magistério das Igrejas.

         Toda a vida do Líder do movimento ético-sacro-social de Jesus de Nazaré foi pautada pela transparência saudável, sem dobras nem peias, fosse entre pessoas, fosse entre instituições. As formas instrumentais da religião – rituais, mímica, incensos, velas, promessas pias e promessas vãs, culto salomónico – tudo isso fica a léguas de distância e de nada vale ante a transparência e a franqueza de um coração sincero. Até mesmo os normativos da lei moisaica caem por terra quando se lhes interpõe um valor maior, o da lealdade, ou uma lógica mais intensa, o do serviço ao próximo: Não é o Homem que está ao serviço do Sábado, mas o contrário, é o Sábado que está ao serviço do Homem (Marcos 2, 23-28 ). Traduzindo: Não é o Homem que está ao serviço da Religião, mas a Religião ao serviço do Homem. E foi por esta lógica e por este Evangelho que os magnatas da Sinagoga, sumos-sacerdotes, escribas, fariseus não descansaram enquanto não O assassinaram!

         Feita esta longa, mas necessária, introdução, voltemos à questão inicial: Perdão, onde moras?... E quem é aquele que tem o poder-direito de perdoar?... Qual o preço desse perdão?... Ou, apropriando-nos da nomenclatura da JMJ, ousamos perguntar: Onde é que fica situado o tal ‘Parque do Perdão’?...

         Tentando aproximar-me da metodologia propedêutica de Jesus, o  Super-Mestre da História, reduzirei à extrema simplicidade a sua geografia do Perdão, na sequência dos cinco marcos descritos no anterior blog:

         Sexto: Onde mora o Perdão?...  Leiamos Mateus, capítulo V:

Se fores ao altar do Templo para oferecer uma dádiva ao Senhor e aí te lembrares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa aí a tua oferta diante do altar, vai lá fora reconciliar-te primeiro com o teu irmão e, só depois disso, volta a entrar no Templo para que a tua oferta seja aceite pelo Senhor. (Mt.20, 23-24)

         Primeiras conclusões: Onde não  mora o Perdão? –  Dentro da igreja, com ou sem paredes, muito menos numa parcela da igreja, o confessionário. Onde, então, morará o Perdão? – Fora da igreja, diremos, no local do crime e, sobretudo, no encontro mútuo entre os dois polos beligerantes. Sem procuradores, sem advogados, sem ‘juízes de fora’, alheios ao conflito. Sai da igreja,- ensinou o Mestre -  vai reconciliar-te com alguém que está lá fora.  E o processo gerador do Perdão, de quem depende e qual o preço?... Condição ‘sine qua  non’ é a formulação directa e sincera do pedido do jnfractor  (e, sendo caso, o ressarcimento), seguidos da receptividade do lesado. Esse será o Perdão Perfeito! Convenhamos que não é factura leve reconhecer o erro e a culpa, humilhar-se diante da vítima e pedir-lhe  benevolência! Da parte da vítima, não será menos penoso reconverter os naturais impulsos de retaliação e olhar complacentemente a mão que a roubou, a boca que a caluniou, o coração que a atraiçoou. Há perdões que só se concedem misturados com lágrimas. Mas sempre face-a-face, os dois: na rua, na porta do vizinho, nas quatro paredes do quarto! É o Perdão que Jesus propõe, subscreve e aceita.

         Sétimo: E assim interpretaram os seus discípulos, os seus adeptos, desde a primeira hora. Entre eles, São Tiago, seu primo, primeiro bispo de Jerusalém, assassinado pelos ‘hierarcas-donos’ da Sinagoga. Eis como ele se dirige ao pequeno grupo de simpatizantes, residentes na cidade, crentes na Boa Nova que Jesus trouxera:

         Confessai os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros para serdes salvos. (Tiago, Carta, 5,16).     

         Serão precisos mais dogmas, mais anátemas contra o preceituado por Jesus e por Tiago?... Os séculos, os milénios, o clero e o Papado não conseguirão nunca apagar o que está escrito: Confessai-vos uns aos outros. Podem estrangular - calar é que não!

Oitavo: Estou a ouvir crentes devotos contrapondo o exposto – e respeitosamente aceito, embora com voto de ‘Vencido’ – através de citações bíblicas, tais como em João Evangelista: Serão perdoados os pecados a quem os perdoardes (Jo. 20,23 ) Certo. No entanto, como compaginar esta citação (susceptível de várias interpretações) com a transparência clara, unívoca, das palavras de Jesus e de Tiago? Em que ficamos?... A clareza e a lógica não deixarão dúvidas a um intérprete de boa-fé.

         Nono: Mas se ainda subsistirem reticências duvidosas sobre a hermenêutica do texto, leiamos toda a Carta de Tiago de Jerusalém para descobrirmos o paralelismo perfeito com o pensamento de Jesus de Nazar, no tocante ao realismo da vida quotidiana com os padrões de virtude e santidade preconizados pelo Mestre. Veremos quanto a teologia enraíza e cresce ao ritmo da antropologia tal como intuiu o cientista-teólogo Teilhard de Chardin.

Não temos reflectido o suficiente sobre a permuta que a Igreja fez no ‘Pai-Nosso’. Nós rezamos Perdoai as nossas ofensas… Mas, no original, Jesus foi mais concreto: Perdoai as nossas dívidas… Com feito, toda a ofensa – agressão, roubo, calúnia – resulta sempre numa dívida contraída com alguém! Que exige reparação, restituição, ressarcimento.  E ‘lá vem aquela frase batida’: A quem se confessa Putin?

         Décimo: Visto e provado que o Perdão é um acto-contracto bilateral entre agressor e agredido, entre devedor e credor, que lugar ocupa Deus neste binómio? À primeira vista, parece que nenhum, mas à profundidade, Deus ocupa o espaço todo. Porquê?

Consultemos, de novo, o LIVRO e leiamos o evangelista Mateus, capítulo 25, versículos 31 e sgs.: Tudo o que fizestes a um dos mais pequeninos foi a Mim mesmo que o fizestes. E tudo o que deixaste de fazer a um dos mais pequeninos foi a Mim mesmo que o deixastes de fazer. O nosso Mestre precisou bem o objecto do serviço ou da doação: não foram promessas, velas, incensos, missas, procissões ou confissões, mas soluções concretas para problemas concretos: Pão para a fome, Água para a sede, Abrigo para o abandono sem refúgio, Visita a um doente, a um preso.

Além da objectivação da matéria de facto, o mais profundo e retumbante (e que faz de Jesus o Maior Líder Religioso da História) é verificar a portentosa identificação da Divindade com a Humanidade. Em nenhuma outra Religião se instaurou este princípio basilar: Deus (‘re)-incarnado’ na pessoa humana, por mais insignificante ou indefesa que pareça. Tão decisivo este princípio, que até está na base de todo o ordenamento jurídico-penal do cristianismo!!! Por outras palavras: é por ele que seremos julgados: Tudo o que fizestes a um dos mais pequeninos foia Mim que o fizestes.

Precisamente neste entroncamento é que se situa o elemento religioso: só ofendemos a Deus quando ofendemos ou prejudicamos alguém. Se o “agravo” a Deus passa pelo “agravo” feito a alguém, na mesma lógica, o Perdão de Deus só acontece através do Perdão desse alguém. Portanto, é este Perdão humano que tem a precedência sobre o Perdão religioso. Infelizmente, por cobardia, têm-nos ensinado o contrário: pretendemos chegar a Deus sem passar pela pessoa humana. Inútil, abusivo, farisaico! Primeiro, vai lá fora falar com quem ofendeste e, só depois, vem ao altar.

Trago agora à colação, os 150 confessionários e o eufemístico ‘Parque do Perdão’ da JMJ. Por hipótese, uma alma cheia de escrúpulos e bem intencionada vai confessar-se num deles e ficar ainda com algum remorso de não ter-se confessado correctamente. E passa para outro e deste para um terceiro e um quarto, até chegar ao último do 150 confessionários, mas ainda carente, duvidando do perdão do confessor. E tem toda a razão: os erros, os roubos, as calúnias, as agressões que confessou a um estranho (ou aos 150) foram entregues a destinatários errados, desconhecidos, talvez de outras nacionalidades. O destinatário certo, o lesado ou agredido, é aquele ou é aquela que o agressor conhece bem e, possivelmente,  vive perto da sua casa ou dentro dela. Nestes termos (e sem menosprezo por quem procura no confessionário uma espécie de catarse psicológica) é legítimo concluir que o apregoado “Parque do Perdão” não mora na Bobadela da JMJ.

E agora, a resposta à tal ‘frase batida’: A quem se confessa Putin?... Ele é cristão e ortodoxo. A quem se confessa?... A essa ‘múmia’ extra-terrestre, de nome Kirilos, Patriarca de Moscovo, auto-proclamado Representante de Cristo na terra… e  seu antigo camarada do KGB!... Quem é que atura tão ridícula e blasfema comédia orto-religiosa?! E as famílias que ele sangra de dor em campo de guerra, os mortos em combate, a destruição de cidades e comunidades, as crianças atiradas ao abandono, à fome, aos escombros?... Putin, o assassino, também se confessa e comunga… Só por isto, sobram razões para descre de uma farsa chamada confissão!

    Peço desculpa a quem teve a paciência de acompanhar-me nesta íntima introspecção aprendida ao longo da vida, peço também desculpa se ofendi a mentalidade e a sensibilidade de quem pensa o contrário, Pretendi apenas justificar por que é que eu, nos 60 anos de ordenado padre católico, não ouço confissões há mais de 50, celebrando em seu lugar a “Festa do Perdão”, um acto comunitário no templo da Ribeira Seca, previamente preparado, consoante a expressão de um velho paroquiano, já falecido, que dizia: ‘O Perdão é como o pão, tem que se trazer de casa, amassado e cozido”.     

Festa do Perdão, sublinho  – porque o Perdão Perfeito há-de terminar em festa – a Festa do Abraço, da Paz, da Fraternidade!

 

03.Fev.23

Martins Júnior


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