Além
da motivação primeira que originou os considerandos ontem formulados (a citação
da historiadora Raquel no programa “O Último Apaga a Luz”) juntou-se o anúncio
de 150 confessionários no titulado “Parque do Perdão” a instalar no âmbito das
JMJ – Jornadas Mundiais da Juventude, decisão que respeito, embora com voto de
‘Vencido’.
Na sequência das reflexões ontem
produzidas – todas de ordem ético-jurídica e de direito natural – hoje tentarei
entrar no Santa Sanctorum, no
Santuário ou na essência da Religião Revelada, sabendo-se que esta é a que nos
legaram os textos bíblicos, em oposição à religião sobreposta, também chamada
canónica, metamorfoseada pelo Magistério das Igrejas.
Toda a vida do Líder do movimento
ético-sacro-social de Jesus de Nazaré foi pautada pela transparência saudável,
sem dobras nem peias, fosse entre pessoas, fosse entre instituições. As formas
instrumentais da religião – rituais, mímica, incensos, velas, promessas pias e
promessas vãs, culto salomónico – tudo isso fica a léguas de distância e de
nada vale ante a transparência e a franqueza de um coração sincero. Até mesmo
os normativos da lei moisaica caem por terra quando se lhes interpõe um valor
maior, o da lealdade, ou uma lógica mais intensa, o do serviço ao próximo: Não é o Homem que está ao serviço do Sábado,
mas o contrário, é o Sábado que está ao serviço do Homem (Marcos 2, 23-28 ). Traduzindo: Não é o Homem que está
ao serviço da Religião, mas a Religião ao serviço do Homem. E foi por esta
lógica e por este Evangelho que os magnatas da Sinagoga, sumos-sacerdotes,
escribas, fariseus não descansaram enquanto não O assassinaram!
Feita esta longa, mas necessária,
introdução, voltemos à questão inicial: Perdão, onde moras?... E quem é aquele
que tem o poder-direito de perdoar?... Qual o preço desse perdão?... Ou,
apropriando-nos da nomenclatura da JMJ, ousamos perguntar: Onde é que fica
situado o tal ‘Parque do Perdão’?...
Tentando aproximar-me da metodologia
propedêutica de Jesus, o Super-Mestre da
História, reduzirei à extrema simplicidade a sua geografia do Perdão, na
sequência dos cinco marcos descritos no anterior blog:
Sexto: Onde
mora o Perdão?... Leiamos Mateus,
capítulo V:
Se fores ao altar do
Templo para oferecer uma dádiva ao Senhor e aí te lembrares que o teu irmão tem
alguma coisa contra ti, deixa aí a tua oferta diante do altar, vai lá fora
reconciliar-te primeiro com o teu irmão e, só depois disso, volta a entrar no
Templo para que a tua oferta seja aceite pelo Senhor.
(Mt.20, 23-24)
Primeiras conclusões: Onde não mora o Perdão? – Dentro da igreja, com ou sem paredes, muito
menos numa parcela da igreja, o confessionário. Onde, então, morará o Perdão? –
Fora da igreja, diremos, no local do
crime e, sobretudo, no encontro mútuo entre os dois polos beligerantes. Sem procuradores, sem advogados, sem ‘juízes de
fora’, alheios ao conflito. Sai da
igreja,- ensinou o Mestre - vai reconciliar-te com alguém que está lá
fora. E o processo gerador do
Perdão, de quem depende e qual o preço?... Condição ‘sine qua non’ é a formulação directa e sincera do
pedido do jnfractor (e, sendo caso, o ressarcimento), seguidos da
receptividade do lesado. Esse será o
Perdão Perfeito! Convenhamos que não é factura leve reconhecer o erro e a
culpa, humilhar-se diante da vítima e pedir-lhe
benevolência! Da parte da vítima, não será menos penoso reconverter os
naturais impulsos de retaliação e olhar complacentemente a mão que a roubou, a
boca que a caluniou, o coração que a atraiçoou. Há perdões que só se concedem
misturados com lágrimas. Mas sempre face-a-face, os dois: na rua, na porta do
vizinho, nas quatro paredes do quarto! É o Perdão que Jesus propõe, subscreve e
aceita.
Sétimo: E assim interpretaram os seus discípulos, os seus adeptos, desde
a primeira hora. Entre eles, São Tiago, seu primo, primeiro bispo de Jerusalém,
assassinado pelos ‘hierarcas-donos’ da Sinagoga. Eis como ele se dirige ao
pequeno grupo de simpatizantes, residentes na cidade, crentes na Boa Nova que
Jesus trouxera:
Confessai
os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros para serdes salvos.
(Tiago, Carta, 5,16).
Serão precisos mais dogmas, mais
anátemas contra o preceituado por Jesus e por Tiago?... Os séculos, os
milénios, o clero e o Papado não conseguirão nunca apagar o que está escrito: Confessai-vos uns aos outros. Podem
estrangular - calar é que não!
Oitavo:
Estou
a ouvir crentes devotos contrapondo o exposto – e respeitosamente aceito,
embora com voto de ‘Vencido’ – através de citações bíblicas, tais como em João
Evangelista: Serão perdoados os pecados a
quem os perdoardes (Jo. 20,23 ) Certo. No entanto, como compaginar esta
citação (susceptível de várias interpretações) com a transparência clara,
unívoca, das palavras de Jesus e de Tiago? Em que ficamos?... A clareza e a
lógica não deixarão dúvidas a um intérprete de boa-fé.
Nono: Mas se ainda
subsistirem reticências duvidosas sobre a hermenêutica do texto, leiamos toda a
Carta de Tiago de Jerusalém para descobrirmos o paralelismo perfeito com o
pensamento de Jesus de Nazar, no tocante ao realismo da vida quotidiana com os
padrões de virtude e santidade preconizados pelo Mestre. Veremos quanto a
teologia enraíza e cresce ao ritmo da antropologia tal como intuiu o
cientista-teólogo Teilhard de Chardin.
Não
temos reflectido o suficiente sobre a
permuta que a Igreja fez no ‘Pai-Nosso’. Nós rezamos Perdoai as nossas ofensas… Mas, no original, Jesus foi mais
concreto: Perdoai as nossas dívidas…
Com feito, toda a ofensa – agressão, roubo, calúnia – resulta sempre numa
dívida contraída com alguém! Que exige reparação, restituição, ressarcimento. E ‘lá vem aquela frase batida’: A quem se
confessa Putin?
Décimo: Visto e provado que o
Perdão é um acto-contracto bilateral entre agressor e agredido, entre devedor e
credor, que lugar ocupa Deus neste binómio? À primeira vista, parece que
nenhum, mas à profundidade, Deus ocupa o espaço todo. Porquê?
Consultemos,
de novo, o LIVRO e leiamos o evangelista Mateus, capítulo 25, versículos 31 e
sgs.: Tudo o que fizestes a um dos mais
pequeninos foi a Mim mesmo que o fizestes. E tudo o que deixaste de fazer a um
dos mais pequeninos foi a Mim mesmo que o deixastes de fazer. O nosso
Mestre precisou bem o objecto do serviço ou da doação: não foram promessas,
velas, incensos, missas, procissões ou confissões, mas soluções concretas para problemas concretos: Pão para a fome, Água para a sede, Abrigo
para o abandono sem refúgio, Visita a um doente, a um preso.
Além
da objectivação da matéria de facto, o mais profundo e retumbante (e que faz de
Jesus o Maior Líder Religioso da História) é verificar a portentosa
identificação da Divindade com a Humanidade. Em nenhuma outra Religião se
instaurou este princípio basilar: Deus (‘re)-incarnado’ na pessoa humana, por
mais insignificante ou indefesa que pareça. Tão decisivo este princípio, que
até está na base de todo o ordenamento jurídico-penal do cristianismo!!! Por
outras palavras: é por ele que seremos julgados: Tudo o que fizestes a um dos mais pequeninos foia Mim que o fizestes.
Precisamente
neste entroncamento é que se situa o elemento religioso: só ofendemos a Deus
quando ofendemos ou prejudicamos alguém. Se o “agravo” a Deus passa pelo
“agravo” feito a alguém, na mesma lógica, o Perdão de Deus só acontece através
do Perdão desse alguém. Portanto, é este Perdão humano que tem a precedência
sobre o Perdão religioso. Infelizmente, por cobardia, têm-nos ensinado o
contrário: pretendemos chegar a Deus sem passar pela pessoa humana. Inútil,
abusivo, farisaico! Primeiro, vai lá fora
falar com quem ofendeste e, só depois, vem ao altar.
Trago
agora à colação, os 150 confessionários e o eufemístico ‘Parque do Perdão’ da
JMJ. Por hipótese, uma alma cheia de escrúpulos e bem intencionada vai
confessar-se num deles e ficar ainda com algum remorso de não ter-se confessado
correctamente. E passa para outro e deste para um terceiro e um quarto, até
chegar ao último do 150 confessionários, mas ainda carente, duvidando do perdão
do confessor. E tem toda a razão: os erros, os roubos, as calúnias, as agressões
que confessou a um estranho (ou aos 150) foram entregues a destinatários
errados, desconhecidos, talvez de outras nacionalidades. O destinatário certo,
o lesado ou agredido, é aquele ou é
aquela que o agressor conhece bem e, possivelmente, vive perto da sua casa ou dentro dela. Nestes
termos (e sem menosprezo por quem procura no confessionário uma espécie de
catarse psicológica) é legítimo concluir que o apregoado “Parque do Perdão” não
mora na Bobadela da JMJ.
E
agora, a resposta à tal ‘frase batida’: A quem se confessa Putin?... Ele é
cristão e ortodoxo. A quem se confessa?... A essa ‘múmia’ extra-terrestre, de
nome Kirilos, Patriarca de Moscovo, auto-proclamado Representante de Cristo na
terra… e seu antigo camarada do KGB!...
Quem é que atura tão ridícula e blasfema comédia orto-religiosa?! E as famílias
que ele sangra de dor em campo de guerra, os mortos em combate, a destruição de
cidades e comunidades, as crianças atiradas ao abandono, à fome, aos
escombros?... Putin, o assassino, também se confessa e comunga… Só por isto,
sobram razões para descre de uma farsa chamada confissão!
Peço
desculpa a quem teve a paciência de acompanhar-me nesta íntima introspecção
aprendida ao longo da vida, peço também desculpa se ofendi a mentalidade e a sensibilidade
de quem pensa o contrário, Pretendi apenas justificar por que é que eu, nos 60
anos de ordenado padre católico, não ouço confissões há mais de 50, celebrando
em seu lugar a “Festa do Perdão”, um acto comunitário no templo da Ribeira
Seca, previamente preparado, consoante a expressão de um velho paroquiano, já
falecido, que dizia: ‘O Perdão é como o pão, tem que se trazer de casa,
amassado e cozido”.
Festa
do Perdão, sublinho – porque o Perdão Perfeito
há-de terminar em festa – a Festa do Abraço, da Paz, da Fraternidade!
03.Fev.23
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário