Gostaria
de mandar fazer um bolo doce que desse a volta aos seis sítios da Ribeira Seca
e convidar-vos a partilhar comigo os sentimentos que nutro por vós nesta hora de despedida.
Partilhei
convosco a alegria dessa manhã de sol estival quando entrei neste lugar, dia 22
de Junho de 1969, recém-chegado da guerra colonial em Moçambique.
Partilhámos
juntos as agruras de tantas vidas nesta terra, então marcada pela ruralidade profunda,
sem estradas, sem água potável, sem luz eléctrica.
Partilhámos
a cedência do modesto salão da igreja para uma digna escola pública que a
Ribeira Seca não possuía.
Partilhámos
o ânimo das nossas romagens com versos e canções que espelhavam as nossas
mágoas e reivindicações, vigiadas pela
polícia da “pide”, vinda do Funchal e disfarçada no nosso adro.
Partilhámos
juntos a luta contra o regime da colonia em que os senhorios escravizavam os
caseiros e vimos o justo fruto, logo
após o “25 de Abril de 1974”.
Partilhei
dolorosamente o sofrimento dos paroquianos quando 70 efectivos da PSP ocuparam
a igreja, embarrotaram as portas e invadiram a casa paroquial, levando consigo
livros de assentos, registos, aparelhagem sonora, tudo o que quiseram, em 27 de
Fevereiro até 18 de Março de 1985, às ordens da diocese e do governo regional,
sem mandado judicial.
Partilhámos o sabor da oração comunitária, aos
domingos, nos poios e montados desta terra, enquanto a PSP mantinha a nossa
igreja encerrada.
Partilhei
sentidamente a alegria do regresso ao adro e ao altar do nosso templo, após a
saída voluntária e, por isso, ‘misteriosa’ das forças policiais.
Agradeço
a firmeza da vossa fé, mesmo depois da suspensão A Divinis sem processo e sem qualquer fundamento jurídico.- canónico,
desde 1977.
Partilhámos
a renovação arquitectónica da nossa igreja em 1999 e a colocação do carrilhão e
relógio na torre em 2004, apesar da proibição e ameaças do bispo diocesano.
Partilhámos
a humilhação que a diocese infligiu aos cristãos e ao padre da Ribeira Seca quando, em 8 de Maio de 2010,
não deixou que a Imagem Peregrina entrasse no adro e na igreja, perante a estupefação da multidão, escandalizada e
pacificamente revoltada com a vergonha que ali presenciou, ao vivo.
Partilhámos,
enfim, o troféu da nossa justa resistência, em 2019, com a revogação, por parte
do novo bispo, também sem processo, da dita suspensão, não obstante o meu desejo
que se abrisse processo jurídico-canónico para saber o porquê de 42 anos suspenso do ministério para o qual fui
ordenado em 1962.
Partilho
efusivamente convosco a tenacidade das vossas convicções espirituais e teológicas,
ao suportar 50 anos de ausência de Crismas nesta igreja, por injustificável
denegação de três sucessivos prelados diocesanos, situação que ficou
definitivamente ultrapassada em 5 de Dezembro de 2021, dia em que 92 crismandos
receberam o Sacramento da Confirmação.
Por
todos estes feitos e muitos que foram partilhados convosco, o meu encendrado
Preito de Gratidão às gentes da Ribeira Seca, com o mais condoído sentimento de
saudade pelos que já não estão connosco, esses que jamais serão esquecidos. Fostes
vós, Povo da Ribeira Seca, que
segurastes a Fé e consolidastes a verdadeira Igreja, não só as paredes, mas
sobretudo a alma dela, que são as Pessoas, o Povo de Deus!
Mais
uma palavra de gratidão a todos aqueles, sacerdotes e leigos, homens e
mulheres, que nunca nos abandonaram nas horas mais dramáticas deste percurso:
foram teólogos, professores universitários, músicos e artistas de renome
nacional, psicólogos, jornalistas e até militares, quase todos vindos do
território continental e cujos nomes serão evocados noutra circunstância. Bem
hajam pela vossa coragem e coerência! Da
Madeira, não posso deixar de inscrever, hoje mesmo, quatro sacerdotes memoráveis que não temeram
as ameaças de ‘suspensão’ se viessem celebrar à igreja da Ribeira Seca. São
eles: Padre Alfredo Vieira de Freitas,
meu exímio professor de Literatura Portuguesa, Padre Rafael Maria Andrade,
Padre Mário Tavares Figueira, já falecidos, e o grande, vivo e intemerato Padre José Luís Rodrigues.
Aos
assíduos e dedicados jovens da nossa Tuna, os de hoje e os de ontem, o abraço de quem agradece o vosso sentido
estético e a partilha sócio-cultural, vós que tornastes menos velho este octogenário,
vosso amigo e colaborador. A Música –
tal como a Vida – continua!
A
última saudação – como se fosse a primeira de sempre - - é aquela que ouvi da
boca dos africanos de Moçambique, vítimas das cheias no ano 2000, quando, em forma de agradecimento aos donativos oferecidos pelo Povo da Ribeira Seca, diziam-me na hora da despedida:
ESTAMOS
JUNTOS !!!
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Em virtude das várias notícias difundidas pelos media e pelas
redes sociais, achei por bem silenciar-me nestes últimos dias e proceder hoje
ao necessário e, para mim, aprazível Preito de Gratidão e Compromisso.
09.Fev.23
Martins Júnior
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