quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

OS RIOS QUE DESAGUAM EM CINZAS… CINZEIROS SEREMOS NÓS?!...

                                                                        


     Fechados os corsos de todos os “Rios de Fevereiro” (ainda que menos longos que o do Rio de Janeiro) entrámos na estereotipada “Quarta-Feira de Cinzas”. Foi o terceiro dia do Caro Vale - etimologicamente, o ‘Adeus à Carne’ – e trocámos a euforia de uma quase puríssima indumentária do paraíso terreal para desaparecermos num guarda-fato obscuro, taciturno, quase misantropo.

         Vejo-me transportado nesta ponte contraditória e, ao chegar ao fim dela, deparam-se-me humanos cinzeiros, não tão visíveis  nos couros cabeludos quanto nos de alcatifa puída, enquanto uma voz plangente como que vinda do Além vai sussurrando baixinho: “Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”. É o tom monocórdico em todos os templos, salpicado de uns pòsinhos mágicos que vão caindo sobre a cabeça dos fiéis devotos. Começa o solene tempo da Quaresma, do jejum, da abstinência, da penitência.

         Tudo bem, pois presunção, devoção e cinza benta toma-as quem quer. Pela minha parte, prefiro abrir o LIVRO e ler, reler, sempre ler Isaías Profeta e trazê-lo à mesa da consciência colectiva:

         Grita a  plenos pulmões, levanta como trombeta a tua voz e diz ao meu povo o que penso dos seus jejuns: “Não quero saber desses jejuns, dessas penitências. E porquê?...  Porque passais o tempo em rixas, discórdias e dais socos sem dó uns nos outros… porque não pagais o salário a quem trabalha para vós…porque o vosso jejum é só para tratar dos vossos negócios e interesses pessoais… Então achais vós que me agrada o sacrifício de um homem que se mortifica o dia inteiro, que inclina a cabeça como um junco ou que se veste de saco e deita-se num chão de cinza?!... O jejum que eu quero é outro: acabar com as prisões injustas, desatar as algemas da escravatura, libertar os oprimidos, repartir o pão com quem tem fome, recolher em casa os que andam perdidos sem abrigo, nunca voltar as costas ao teu povo, aos que pertencem à tua condição. (Isaías, cap. 58).

          O aviso de Iavé não se limita a mandar falar: GRITA !!! – é a palavra de ordem. Isto, há 2700 anos!!!

 E hoje, ainda perdemos tempo e queimamos neurónios com devocionismos fúteis e cabeças formatadas em cinzeiros para sabermos a evidência de todos os dias, ao menos quando abrimos as páginas da necrologia publicitária e vemos ali estampado o veredicto do Padre António Vieira: “Hoje somos pó erguido, amanhã seremos pó caído”.

         Mais surpreendente e plenamente libertadora é a frescura saudável que o nosso Mestre receita para aqueles que fazem o verdadeiro ‘jejum’, a verdadeira penitência:

“Quando jejuares, perfuma a tua cabeça, lava o teu rosto”! (Mat.6,17).

Não mandou pôr cinza nem cilícios.

         Que impressivo libelo acusatório contra o exibicionismo arcaico e farisaico de certos cultos pseudo-quaresmais!... No entanto, respeito quem se delicie num leito de poeiras acinzentadas e, eventualmente, acidentadas.

         Vale a pena reler Isaías, capítulo 58. E ainda Mateus, capítulo 6.

 

         21-22.Fev.23

         Martins Júnior

 

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