Fechados
os corsos de todos os “Rios de Fevereiro” (ainda que menos longos que o do Rio
de Janeiro) entrámos na estereotipada “Quarta-Feira de Cinzas”. Foi o terceiro
dia do Caro Vale - etimologicamente,
o ‘Adeus à Carne’ – e trocámos a euforia de uma quase puríssima indumentária do
paraíso terreal para desaparecermos num guarda-fato obscuro, taciturno, quase
misantropo.
Vejo-me transportado nesta ponte
contraditória e, ao chegar ao fim dela, deparam-se-me humanos cinzeiros, não
tão visíveis nos couros cabeludos quanto
nos de alcatifa puída, enquanto uma voz plangente como que vinda do Além vai
sussurrando baixinho: “Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”. É o tom
monocórdico em todos os templos, salpicado de uns pòsinhos mágicos que vão
caindo sobre a cabeça dos fiéis devotos. Começa o solene tempo da Quaresma, do
jejum, da abstinência, da penitência.
Tudo bem, pois presunção, devoção e
cinza benta toma-as quem quer. Pela minha parte, prefiro abrir o LIVRO e ler,
reler, sempre ler Isaías Profeta e trazê-lo à mesa da consciência colectiva:
Grita
a plenos pulmões, levanta como trombeta
a tua voz e diz ao meu povo o que penso dos seus jejuns: “Não quero saber
desses jejuns, dessas penitências. E porquê?... Porque passais o tempo em rixas, discórdias e dais
socos sem dó uns nos outros… porque não pagais o salário a quem trabalha para
vós…porque o vosso jejum é só para tratar dos vossos negócios e interesses
pessoais… Então achais vós que me agrada o sacrifício de um homem que se
mortifica o dia inteiro, que inclina a cabeça como um junco ou que se veste de
saco e deita-se num chão de cinza?!... O jejum que eu quero é outro: acabar com
as prisões injustas, desatar as algemas da escravatura, libertar os oprimidos,
repartir o pão com quem tem fome, recolher em casa os que andam perdidos sem
abrigo, nunca voltar as costas ao teu povo, aos que pertencem à tua condição. (Isaías,
cap. 58).
O aviso de Iavé não se limita a mandar falar:
GRITA !!! – é a palavra de ordem. Isto, há 2700 anos!!!
E hoje, ainda perdemos tempo e queimamos
neurónios com devocionismos fúteis e cabeças formatadas em cinzeiros para
sabermos a evidência de todos os dias, ao menos quando abrimos as páginas da necrologia
publicitária e vemos ali estampado o veredicto do Padre António Vieira: “Hoje
somos pó erguido, amanhã seremos pó caído”.
Mais surpreendente e plenamente
libertadora é a frescura saudável que o nosso Mestre receita para aqueles que
fazem o verdadeiro ‘jejum’, a verdadeira penitência:
“Quando jejuares, perfuma a tua
cabeça, lava o teu rosto”! (Mat.6,17).
Não
mandou pôr cinza nem cilícios.
Que impressivo libelo acusatório contra
o exibicionismo arcaico e farisaico de certos cultos pseudo-quaresmais!... No
entanto, respeito quem se delicie num leito de poeiras acinzentadas e,
eventualmente, acidentadas.
Vale a pena reler Isaías, capítulo 58.
E ainda Mateus, capítulo 6.
21-22.Fev.23
Martins
Júnior
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