domingo, 21 de junho de 2020

UMA CARTA “PAULINA”, DE ONTEM, DE HOJE E DE SEMPRE!


                                                  
 Não é o que vulgarmente se chama homenagem post mortem  aquilo que deixei aqui escrito durante a semana passada acerca do Padre Mário Tavares. Homenagens dessas não passam de rituais mundanos, incensos cadavéricos, que ele detestava e eu, na mesma senda, continuo a detestar. Se o recordo é tão-só para trazê-lo de novo à nossa mesa e à sua tribuna de liberdade e sabedoria. É para que nunca a sua voz  lhe doa, pelo contrário para que ela se torna cada vez mais audível e galvanizadora, mesmo desde o silêncio da sepultura.

         Darei hoje,  não um ponto final, mas um compasso de espera na grande partitura do seu Legado. Muitas são as linhas cruzadas em que os nossos caminhos se encontraram: desde os bancos da escola, o curso de Teologia, até ao desdobrar das lides pastorais e das lutas sociais, o magistério nos estabelecimentos de ensino, os forçados anos de capelania militar em África, depois a paroquialidade em zonas rurais e até a passagem pelo parlamento regional. A este propósito, julgo necessário revelar, alto e bom som, a motivação da sua opção pelo partido em que se integrou, como independente, na Assembleia Regional. O próprio nos confidenciou, por mais de uma vez: “O escândalo que muita gente viu  na minha opção política foi precisamente para combater o escândalo maior que foi a nota pastoral do bispo Teodoro, quando comparou o pedófilo padre Frederico a Jesus pregado na cruz. Blasfemo, insuportável”, clamava Padre Tavares.
         Nesta data evocativa de meio século e mais um  ano da minha entrada na Ribeira Seca e após o ataque de um contingente de 70 polícias armados ao seu modesto templo, em 27 de Fevereiro de 1985, Padre Tavares foi a única voz que se levantou na ilha contra tamanho sacrilégio. Escreveu uma carta aberta ao bispo (mais que uma carta foi uma histórica e tremenda ‘catilinária’) da qual recorto aqui alguns excertos, com a foto da época:

“PARA ESTAR COM O BISPO, É PRECISO QUE O BISPO ESTEJA COM CRISTO”     
“Paróquia de São Tiago, 10 de Março de 1985
         Ex.mo e Rev.mo Senhor Dom Teodoro Faria

         Com imensa mágoa e depois de muita oração e de muito reflectir, eu, Padre da Diocese e com responsabilidades de uma paróquia, escrevo para lhe dizer que V. Rev.ma prestou um mau serviço à Igreja de Cristo com o seu proceder para com a comunidade da Ribeira Seca. Faço-o de modo público, porque o acto foi público e só publicamente se pode desgravá-lo.
Uma comunidade tem o direito de ser livre, de ter a sua actividade religiosa, mesmo que o Bispo não goste. É um direito, inscrito no nº18 dos DIREITOS DO HOMEM  e na Encíclica “Pacem in terris” de João XXIII e ainda no Concílio Vaticano II, “Gaudium et Spes”, nº26. O Senhor Bispo poderia reclamar o direito da igreja e casa paroquial. Mas quem construiu aqueles espaços senão o povo que reclama para si o direito de celebrar o seu amor para com o Senhor e quer responsabilizar-se por isso? Um Bispo que se apresenta como um proprietário diante de uma comunidade destrói a sua figura de representante dos Apóstolos que viveram sem bens, mas cheios de Verdade, Amor e Sacrifício e no meio dos pobres.
         Todos sabemos que o problema se gerou com a actividade política do Padre Martins. Mas porventura a Ilha da Madeira conheceu algum político mais activo do que o D. Francisco Santana, enquanto Bispo do Funchal?...  É verdade que não ocupou nenhum cargo político na Madeira, mas a actividade sempre a teve. E até a cadeira lhe foi concedida no Parlamento Regional.
         E V. Rev.ma conhece algum órgão de comunicação social com maior informação político-partidária que o “Jornal da Madeira”. órgão da Diocese com um sacerdote à sua frente?
         Sou forçado também a reconhecer que este proceder na Ribeira Seca foi um acto político oportunisticamente aproveitado por V. Rev.ma  e muito bem explorado pelo Partido Governante.. No dia 27 de Fevereiro, uma força policial “recuperou” a Igreja da Ribeira Seca, para entregá-la ao seu “proprietário”, conforme pedido formulado pela Diocese, na base do Artigo II da Concordata entre o Estado “Santa Sé” e o Estado “República Portuguesa”.
Não houve nem uma palavra de Evangelho! Pareciam dois ladrões que se juntaram para fazer um assalto e repartir os despojos.
         …………..
         Pela Idade Média além, a Igreja, com o mandamento ‘Não matarás’ muita gente matou na fogueira e de outros modos para a manutenção da sua Ordem, da sua Unidade. Nestas coisas, a Autoridade Eclesiástica não gosta que se fale, porque a ignorância dos crimes passados faz com que se não dê pelos crimes presentes.
         Fala-se da não violência, ataca-se a Teologia da Libertação. E no entanto V. Rev.ma, Senhor Bispo, aparece armado!... Que grande contra-testemunho!
              Tantos e tantos do meio do povo, convictos da VERDADE DE CRISTO, imprimem no seu viver uma doação extraordinária pela sua Liberdade e Amor. Se soubessem de tanto lixo que a Igreja transporta, como ficariam escandalizados!...
Neste mundo, para compreendermos o sacrifício de Jesus de Nazaré, temos como imagem a História da Ribeira Seca. Que, pelo menos, Senhor Bispo, surja o sinal da Redenção.                   
                         Ass) Padre Mário Tavares Figueira

Ao mesmo tempo que é um veemente libelo acusatório, o presente documento assume-se como um permanente alerta a toda a Igreja, em especial à Igreja Madeirense e aos seus titulares responsáveis. Como cantou uma voz da Intervenção Pública, Francisco Fanhais, também com ele (e com o Padre Tavares) repetimos: “Vimos, Ouvimos e Lemos, Não podemos ignorar”!



21.Jun.20
Martins Júnior

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