sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A “FÉ E O IMPÉRIO” – OU - IMPÉRIO E A FÉ?... TESTEMUNHOS DA GUERRA COLONIAL

                                                                        


Apreciei as observações coincidentes com o penúltimo  blog, assim como daria idêntico apreço às eventuais opiniões contraditórias, desde que devidamente fundamentadas. Ficou provada a minha repulsa pela invasão e genocídio dos jhiadistas islâmicos contra o indefeso povo de Cabo Delgado, do mesmo modo que repudiei e ainda hoje abjuro dos crimes que a tropa portuguesa cometeu sob a benzida e incensada guerra colonial.

         Quando escrevo “benzida e incensada”, refiro-me ao protecionismo público e notório da Igreja Católica Portuguesa ao arsenal bélico-operacional e administrativo do Exército em campanha, resquícios da bandeira quinhentista que sobrevoava e amparava os assaltos da Coroa Lusa  aos territórios de “Aquém e Além-Mar”, a qual foi apoteoticamente cantada pelos nossos poetas e cronistas: “Dilatar a Fé e o Império”.

         Foi esta uma questão suficientemente escrutinada por dois conhecidos  historiadores, aquando da abertura dos “500 Anos da Diocese do Funchal”, em 2012, em sessão solene realizada na Universidade da Madeira. Aí em palco viu-se, ao vivo, o ‘duelo’ entre duas “histórias” diametralmente opostas: “O Portugal das Descobertas teve como objectivo prioritário a Fé, a missionação, e só depois o Império”, dizia um dos especialistas convidados, enquanto o outro, situando-se no contexto sócio-económico coevo, provou que o móbil das chamadas Conquistas consistia essencialmente na aquisição das riquezas orientais, entre as quais as longínquas e exóticas especiarias. Em sua opinião, o Império precedeu a Fé.

         De há muito que eu partilhava esta segunda interpretação, por mais realista e consentânea com o processo histórico dos Descobrimentos. Mas foi a forçada participação na guerra colonial, como capelão do B.Caç.1899, que me fez confirmar à evidência este ensaio de farsa bem embrulhada em pressupostos pseudo-religiosos: o Estado Português queria capelães militares, não para missionar os indígenas nem para rezar com os soldados, mas tão só para ganhar, através da Igreja,  o apoio do povo , mormente as populações rurais, de onde eram recrutada a maioria dos jovens portugueses “condenados”  à guerra.

         Por isso recusei-me a benzer o Estandarte do Batalhão,  na igreja da Amadora, onde estava sediado o Regimento de Infantaria  nº1, sendo por isso censurado pelo comando, antes mesmo de embarcarmos no velho “Niassa”.  Um outro episódio, porém, ocorrido mais tarde em Mocímboa da Praia, Cabo Delgado, veio acabar as dúvidas que porventura tivesse sobre o que pretendia de mim o exército português, mais precisamente, o regime de Oliveira Salazar.

         Chamado ao Ex.mo tenente-coronel, comandante, bati-lhe oficialmente a pala regimental e escutei o elogio:

- O nosso capelão é diferente dos outros.

- Muito obrigado, meu comandante, faço o que posso.

Julguei estar a referir-se ao conjunto musical de ritmos modernos com o qual, sob a minha direcção, animávamos periodicamente as quatro companhias do batalhão. Mas, ao ouvi-lo repetir duas, três vezes, o ‘elogio’, indaguei:

         - Mas…diferente, porquê, meu comandante?

         - É que eu tenho ido às suas missas, ao domingo.

- Muito bem, meu comandante. Não sei qual a sua fé, mas tenho notado agradavelmente a sua presença. E então?

         - É que nos outros batalhões que comandei, o capelão aproveitava a homilia para falar de Nossa Senhora de Fátima, para ela dar força e coragem aos nossos rapazes contra os turras. E o senhor, nada.

         Aí perfilei-me, puxei pelos meus galões, não de tenente, mas de padre e patriota e atirei sem escolher os termos:

         - Agora percebo onde o meu comandante quer chegar. Mas fique sabendo do seguinte: se o senhor pensa que vou fazer de Nossa Senhora de Fátima a padeira de Aljubarrota, tire o cavalinho da chuva e mande-me já para a minha terra. O senhor com uma mão e eu com as duas. Obrigado.

         Bati a pala regimental e saí, soliloquiando com veemência contida: É para isto que me querem cá. Para ajudar a matar. Para servir o criminoso regime colonialista.

         Não fora a amizade solidária que me unia a oficiais, sargentos e praças sobretudo, em circunstâncias tão dramáticas – e eu teria desertado, fosse para onde fosse.

Sei que o capelão tem uma função essencial na psicologia dos jovens abandonados nas matas africanas. Quantas vezes vieram chorar no meu ombro, pelo pai, pela mãe, pela esposa (ou pela namorada) e pelos filhos…e pelo medo de morrer na próxima emboscada. O padre psicólogo! Mas o Estado não mobiliza psicólogos. Prefere os padres e até dá-lhes, por isco,  galões de alferes, tenentes, chegando mesmo a coronéis, com a única e sub-reptícia estratégia de amarrar a Igreja ao regime político-militar.

Sério problema para a Igreja. A Igreja de Jesus de Nazaré, o Mestre e Libertador. E não da Sinagoga do “Senhor Deus dos Exércitos”.

Conforta-me a solidariedade dos então jovens mobilizados, hoje septuagenários e octogenários, cujo doloroso percurso partilhei em terras de Cabo Delgado. E serena-me o espírito a colaboração dada em Mocuba (foto acima) Mabotacuane e Morrumbala, distrito da Zambézia, aos dedicados missionários italianos, com quem contactei e aprendi.

 

27.Nov.20

Martins Júnior

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