segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A ESCALADA INTERMINÁVEL DOS NATAIS – EPISÓDIOS DA ILHA E DA RIBEIRA SECA

                                                                                 


A que estrela ou a que abismo iremos para achar o braseiro de um lume novo que aqueça este Natal/2022?... Esgotadas as cantigas ao Menino que “ora está deitado, ora está estendido”, repetidas e puídas as ‘lapinhas’, os cordeirinhos, a vaca e o burrinho (que nem estiveram na gruta de Belém), enfim, onde encontraremos inspiração para olharmos mais além e vermos outros Natais que não o ramerrão fugitivo de todos os dezembros?...

         Este ano, não foi preciso sequer atravessar oceanos, galgar montanhas e continentes. Bastou-nos fixar a mente e o coração num livro de pedra ilhoa, aberto no logradouro do templo da Ribeira Seca, o adro que todos os dias pisam os nossos pés. Aqui, impressos estão em alvos calhaus roliços e em graciosa moldura circular os tempos históricos deste modesto burgo serrano. A viagem em busca do tesouro de um novo Natal fez-se não pelas autoestradas dos territórios mas pelos alongados trilhos do tempo.

E neles nos revimos e neles nos demorámos, perplexos e ávidos de encontrar a resposta a esta procura da nossa ancestralidade longínqua: Como viveram o seu Natal os nossos antepassados de há trezentos e seiscentos anos?... Que Menino viram eles nos seus presépios?... O mesmo de hoje, sempre ‘deitado e estendido’ – ‘estendido e deitado’?...

É uma tarefa que nos propusemos realizar nas nove “Missas do Parto”, ora em curso. Na onda da tradição, tentamos surfá-la (desculpem o estrangeirismo) relacionando-a com o Natal Primevo de há dois mil anos e com o tempo e o lugar que hoje habitamos.

Já lá vamos no IV episódio ou quarto andamento do percurso, pelo que só muito sinteticamente poderemos descrevê-los, deixando desde já a quem o pretenda a sugestão de maiores desenvolvimentos.

I

O MENINO DO TINTUREIRO ENTRE OS ESCRAVOS DO AÇÚCAR

Desde os alvores do “Achamento” da Ilha, mas acentuadamente desde1440 – A Carta da Outorga da Primeira Capitania a Tristão Vaz Teixeira, pelo Infante D, Henrique (a do Funchal aconteceu em 1450) – Machico prosperou sobretudo no segmento açucareiro, para cuja faina foram trazidos escravos negros (não esqueçamos que a Madeira funcionou como grande Entreposto de escravos). Na área montanhosa da Ribeira Seca, porém,  instalou-se uma outra indústria: a tinturaria, tão rara e preciosa que o próprio Rei D. Manuel I exigia o retorno do imposto, não em dinheiro, mas em espécie. Atesta-o a nomenclatura dos três sítios contíguos: Tintureiro ( a árvore produtora), o Pastel (a tinta) e a Nóia (do italiano Paulo da Noia, o empresário da exploração). Que Natais seriam esses? De um lado, o luxo da sede da Capitania, os torneios, os saraus românticos, possivelmente em redor do presépio que os frades franciscanos trouxeram para a Ilha. Do outro, as precaríssimas condições dos trabalhadores. Ou seja, o Natal dos ricos e o Natal dos pobres, dos escravos.

II

O MENINO EM CASA DO SENHORIO

Aconteceu em 1692. O Capitão-Secretário da Câmara Municipal de Machico, Francisco Dias Franco, mandou construir, a expensas suas, a Capela de Nossa Senhora do Amparo, no sítio chamado Lombo do Xeque, sendo aí instaurado o senhorio ou morgadio da Ribeira Seca. Foi o mesmo titular que mandou construir, em 1706, o Forte de Nossa Senhora do Amparo, na vila de Machico. Os senhorios e morgadios surgiram da alteração da Lei das Sesmarias, com base na deturpação subsequente do regime de concessão de terras, passando a vigorar o ‘leonino contrato da colonia’ equiparado ao dos servos da gleba, escravos da terra. Em apoio tácito aos senhorios, a Igreja, ela também senhoria, concedeu-lhes o ‘direito de capela’. Os camponeses, catequizados que eram pela instituição eclesiástica, agradeciam ao senhorio o lugar do culto. Aí podiam cantar ao Menino, sentiam-se enlevados na contemplação do estábulo, a vaquinha e o burrinho, enfim, o seu Natal, mais uma vez o Natal dos pobres que trabalhavam de sol a sol para o senhorio, enquanto este se banqueteava com a sua comitiva no palacete contíguo à capela. Um episódio que merece considerações mais profundas, realistas e dramáticas! Temo-lo feito, em consonância com os textos do Profeta Amós, do Antigo Testamento, capítulos 5, 6 e 8.

III e IV

Em 1960, por Decreto Diocesano do Bispo D. David de Sousa, deu-se o desmembramento das paróquias ou a descentralização da igreja matriz da área respectiva – uma decisão verdadeiramente revolucionária para a época, visto que cumpriu, por antecipação, o desiderato do Papa Francisco de levar a Igreja ao encontro do povo. Quebrou-se a “ditadura” do centralismo religioso e criaram-se novas centralidades em zonas inóspitas da Ilha, o que provocou uma positiva onda de desenvolvimento e cidadania progressiva entre os que habitavam a ruralidade profunda. Machico, de uma só paróquia, transformou-se em quatro, entre as quais a da Ribeira Seca.  Retomando as passadas anteriores, a população local recordava nos versos das romagens festivas:

A Capela do Amparo

Foi lá que a paróquia abriu

Mas ela não era nossa

Pertencia ao senhorio

 

Queríamos uma igreja nossa

Pobre sim mas verdadeira

Carregámos tudo aos ombros

Da  ribeira e da pedreira

 

E foi um esforço soberano, uma vaga de entusiasmo nunca visto. Todos ajudavam, acarretando areia, pedra, madeiras. E fez-se o templo. Tem data assinalada em caracteres de sangue no coração altivo e feliz da população, mais tarde esculpida no lajeado do adro: 1963! Então, foi diferente, foi glorioso o Natal de 1963, não obstante o sacrifício e a exploração de que o povo era vítima em plena guerra colonial.

Foram sucedendo os anos. O que acabo de contar é fruto do relato de paroquianos da Ribeira Seca, visto que só tomei contacto directo com a paróquia da Ribeira Seca em 1969, por nomeação episcopal. No entanto, o que aqui se releva é o crescimento evolutivo de um povo que foi ganhando a sua autonomia, a autonomia possível em tempos árduos, à custa do seu braço de trabalho. Esta foi e é a Igreja do Povo, que nada deve à diocese ou ao governo. A este propósito, em apoio às considerações formuladas, lemos hoje na meditação da “Missa do Parto” a sequência do Livro do Profeta Amós, quando proibido de profetizar no santuário de Betel porque “este santuário é do rei”. (capítulo7, 10-17). Vícios que vêm de longe, de muito longe: o poder político açambarcando o poder religioso!

O Natal de um povo também se constrói com a sua autonomia – a autêntica! – e não com a submissão servil. Jesus de Nazaré, mesmo Criança, veio libertar-nos da subserviência gratuita, da escravatura!

É interminável a escalada dos Natais, todos iguais e todos diferentes. E é nesse rumo que vamos continuar, seguindo o CPS escrito no adro da Ribeira Seca

 

19.Dez.22

Martins Júnior

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