“Porque
hoje é Sábado”…
Comecemos
com Vinicius de Morais para abrir o Livro que em cada fim de semana nos é
proposto, com sabor a narrativa bíblica de longo alcance didáctico. Juntemos a
esta rampa introdutória a tendência inata no psiquismo humano de transmutar a
realidade em diversos cambiantes conforme o ambiente e a circunstância,
tendência esta mais notória na interpretação dos mitos e na estratégia das
religiões, de que é caso paradigmático a mitologia greco-romana quando, por
exemplo, representa o deus Jano com duas caras (e, nalgumas versões, com
quatro) por ser ele mesmo a divindade das mudanças ocorridas no mundo.
Mas
não de Jano que me ocupo. É de algo mais difuso e confuso, como seja a dupla crença
em que navegam, arrastam-se, vegetam ou hibernam os povos. Tomemos os textos de
hoje:
No
Livro do Êxodo e em toda a literatura judaica, o Autor formal e material de
toda a história do povo hebreu tem um nome – Iahveh, Deus. Ele é que comanda as
tropas, Ele é que abre estradas no mar, ele é que põe e depõe os líderes, os
reis, faz e desfaz as instituições e as leis. O homem, “saído das Suas mãos”
fica inelutavelmente prisioneiro autómato nas mesmas mãos. Faça sol ou chuva,
haja sucesso ou prejuízo na agricultura, na economia, na saúde, “isso é tudo
com Ele, Todo Poderoso”.
E
assim se desensinou um povo, assim se alienaram gerações futuras, assim ficou a
história manietada, inamovível, sob o bastão inflexível de Iahveh. Até hoje.
Mas
não é assim que está escrito em Êxodo (3,1-8).
Bem ao contrário! Na sua visão patriótica e angustiante (a escravatura a que o
seu povo estava condenado durante 40 anos), ouviu Iahveh partilhar da mesma
angústia e da mesma indignação. Mas não foi Iahveh quem liderou a oposição
radical contra o Faraó. Mandou Moisés no seu lugar. A guia de marcha foi
peremptória, inapelável: “Vai tu, Moisés”! E assim aconteceu.
Neste
mesmo alinhamento de textos, o Livro de
Lucas (Luc. 13, 1-9) não deixa margem
para dúvidas ou pias interpretações. A palavra de ordem é agir, produzir. A inércia
e o quietismo, mesmo que disfarçados de pietismo confessional, ali não têm
lugar. No texto citado, o nosso Líder, o
Mestre, o Nazareno “agricultor” consulta
a figueira que plantou com tanto carinho no seu campo. Consultou-a, dialogou,
deu-lhe todas as liberalidades e nutrientes para poder alimentar-se e produzir
em tempo oportuno. Tudo em vão. Fez nova tentativa. Sem sucesso, outra vez..
Resultado: cortá-la pela raiz.
Aqui
ficam, em síntese, as duas caras com que os homens pintam o rosto invisível da
sua crença e que deixam marcas decisivas na mentalidade e na conduta das
sociedades. Como nos mais remotos lugarejos, também em certos ambientes de
cidade, ainda persiste o vírus hipócrita dos ”deseducadores” do povo crente,
anestesiando-o com devoções vazias, cortejos processionais de nítidos contornos
populistas, afim de travar qualquer tentativa mínima de alterar o “status quo” paralisante,
não só na esfera dita religiosa mas em todo o tecido sócio-económico e
político.
Não
é esse, porém, o pensamento dos genuínos cultores da espiritualidade que fazem
da ideia a matriz da sua acção dinâmica e consequente. Assim os construtores da
história, com Cristo-Líder na vanguarda. Não peçam ao Senhor Deus a paz – peçam-na
aos imperadores do mundo. Não rezem a Deus por justiça – exijam-na aos legisladores,
aos juízes e aos “donos-disto-tudo”. Não
acendam velas estéreis contra a violência doméstica – ensinem as famílias,
proporcionem condições dignas,, curem as neuroses, punam os criminosos.
Enfim,
não arranjemos mais deuses nem máscaras para eles. Basta-nos o olhar vigoroso e
terno do Mestre que hoje nos fala em Lucas (13,1-9)
aquele Nazareno “de um só rosto e de uma só fé/ De antes quebrar que torcer”! (Sá de Miranda).
23.Mar.19
Martins Júnior
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