sábado, 23 de março de 2019

UM DEUS DE DUAS CARAS


                                                        

“Porque hoje é Sábado”…
Comecemos com Vinicius de Morais para abrir o Livro que em cada fim de semana nos é proposto, com sabor a narrativa bíblica de longo alcance didáctico. Juntemos a esta rampa introdutória a tendência inata no psiquismo humano de transmutar a realidade em diversos cambiantes conforme o ambiente e a circunstância, tendência esta mais notória na interpretação dos mitos e na estratégia das religiões, de que é caso paradigmático a mitologia greco-romana quando, por exemplo, representa o deus Jano com duas caras (e, nalgumas versões, com quatro) por ser ele mesmo a divindade das mudanças ocorridas no mundo.
Mas não de Jano que me ocupo. É de algo mais difuso e confuso, como seja a dupla crença em que navegam, arrastam-se, vegetam ou hibernam os povos. Tomemos os textos de hoje:
No Livro do Êxodo e em toda a literatura judaica, o Autor formal e material de toda a história do povo hebreu tem um nome – Iahveh, Deus. Ele é que comanda as tropas, Ele é que abre estradas no mar, ele é que põe e depõe os líderes, os reis, faz e desfaz as instituições e as leis. O homem, “saído das Suas mãos” fica inelutavelmente prisioneiro autómato nas mesmas mãos. Faça sol ou chuva, haja sucesso ou prejuízo na agricultura, na economia, na saúde, “isso é tudo com Ele, Todo Poderoso”.
E assim se desensinou um povo, assim se alienaram gerações futuras, assim ficou a história manietada, inamovível, sob o bastão inflexível de Iahveh. Até hoje.
Mas não é assim que está escrito em Êxodo (3,1-8). Bem ao contrário! Na sua visão patriótica e angustiante (a escravatura a que o seu povo estava condenado durante 40 anos), ouviu Iahveh partilhar da mesma angústia e da mesma indignação. Mas não foi Iahveh quem liderou a oposição radical contra o Faraó. Mandou Moisés no seu lugar. A guia de marcha foi peremptória, inapelável: “Vai tu, Moisés”! E assim aconteceu.
Neste mesmo alinhamento de textos,  o Livro de Lucas (Luc. 13, 1-9) não deixa margem para dúvidas ou pias interpretações. A palavra de ordem é agir, produzir. A inércia e o quietismo, mesmo que disfarçados de pietismo confessional, ali não têm lugar. No texto citado,  o nosso Líder, o  Mestre, o Nazareno “agricultor” consulta a figueira que plantou com tanto carinho no seu campo. Consultou-a, dialogou, deu-lhe todas as liberalidades e nutrientes para poder alimentar-se e produzir em tempo oportuno. Tudo em vão. Fez nova tentativa. Sem sucesso, outra vez.. Resultado: cortá-la pela raiz.
Aqui ficam, em síntese, as duas caras com que os homens pintam o rosto invisível da sua crença e que deixam marcas decisivas na mentalidade e na conduta das sociedades. Como nos mais remotos lugarejos, também em certos ambientes de cidade, ainda persiste o vírus hipócrita dos ”deseducadores” do povo crente, anestesiando-o com devoções vazias, cortejos processionais de nítidos contornos populistas, afim de travar qualquer tentativa mínima de alterar o “status quo” paralisante, não só na esfera dita religiosa mas em todo o tecido sócio-económico e político.
Não é esse, porém, o pensamento dos genuínos cultores da espiritualidade que fazem da ideia a matriz da sua acção dinâmica e consequente. Assim os construtores da história, com Cristo-Líder na vanguarda. Não peçam ao Senhor Deus a paz – peçam-na aos imperadores do mundo. Não rezem a Deus por justiça – exijam-na aos legisladores, aos juízes e  aos “donos-disto-tudo”. Não acendam velas estéreis contra a violência doméstica – ensinem as famílias, proporcionem condições dignas,, curem as neuroses, punam os criminosos.  
Enfim, não arranjemos mais deuses nem máscaras para eles. Basta-nos o olhar vigoroso e terno do Mestre que hoje nos fala em Lucas (13,1-9) aquele Nazareno “de um só rosto e de uma só fé/ De antes quebrar que torcer”! (Sá de Miranda).

23.Mar.19
Martins Júnior

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