quarta-feira, 1 de julho de 2020

ESCULTORES DA AUTONOMIA


                                                   

“Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
Assim falou, há quatro séculos, o “Imperador da Língua Portuguesa”. Falou para nós, estatuários inquilinos do século XXI. O eco do “Príncipe dos Oradores Lusos”  bate hoje em cheio aos tímpanos de cada madeirense e deixa esta mensagem, que tanto pode ser convite como será uma ordem: “Arranca tu –ilhéu cidadão do mundo – arranca uma lasca do basalto onde firmas os pés e faz tu próprio a estátua da Autonomia”.
A cada mão, sua inspiração. A estátua teria tantos rostos quantas as mãos, quantas as mentes, quantos os amores. Exactamente, tal como o Amor, a Autonomia veste várias togas, toma suas feições e divaga por múltiplas derivas. A escultura acabada – a Autonomia -  seria o ‘alter ego’ do seu autor. Confirmar-se-ia o sábio brocardo: “Quidquid recipitur ad modum recipienies recipitur”, em tradução livre, o conteúdo toma a forma do seu continente.
Para o ditador tribal, travestido de urbano,  a estátua seria o homem das cavernas, tipo Golias da selva, medalhado, terror de aquém e além-mar. Para o agiota avaro, as mãos cerradas saídas dos cofres de um qualquer banco mau. O escultor-antiquário traria  um Pithecantropus erectus, cioso do seu passado longevo. O político astuto ‘contentar-se-ia’ com um polvo mimético de mil tentáculos afogando, como quem afaga, a ilha toda. O oportunista de secretaria não deixaria por mãos alheias o seu auto-milhafre de rapina, de olho fisgado na presa incauta, pronto a engoli-la em cima do mesmo ramo, num repugnante grupo escultórico. O ‘artista’ sardanapalo, devasso inveterado, traçaria o auto-retrato autonómico em um salomão no império do seu harém. E enquanto o senhorio devorasse o ‘sangue, o suor e as lágrimas’ do caseiro, o trabalhador, homem ou mulher, ostentaria o maço e o cinzel, a enxada e o martelo,  de onde tira o magro salário para a família inteira.
Não sei se haveria basalto para tanto escultor da Autonomia… Porque, numa ilha tão escassa como a nossa, posso garantir que lá estão, como numa folclórica galeria, todos esses – e muitos mais - modelos autonómicos que venho descrevendo. Há-os, camaleónicos e, todos eles, gameleónicos, (passe o neologismo) porque, todos eles, ministros ou acólitos no altar da Autonomia da Gamela! Todos, menos os últimos, os trabalhadores fiéis ao seu lugar humilde mas consistente na construção da Ilha, seja qual a sua profissão.
“Serás jovem quanto a tua ideia”, não me canso de repetir e saborear o nosso grande Octávio de Marialva. E, nesta data comemorativa, ouso acrescentar: Serás autónomo quanto o teu pensamento e quanta a tua acção.
Qual será a minha, a tua, a nossa estátua da Autonomia?!

01.Jul.20
Martins Júnior

Sem comentários:

Enviar um comentário