sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O INTRADUZÍVEL PROJECTO MUSICAL DE CRISTINA VIEIRA E NUNO FILIPE

                                                             


-  O Tempo, diz.me o que é o Tempo?

-- Se não me perguntarem, eu sei o que é o Tempo. Mas se me perguntarem, já não sei dizer o que é o Tempo.

Neste histórico dilema e na resposta anómala do filósofo, está todo o abismo entre o sentir e o dizer, entre a emoção e a palavra. E porque a palavra trai ou apouca – sempre! – o pensamento e a emoção, por isso mesmo é preferível dar largas à sensibilidade e deixá-la ficar  “Naquele engano  d‘alma ledo e cego, que Fortuna não deixa durar muito” - como  bem o sentiu Camões no coração de Inês de Castro, ‘aquela que depois de morta foi rainha’.

Assim estou eu aqui  de corpo extático e alma em êxtase esvoaçante ao ritmo crescente do projecto musical de  Cristina Vieira e Nuno Filipe. Ritmo crescente é a linha definidora desta pauta ascensional que nasce da força telúrica da água, do monte, da lenha e das penas aos molhos – penas que soltam  lágrimas caídas dos olhos de multidões curvadas como servos da gleba na terra de senhorios – esses senhores que matam quem lhes trabalha a terra.         

            Ninguém como nós, madeirenses, saberá sentir e interiorizar a mensagem desta criação artística, uma ária plangente, um grito abafado que pretende atravessar vales sombrios, subir socalcos até alcançar as nuvens longínquas e aí verter um pranto antigo. É patente que este projecto foi inspirado numa situação endémica da Madeira, o ‘leonino contrato da colonia’, sob cuja canga gemeram gerações seculares, que a voz de Cristina Vieira condensa neste dramático soluço:

Os molhos deitam-me ao chão

Quase não consigo andar

Já me dói o coração

 

            Quantas vezes vi e ouvi eu este amargo desabafo da boca de homens e mulheres com quem, por missão, tive de contactar, vítimas da exploração do campesinato sob o jugo da colonia, actualmente e em boa hora já abolido!

            Por tudo isto e por muito mais que  subentendo sem palavras, ousarei classificar esta jóia musical como um portentoso clamor revolucionário sob uma veste de lilás macerado pela dor – uma dor sublimada pela voz etérea, intangível da Cristina e pelo estro criador do Nuno Filipe.

            Por hoje – e porque ‘as palavras estão gastas’ -- deixem-me ficar neste estado de alma, dolente e vigilante, em que a melodia me tem trazido cativo dias e meses ininterruptos. Comigo está também Sebastião da Gama, desde quando escreveu:

            Ai, linda, longa melodia imensa…

 

            21.Out.22

            Martins Júnior

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