-
O Tempo, diz.me o que é o Tempo?
-- Se não me perguntarem, eu sei o que é o Tempo. Mas se me perguntarem,
já não sei dizer o que é o Tempo.
Neste histórico dilema e
na resposta anómala do filósofo, está todo o abismo entre o sentir e o dizer,
entre a emoção e a palavra. E porque a palavra trai ou apouca – sempre! – o
pensamento e a emoção, por isso mesmo é preferível dar largas à sensibilidade e
deixá-la ficar “Naquele engano d‘alma ledo e cego, que Fortuna não deixa
durar muito” - como bem o sentiu Camões no coração de Inês de
Castro, ‘aquela que depois de morta foi rainha’.
Assim estou eu aqui de corpo extático e alma em êxtase esvoaçante
ao ritmo crescente do projecto musical de Cristina Vieira e Nuno Filipe. Ritmo crescente
é a linha definidora desta pauta ascensional que nasce da força telúrica da
água, do monte, da lenha e das penas aos molhos – penas que soltam lágrimas caídas dos olhos de multidões curvadas
como servos da gleba na terra de senhorios – esses senhores que matam quem lhes
trabalha a terra.
Ninguém
como nós, madeirenses, saberá sentir e interiorizar a mensagem desta criação
artística, uma ária plangente, um grito abafado que pretende atravessar vales
sombrios, subir socalcos até alcançar as nuvens longínquas e aí verter um
pranto antigo. É patente que este projecto foi inspirado numa situação endémica
da Madeira, o ‘leonino contrato da colonia’, sob cuja canga gemeram gerações seculares,
que a voz de Cristina Vieira condensa neste dramático soluço:
Os molhos deitam-me ao chão
Quase não consigo andar
Já me dói o coração
Quantas vezes vi e ouvi eu este
amargo desabafo da boca de homens e mulheres com quem, por missão, tive de contactar,
vítimas da exploração do campesinato sob o jugo da colonia, actualmente e em
boa hora já abolido!
Por
tudo isto e por muito mais que
subentendo sem palavras, ousarei classificar esta jóia musical como um
portentoso clamor revolucionário sob uma veste de lilás macerado pela dor – uma
dor sublimada pela voz etérea, intangível da Cristina e pelo estro criador do
Nuno Filipe.
Por
hoje – e porque ‘as palavras estão gastas’ -- deixem-me ficar neste estado de
alma, dolente e vigilante, em que a melodia me tem trazido cativo dias e meses
ininterruptos. Comigo está também Sebastião da Gama, desde quando escreveu:
Ai, linda, longa melodia imensa…
21.Out.22
Martins Júnior
.
Sem comentários:
Enviar um comentário