Quem chega à portagem inevitável do
“Fim-Princípio de Semana”, aí procura no mercado da estação o seu prazer-saber
(os ingleses dizem hobby), cada qual
na sua prateleira: para uns o futebol, outros o filme, a caminhada, o romance
ou o poema, ainda a praia ou o pic-nic familiar. E com isso acha passagem
saudável para a semana seguinte. Por mim, escolho o LIVRO – o maior da história
– e nele encontro a luzerna suficiente (nalguns casos, enfeixada em múltiplas
direcções) que dá trânsito seguro até à estação hebdomadária seguinte.
Ontem foi o caso. No texto proposto urbi et orbi vem um tratado de psico-sociologia
aplicada a cada dia e a cada pessoa, a cada instituição e a toda a
circunstância da vida em sociedade. A lição quem a deu foi “Aquele que não
sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca”. Mas tinha a
percepção nítida das relações humanas, observador atento das assimetrias entre
o trabalho e o capital, consequentemente da indiferença dos nababos bem
instalados face à míngua dos deserdados da sorte, comparando, a opulência do
tubarão, cego e sôfrego, em cima dos frágeis peixes que lhe fogem espavoridos.
Já que falamos no reino animal, o Mestre da Lição dominical aponta o contraste
entre ‘a lagartixa que ambiciona chegar a jacaré’ e, do lado oposto, o gigante
laborioso que se sente feliz em ser apenas um servente indiferenciado.
O caso é muito sério, espelho
deprimente da condição humana em todos nos revemos. Para melhor entendimento
convém abrir o LIVRO, em Lucas, capítulo 17, 7-19.
O Nazareno, conhecedor directo do mundo laboral,
quer na orla do Mar de Tiberíades quer nas pastagens dos rebanhos e da produção
agrícola, põe ao rubro a questão: O
criado (o assalariado, o colono ou caseiro) trabalhou, desde o nascer ao pôr do
sol, chega extenuado a casa do patrão (o latifundiário, o dono da quinta, o
senhorio). Achais vós – pergunta o Mestre ao povo que o acompanha em multidão -
achais que este, o senhorio, vai
convidá-lo a sentar-se à mesa, vai servir-lhe a ceia?... Jamais. Vai é obrigar
o pobre trabalhador a redobrar de esforços, trazer ao patrão as melhores carnes
e os melhores vinhos. E tu, amanha-te
depois”.
Será possível desenhar e repudiar, em
tão breve alegoria, o fosso sem fundo da insensibilidade de uma minoria de
poderosos diante das intermináveis turbas de explorados prostrados à beira
deles?... Verdade seja dita que não se conhece o contexto em que se desenrolou
esta cena. Porque, noutro cenário, o mesmo Jesus de Nazaré faz justiça e
enaltece o dono daqueles seus servos que o esperam, até altas horas da noite,
sempre vigilantes no portão da sua quinta: “Mandá-los-á sentar-se e ele próprio
servi-los-à mesa”. (Lucas, 24, 46).
Aproximemos o Mestre para mais perto de
nós. Sem dúvida que aplaudiria toda a luta de activistas, sindicalistas,
legisladores e operários anónimos que conseguiram o seu lugar ao sol, que
aboliram a escravatura, que determinaram o justo horário de trabalho, o
pagamento de horas extraordinárias, o direito a férias. O trabalhador tem o
mesmo sangue do explorador, o mesmo cérebro, o mesmo direito ao repouso
regenerador.
Mas o Nazareno, na mesma alegoria,
subentende e distingue os servos, os trabalhadores, aqueles que cultivam uma digna
consciência profissional e, nos antípodas, os oportunistas, os que ‘fazem que
andam mas não andam’.
Distingue
ainda os que jogam para a plateia, para o capataz, para o olheiro, para o
patrão, sempre na mira de fintar e trepar às costas dos outros. Não é este o
grande teatro do mundo?... Na administração, no clubismo, nos partidos, nos
parlamentos, nos governos e (pasme-se!) até na religião!... Pular aos tronos e
aos baldaquinos do mundo à custa do pobre Peregrino da Galileia !!!
Do texto de Lucas sobressaem o louvor e
o justíssimo brio de quem trabalha sob o signo da consciência profissional ou –
como anteontem dizia Maria João Viamonte em entrevista ao DN/Lisboa – “A minha
divisa é fazer a coisa certa, mesmo quando ninguém está a ver”. A estes receita Jesus um desabafo que tem
tanto de brio pessoal como de realismo social perante os “idiotas úteis” que
proliferam no reino da mediocridade.
Aos
verdadeiros profissionais, o Mestre recomenda que não esperem os louros e os
galões da sociedade do espectáculo mundano. “Depois do trabalho feito, dizei: “Somos
servos inúteis, só fizemos o que devíamos fazer” ! Já o ouvimos também de uma sábia tradição da
filosofia árabe:“A primeira e a maior recompensa do dever cumprido é ter
cumprido esse dever”.
Dos
idiotas úteis nem merece a pena falar…
03.Out.22
Martins Júnior
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