segunda-feira, 3 de outubro de 2022

DOS IDIOTAS ÚTEIS E DOS SERVOS INÚTEIS

                                                                                 


         Quem chega à portagem inevitável do “Fim-Princípio de Semana”, aí procura no mercado da estação o seu prazer-saber (os ingleses dizem hobby), cada qual na sua prateleira: para uns o futebol, outros o filme, a caminhada, o romance ou o poema, ainda a praia ou o pic-nic familiar. E com isso acha passagem saudável para a semana seguinte. Por mim, escolho o LIVRO – o maior da história – e nele encontro a luzerna suficiente (nalguns casos, enfeixada em múltiplas direcções) que dá trânsito seguro até à estação hebdomadária seguinte.

         Ontem foi o caso. No texto proposto urbi et orbi vem um tratado de psico-sociologia aplicada a cada dia e a cada pessoa, a cada instituição e a toda a circunstância da vida em sociedade. A lição quem a deu foi “Aquele que não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca”. Mas tinha a percepção nítida das relações humanas, observador atento das assimetrias entre o trabalho e o capital, consequentemente da indiferença dos nababos bem instalados face à míngua dos deserdados da sorte, comparando, a opulência do tubarão, cego e sôfrego, em cima dos frágeis peixes que lhe fogem espavoridos. Já que falamos no reino animal, o Mestre da Lição dominical aponta o contraste entre ‘a lagartixa que ambiciona chegar a jacaré’ e, do lado oposto, o gigante laborioso que se sente feliz em ser apenas  um servente indiferenciado.

         O caso é muito sério, espelho deprimente da condição humana em todos nos revemos. Para melhor entendimento convém abrir o LIVRO, em Lucas, capítulo 17, 7-19.

         O  Nazareno, conhecedor directo do mundo laboral, quer na orla do Mar de Tiberíades quer nas pastagens dos rebanhos e da produção agrícola,  põe ao rubro a questão: O criado (o assalariado, o colono ou caseiro) trabalhou, desde o nascer ao pôr do sol, chega extenuado a casa do patrão (o latifundiário, o dono da quinta, o senhorio). Achais vós – pergunta o Mestre ao povo que o acompanha em multidão -  achais que este, o senhorio, vai convidá-lo a sentar-se à mesa, vai servir-lhe a ceia?... Jamais. Vai é obrigar o pobre trabalhador a redobrar de esforços, trazer ao patrão as melhores carnes e os  melhores vinhos. E tu, amanha-te depois”.

         Será possível desenhar e repudiar, em tão breve alegoria, o fosso sem fundo da insensibilidade de uma minoria de poderosos diante das intermináveis turbas de explorados prostrados à beira deles?... Verdade seja dita que não se conhece o contexto em que se desenrolou esta cena. Porque, noutro cenário, o mesmo Jesus de Nazaré faz justiça e enaltece o dono daqueles seus servos que o esperam, até altas horas da noite, sempre vigilantes no portão da sua quinta: “Mandá-los-á sentar-se e ele próprio servi-los-à mesa”. (Lucas, 24, 46).

         Aproximemos o Mestre para mais perto de nós. Sem dúvida que aplaudiria toda a luta de activistas, sindicalistas, legisladores e operários anónimos que conseguiram o seu lugar ao sol, que aboliram a escravatura, que determinaram o justo horário de trabalho, o pagamento de horas extraordinárias, o direito a férias. O trabalhador tem o mesmo sangue do explorador, o mesmo cérebro, o mesmo direito ao repouso regenerador.

         Mas o Nazareno, na mesma alegoria, subentende e distingue os servos, os trabalhadores, aqueles que cultivam uma digna consciência profissional e, nos antípodas, os oportunistas, os que ‘fazem que andam mas não andam’.

Distingue ainda os que jogam para a plateia, para o capataz, para o olheiro, para o patrão, sempre na mira de fintar e trepar às costas dos outros. Não é este o grande teatro do mundo?... Na administração, no clubismo, nos partidos, nos parlamentos, nos governos e (pasme-se!) até na religião!... Pular aos tronos e aos baldaquinos do mundo à custa do pobre Peregrino  da Galileia !!!

         Do texto de Lucas sobressaem o louvor e o justíssimo brio de quem trabalha sob o signo da consciência profissional ou – como anteontem dizia Maria João Viamonte em entrevista ao DN/Lisboa – “A minha divisa é fazer a coisa certa, mesmo quando ninguém está a ver”.  A estes receita Jesus um desabafo que tem tanto de brio pessoal como de realismo social perante os “idiotas úteis” que proliferam no reino da mediocridade.

Aos verdadeiros profissionais, o Mestre recomenda que não esperem os louros e os galões da sociedade do espectáculo mundano. “Depois do trabalho feito, dizei: “Somos servos inúteis, só fizemos o que devíamos fazer” !  Já o ouvimos também de uma sábia tradição da filosofia árabe:“A primeira e a maior recompensa do dever cumprido é ter cumprido esse dever”.

Dos idiotas úteis nem merece a pena falar…

 

03.Out.22

Martins Júnior        

 

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