A locomotiva é o Tempo. O maquinista
fica bem instalado no “sindicato” dos publicistas, opinadores, repórteres de
imagem, donos dos media. O vagão, de
tão pequeno (cabe na sala, na cozinha, no quarto da casa) chega a ser maior que
todas as carruagens da composição: chama-se televisor.
Para quem me acompanha na imparidade dos dias, achará
estranho o discorrer deste que não passa de um desabafo, quase um fastio, uma
repulsa instintiva àquilo com que a pequena caixa nos presenteia em troca da guarida
que lhe franqueamos em nossas casas. Conforta-me neste repúdio a convicção de
que o mesmo perpassa por muitos consumidores do mesmo écran. Além disso, lembro
que estamos a fazer um tríduo anual em cujo percurso é a morte que se nos
apresenta: 31 de Outubro, vigília dos heróis anónimos, nossos antepassados - 1
de Novembro, denominado de “Todos os Santos” - e, no dia seguinte, “Os Finados”,
Dia da Saudade.
Se,
por um lado, curvamo-nos afectuosamente sobre a memória daqueles de quem a
campa nos faz verter uma lágrima de saudade, por outro, contrasta-nos e
revolta-nos a exploração das tragédias que grassam por esse mundo fora, os mórbidos
requintes da fragilidade humana, os revérberos explosivos das magmas vulcânicas
ou das placas tectónicas e seus efeitos.
Não
está em causa a notícia, mas a exploração dela. A repetição exaustiva das mesmas
cenas, do mesmo sangue derramado, dos mortos espalhados na estrada, do
esmagamento das vítimas – é todo este massacre cruento que o mini-macro-vagão
mortuário transporta diante dos nossos olhos, dentro das nossas casas. As
estações rivalizam entre si, ambiciosas de qual faz a mais trémula autópsia do
desastre. Algumas até fazem da corrida uma maratona febril para chegar e
arvorar-se em flecha: ”Démos primeiro”!
É
a tragédia nas Filipinas, aluviões na Venezuela, fogos na Califórnia, asfixia
na Coreia do Sul, furor no Irão, barbárie em Cabo Delgado, fome esquálida nos aldeamentos
afro-asiáticos e, por todos, o interminável tártaro russo na Ucrânia. Centenas,
milhares. O que se pede é que não multipliquem até aos milhões, até à neurose
colectiva. Basta! Poupem-nos!
Há,
porém, o outro cúmplice: o receptor! Nunca o emissor investiria no produto se
não tivesse a certeza dos apetites, também sado-masoquistas, também mórbidos,
do receptor, paradoxalmente, o adquirente do televisor e senhorio do quarto ao
qual deu asilo. Parece que há dentro do nosso cérebro um labirinto obscuro que
abraça o absurdo, a vertigem do horribilis
casus, que nos leva à atração pelo caos e pela patologia do abismo sangrento.
Tenha-se em conta o filme de Mel Gibson sobre a paixão e morte de Cristo.
Não
chegará aos resguardados centros televisivos este meu desabafo, muito menos a
minha contestação. Mas se for possível bater à porta do ‘vagão cangalheiro’
colocado na parede do nosso quarto, aconselharia desligar a ‘estação das
desgraças’ e seus congéneres de ‘tesournhos deprimentes’. Para bem da higiene
mental doméstica e salvaguarda da saúde pública!
Do
desvio periférico que acabo de partilhar convosco, reentro no optimismo
homeostático em que procuro situar-me todos os dias, sem recusar olhar frontalmente
para os dramas da condição humana e, se possível, ajudar à sua solução.
Prescindindo do vagão-cadáver dentro de casa, caminho lado a lado com a
realidade da morte – a minha Irmã Morte, dizia Francisco de Assis – sobretudo nestes
três dias, com a Ode Triunfal do 1º de Novembro e, no dia seguinte, os lilases
da Saudade na auréola dos que, embora longe, coabitam à nossa beira.
31.Out.1-2Nov.22
Martins Júnior
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