segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O VAGÃO DA MORTE DENTRO DA NOSSA CASA…



         A locomotiva é o Tempo. O maquinista fica bem instalado no “sindicato” dos publicistas, opinadores, repórteres de imagem, donos dos media. O vagão, de tão pequeno (cabe na sala, na cozinha, no quarto da casa) chega a ser maior que todas as carruagens da composição: chama-se televisor.

         Para quem me acompanha na imparidade dos dias, achará estranho o discorrer deste que não passa de um desabafo, quase um fastio, uma repulsa instintiva àquilo com que a pequena caixa nos presenteia em troca da guarida que lhe franqueamos em nossas casas. Conforta-me neste repúdio a convicção de que o mesmo perpassa por muitos consumidores do mesmo écran. Além disso, lembro que estamos a fazer um tríduo anual em cujo percurso é a morte que se nos apresenta: 31 de Outubro, vigília dos heróis anónimos, nossos antepassados - 1 de Novembro, denominado de “Todos os Santos” - e, no dia seguinte, “Os Finados”, Dia da Saudade.

Se, por um lado, curvamo-nos afectuosamente sobre a memória daqueles de quem a campa nos faz verter uma lágrima de saudade, por outro, contrasta-nos e revolta-nos a exploração das tragédias que grassam por esse mundo fora, os mórbidos requintes da fragilidade humana, os revérberos explosivos das magmas vulcânicas ou das placas tectónicas e seus efeitos.

Não está em causa a notícia, mas a exploração dela. A repetição exaustiva das mesmas cenas, do mesmo sangue derramado, dos mortos espalhados na estrada, do esmagamento das vítimas – é todo este massacre cruento que o mini-macro-vagão mortuário transporta diante dos nossos olhos, dentro das nossas casas. As estações rivalizam entre si, ambiciosas de qual faz a mais trémula autópsia do desastre. Algumas até fazem da corrida uma maratona febril para chegar e arvorar-se em flecha: ”Démos primeiro”!

É a tragédia nas Filipinas, aluviões na Venezuela, fogos na Califórnia, asfixia na Coreia do Sul, furor no Irão, barbárie em Cabo Delgado, fome esquálida nos aldeamentos afro-asiáticos e, por todos, o interminável tártaro russo na Ucrânia. Centenas, milhares. O que se pede é que não multipliquem até aos milhões, até à neurose colectiva. Basta! Poupem-nos!

Há, porém, o outro cúmplice: o receptor! Nunca o emissor investiria no produto se não tivesse a certeza dos apetites, também sado-masoquistas, também mórbidos, do receptor, paradoxalmente, o adquirente do televisor e senhorio do quarto ao qual deu asilo. Parece que há dentro do nosso cérebro um labirinto obscuro que abraça o absurdo, a vertigem do horribilis casus, que nos leva à atração pelo caos e pela patologia do abismo sangrento. Tenha-se em conta o filme de Mel Gibson sobre a paixão e morte de Cristo.

Não chegará aos resguardados centros televisivos este meu desabafo, muito menos a minha contestação. Mas se for possível bater à porta do ‘vagão cangalheiro’ colocado na parede do nosso quarto, aconselharia desligar a ‘estação das desgraças’ e seus congéneres de ‘tesournhos deprimentes’. Para bem da higiene mental doméstica e salvaguarda da saúde pública!

  Do desvio periférico que acabo de partilhar convosco, reentro no optimismo homeostático em que procuro situar-me todos os dias, sem recusar olhar frontalmente para os dramas da condição humana e, se possível, ajudar à sua solução. Prescindindo do vagão-cadáver dentro de casa, caminho lado a lado com a realidade da morte – a minha Irmã Morte, dizia Francisco de Assis – sobretudo nestes três dias, com a Ode Triunfal do 1º de Novembro e, no dia seguinte, os lilases da Saudade na auréola dos que, embora longe, coabitam  à nossa beira.

 

31.Out.1-2Nov.22

Martins Júnior

 

 

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