terça-feira, 29 de agosto de 2023

“LENDAS E NARRATIVAS” DO MILAGRE – UMA SEMANA INTEIRA SOB O BISTURI DE SÃO ROQUE E O BISTURI QUE ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS

                                                                                


           Para a conclusão dos considerandos descritos no último blogue, trago o título de uma das melhores obras de Alexandre Herculano, precisamente para detectar uma tendência secular do povo crente em matéria de “milagres”, qual seja, a de dar mais crédito às lendas que às narrativas. É  o caso das mil vezes “Virgens Marias” das azinheiras, das furnas, dos céus, das estrelas e, na história do Funchal, a “Nossa Senhora do Calhau” – e de toda a hagiografia cristã.

          É também o caso de São Roque. O florilégio das lendas sanroquenses multiplica--se por diversos cambiantes, sobremaneira na tragédia das epidemias, mormente na peste bubónica. No Funchal de 1521, o sorteio para  Padroeiro da cidade ditou o seguinte resultado: São Tiago Menor como Patrono Principal e dois outros como patronos secundários: São Roque e São Sebastião.

          Há, porém, a narrativa – esta menos imaginativa, no entanto mais realista, escrutinada, científica. E diz assim: O jovem de Montpellier abandonou os bens, toda a riqueza do património familiar, partiu para a Itália, fustigada sob uma mortífera crise sanitária e com o bisturi que trazia consigo livrou da morte muitas vítimas da peste negra.

Não obstante os rudimentares conhecimentos da ciência médico-cirúrgica,  a narrativa histórica remete-nos para um plano intelectual muito sério, em si mesmo, que se transforma num apelo irresistível, incontornável: a causa motora do fenómeno miraculoso atribuído a São Roque. Advirá ela de uma estirpe extraterrestre, invisível e mágica  ou estará factualmente na ponta do seu bisturi? Por outras palavras: o fenómeno chamado milagre radica dentro ou fora do ‘milagrado’? E ainda: dependerá de forças exógenas ou, antes, nasce de uma fonte endógena inscrita no mais íntimo do composto psicossomático que define o ser humano – a vontade motivadora, o empenho, a persistência, numa palavra, a Fé?!

É o próprio Nazareno que esclarece, ao despedir-se de um feliz contemplado: “Foi a TUA FÉ que te curou” – subentendendo: Não fui eu, foste TU!

Muitas, quase todas, orações-pedidos-requerimentos feitos a Deus revelam um grave desvio de direcção e até configuram uma ofensa ao próprio Destinatário. Exemplifico com um caso, por muitos entre outros: “Senhor, dai-nos a paz”. Se pudéssemos ouvir a resposta, não seria muito diferente desta, que é uma evidência: “Mas isso não é comigo. É convosco. Acaso sou Eu o carcereiro da Paz?... Ninguém mais que Eu, Pai de todos, deseja a Paz entre vós. Mas ela está só nas vossas mãos”.

Recorrendo ao Velho Testamento, quando o povo hebreu estava esmagado sob o regime esclavagista do Faraó, o Senhor Deus Ihaveh não desceu pessoalmente ao Egipto. Ordenou peremptoriamente a Moisés: “Vai tu – tu mesmo – vai libertar o Meu Povo escravizado! Não tenhas medo, enfrenta o Faraó”!

 O Supremo Arquitecto deu ao Homem e à Natureza – deu, delegou, passou procuração inata – o poder de realizar aquilo que as mentalidades primitivas designavam por milagres. Olhemos o reino das ciências, da medicina, da tecnologia, da psicanálise, da arte. Está nas mãos dos humanos muito daquilo que os humanos pedem a Deus.

São Bento, justamente cognominado o “Pai da Europa”, desde o século IV, inscreveu como talismã e norma da sua Organização monástica; Ora et Labora – reza, mas trabalha! É-lhe atribuída esta máxima de intensa espiritualidade: “Faz tudo, como se tudo dependesse de ti. E depois, só depois, espera tudo como se tudo dependesse de Deus”.

Até que funduras conceptuais e até que altitudes ascético-místicas levar-nos-

-ia o “bisturi de São Roque”?!...    

Mas não caberão num simples blogue tais desenvolvimentos. No entanto, durante toda a semana fui tomado pela mão do grande teólogo Andrés Torres Queiruga, no seu fabuloso livro REPENSAR O MAL ((Ed.Galaxia, 2010,Vigo) de que respigo alguns breves excertos acerca da fenomenologia do ‘Milagre’. Ei-los:

1 – Análise teológico-metafísica:

       Suponhamos que por um motivo diferente, digamos por uma petição devota ou por intercessão de um santo, Deus decide fazer um milagre. Isso significaria, nada nada mais nada menos, que a negação da Infinitude do seu amor e do estar sempre em acção, porque - permita-se-me falar assim – tal seria motivado por uma causa secundária e externa, isto é, Deus não realizaria esse acto de amor se não fosse essa causa secundária e estranha a Ele próprio. Sendo assim, o seu Amor deixaria de ser Infinito e já não seria o Amor sempre em acção.    

2 – E nesse caso, dar-se-ia uma imagem distorcida de Deus. Porque se os milagres fossem possíveis a Deus e os realizasse em determinadas ocasiões, a conclusão seria terrível. Com efeito, são tantas e tão graves as necessidades e sabendo-se que à sua omnipotência nada lhe custaria multiplicar os milagres, então esse deus apresentar-se-ia como um criador avarento, indiferente e cruel face ao sofrimento da imensa maioria das suas criaturas. A distorsão da sua imagem agravar-se-ia para um incompreensível favoritismo que a uns diria “sim” e a outros  “não”. Pior ainda se o ‘favor’ dependesse de convencer Deus com ofertas, pagamentos, sacrifícios e recomendações de intercessores.

3 –  Respeitando embora  as palavras piedosas e até veneráveis, é preciso falar com clareza, pois o discurso habitual conduz-nos ao cúmulo de um verdadeiro  escândalo para a sensibilidade comum. Concretizando: Na mesma enfermaria do hospital, estão doentes em fase terminal e, graças a uma novena mandada celebrar por um familiar devoto, um deles resulta milagrosamente curado. A surpresa inicial pode parecer uma confirmação da fé e o valor da oração. Mas seguramente não lhe tardará  a crítica, primeiro, da parte dos outros doentes: porquê a ele e não a mim?

E da parte do próprio doente miraculado: tanto tempo que Deus me vê a sofrer e só agora  me curou porque um familiar que me ama de verdade O convenceu. Não poderia curar também os outros?... Ademais, vejo todo o pessoal sanitário fazendo todos os possíveis para aliviar o nosso sofrimento e Deus nada faz, quando nada lhe custaria fazê-lo.

          4 – Citação de Barry L.Withney (livro What are they saving about God and evil (New Yok (1989):

          Esperar que Deus intervenha, violando as leis que Deus criou, apareceria como implicando que Deus não foi capaz de criar leis adequadas desde o princípio. E isso sugeriria que Deus é menos que perfeito e negaria efectivamente a própria natureza de Deus como suprema perfeição.

          Lições de Abismo – comentaria o notável escrito brasileiro Gustavo Corção perante reflexões tão seguras e corajosas – daquela coragem que só a Verdade produz!  É o próprio Professor de Teologia, Andrés Torres Queiruga que o reconhece, quando apõe ao seu escrito a seguinte ‘confissão’:

          É normal que a sensibilidade do leitor ou da leitora, não inferior à minha, sinta um forte incómodo ante esta linha de raciocínio (confesso que duvidei muito se devia escrever ou não estas páginas). Mas escondê-lo seria negar a evidência.

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          Eis a justificação de uma semana que o ‘bisturi’  de São Roque do Funchal me ofereceu, com tal forçosa incisiva que me obrigou a uma introspecção aprofundada na leitura e no silêncio. Para continuar.

          Não se invoque mais o nome de Deus em vão! E para serenar os ânimos termino com uma definição soberana, com que Andrés Torres Queiruga encerra as suas esclarecedoras reflexões: “Nada é milagre e tudo é milagre”!

 

          21-29.Ago.23

          Martins Júnior      

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