Para a conclusão dos considerandos descritos no último blogue, trago o título de uma das melhores obras de Alexandre Herculano, precisamente para detectar uma tendência secular do povo crente em matéria de “milagres”, qual seja, a de dar mais crédito às lendas que às narrativas. É o caso das mil vezes “Virgens Marias” das azinheiras, das furnas, dos céus, das estrelas e, na história do Funchal, a “Nossa Senhora do Calhau” – e de toda a hagiografia cristã.
É também o caso de São Roque. O
florilégio das lendas sanroquenses multiplica--se por diversos cambiantes,
sobremaneira na tragédia das epidemias, mormente na peste bubónica. No Funchal
de 1521, o sorteio para Padroeiro da cidade
ditou o seguinte resultado: São Tiago Menor como Patrono Principal e dois
outros como patronos secundários: São Roque e São Sebastião.
Há, porém, a narrativa – esta menos imaginativa,
no entanto mais realista, escrutinada, científica. E diz assim: O jovem de
Montpellier abandonou os bens, toda a riqueza do património familiar, partiu
para a Itália, fustigada sob uma mortífera crise sanitária e com o bisturi que
trazia consigo livrou da morte muitas vítimas da peste negra.
Não
obstante os rudimentares conhecimentos da ciência médico-cirúrgica, a narrativa histórica remete-nos para um plano
intelectual muito sério, em si mesmo, que se transforma num apelo irresistível,
incontornável: a causa motora do fenómeno miraculoso atribuído a São Roque. Advirá
ela de uma estirpe extraterrestre, invisível e mágica ou estará factualmente na ponta do seu bisturi?
Por outras palavras: o fenómeno chamado milagre radica dentro ou fora do
‘milagrado’? E ainda: dependerá de forças exógenas ou, antes, nasce de uma
fonte endógena inscrita no mais íntimo do composto psicossomático que define o
ser humano – a vontade motivadora, o empenho, a persistência, numa palavra, a
Fé?!
É
o próprio Nazareno que esclarece, ao despedir-se de um feliz contemplado: “Foi
a TUA FÉ que te curou” – subentendendo: Não fui eu, foste TU!
Muitas,
quase todas, orações-pedidos-requerimentos feitos a Deus revelam um grave
desvio de direcção e até configuram uma ofensa ao próprio Destinatário. Exemplifico
com um caso, por muitos entre outros: “Senhor, dai-nos a paz”. Se pudéssemos
ouvir a resposta, não seria muito diferente desta, que é uma evidência: “Mas
isso não é comigo. É convosco. Acaso sou Eu o carcereiro da Paz?... Ninguém mais
que Eu, Pai de todos, deseja a Paz entre vós. Mas ela está só nas vossas mãos”.
Recorrendo
ao Velho Testamento, quando o povo hebreu estava esmagado sob o regime
esclavagista do Faraó, o Senhor Deus Ihaveh não desceu pessoalmente ao Egipto.
Ordenou peremptoriamente a Moisés: “Vai tu – tu mesmo – vai libertar o Meu Povo
escravizado! Não tenhas medo, enfrenta o Faraó”!
O Supremo Arquitecto deu ao Homem e à Natureza
– deu, delegou, passou procuração inata – o poder de realizar aquilo que as
mentalidades primitivas designavam por milagres. Olhemos o reino das ciências,
da medicina, da tecnologia, da psicanálise, da arte. Está nas mãos dos humanos
muito daquilo que os humanos pedem a Deus.
São
Bento, justamente cognominado o “Pai da Europa”, desde o século IV, inscreveu
como talismã e norma da sua Organização monástica; Ora et Labora – reza,
mas trabalha! É-lhe atribuída esta máxima de intensa espiritualidade: “Faz
tudo, como se tudo dependesse de ti. E depois, só depois, espera tudo como se
tudo dependesse de Deus”.
Até
que funduras conceptuais e até que altitudes ascético-místicas levar-nos-
-ia
o “bisturi de São Roque”?!...
Mas
não caberão num simples blogue tais desenvolvimentos. No entanto, durante toda
a semana fui tomado pela mão do grande teólogo Andrés Torres Queiruga, no seu fabuloso
livro REPENSAR O MAL ((Ed.Galaxia, 2010,Vigo) de que respigo alguns
breves excertos acerca da fenomenologia do ‘Milagre’. Ei-los:
1
– Análise
teológico-metafísica:
Suponhamos que por um motivo
diferente, digamos por uma petição devota ou por intercessão de um santo, Deus
decide fazer um milagre. Isso significaria, nada nada mais nada menos, que a
negação da Infinitude do seu amor e do estar sempre em acção, porque - permita-se-me
falar assim – tal seria motivado por uma causa secundária e externa, isto é,
Deus não realizaria esse acto de amor se não fosse essa causa secundária e
estranha a Ele próprio. Sendo assim, o seu Amor deixaria de ser Infinito e já
não seria o Amor sempre em acção.
2
– E nesse caso, dar-se-ia uma imagem distorcida de Deus.
Porque se os milagres fossem possíveis a Deus e os realizasse em determinadas
ocasiões, a conclusão seria terrível. Com efeito, são tantas e tão graves as
necessidades e sabendo-se que à sua omnipotência nada lhe custaria multiplicar
os milagres, então esse deus apresentar-se-ia como um criador avarento,
indiferente e cruel face ao sofrimento da imensa maioria das suas criaturas. A
distorsão da sua imagem agravar-se-ia para um incompreensível favoritismo que a
uns diria “sim” e a outros “não”. Pior
ainda se o ‘favor’ dependesse de convencer Deus com ofertas, pagamentos,
sacrifícios e recomendações de intercessores.
3
– Respeitando embora
as palavras piedosas e até veneráveis, é
preciso falar com clareza, pois o discurso habitual conduz-nos ao cúmulo de um
verdadeiro escândalo para a
sensibilidade comum. Concretizando: Na mesma enfermaria do hospital, estão
doentes em fase terminal e, graças a uma novena mandada celebrar por um
familiar devoto, um deles resulta milagrosamente curado. A surpresa inicial
pode parecer uma confirmação da fé e o valor da oração. Mas seguramente não lhe
tardará a crítica, primeiro, da parte
dos outros doentes: porquê a ele e não a mim?
E
da parte do próprio doente miraculado: tanto tempo que Deus me vê a sofrer e só
agora me curou porque um familiar que me
ama de verdade O convenceu. Não poderia curar também os outros?... Ademais,
vejo todo o pessoal sanitário fazendo todos os possíveis para aliviar o nosso
sofrimento e Deus nada faz, quando nada lhe custaria fazê-lo.
4 – Citação de Barry L.Withney (livro What are they saving about God and
evil (New Yok (1989):
Esperar
que Deus intervenha, violando as leis que Deus criou, apareceria como
implicando que Deus não foi capaz de criar leis adequadas desde o princípio. E
isso sugeriria que Deus é menos que perfeito e negaria efectivamente a própria
natureza de Deus como suprema perfeição.
Lições de Abismo – comentaria o
notável escrito brasileiro Gustavo Corção perante reflexões tão seguras e
corajosas – daquela coragem que só a Verdade produz! É o próprio Professor de Teologia, Andrés
Torres Queiruga que o reconhece, quando apõe ao seu escrito a seguinte ‘confissão’:
É normal que a sensibilidade do
leitor ou da leitora, não inferior à minha, sinta um forte incómodo ante esta
linha de raciocínio (confesso que duvidei muito se devia escrever ou não estas
páginas). Mas escondê-lo seria negar a evidência.
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Eis a justificação de uma semana que o
‘bisturi’ de São Roque do Funchal me
ofereceu, com tal forçosa incisiva que me obrigou a uma introspecção
aprofundada na leitura e no silêncio. Para continuar.
Não se invoque mais o nome de Deus em
vão! E para serenar os ânimos termino com uma definição soberana, com que Andrés
Torres Queiruga encerra as suas esclarecedoras reflexões: “Nada é milagre e
tudo é milagre”!
21-29.Ago.23
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