domingo, 23 de agosto de 2020

“QUEM ÉS TU?”... “QUEM SOU EU?”…

                                                                         

Todo o dia dois batentes graves e fundos bateram à minha porta e perseguiram o subterrâneo de mim mesmo:

“Quem és tu?”  e   “Quem sou Eu?”

O primeiro veio da boca angustiada de Madalena ao Romeiro, na preciosa construção dramatúrgica de Almeida Garrett, Frei Luis de Sousa: “Quem és tu, Romeiro?”.  E ele logo respondeu: “Ninguém!”. O enigma da resposta era o que mais atormentava o coração de Madalena e era a que ela menos esperava.

O segundo surgiu, em discurso directo, da interpelação do Nazareno aos seus mais próximos colaboradores: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Este é o batente que há mais de dois mil anos estala sobre o planeta e ainda hoje foi lido em todos os templos do orbe terrestre. Sem, no entanto, conseguir-se resposta adequada. O que, em síntese, equivale à resposta do Romeiro: “Ninguém!”.

E tal como a definição do Romeiro envolvia o grande mistério de muitas vidas (do cavaleiro D. João de Portugal, da sua mulher Dona Madalena de Vilhena, do putativo marido Manuel Sousa Coutinho e sua filha Maria) assim também – mas numa escala infinita - o designativo “Ninguém!”  de Jesus de Nazaré esconde um mundo mais vasto, a história da própria humanidade e a metamorfose da vida dos mortais. Não se pode descrever o percurso humano e civilizacional sem que nos confrontemos, conscientemente ou não,  com esse herói, quase fantasma,  omnipresente no princípio, no meio e no fim do Homem sobre a terra.

Aqui reside o drama e, para quem se interroga de verdade, aqui começa o tormento. “Quem és Tu, Senhor?” – perguntava atónito Paulo de Tarso. E Ele devolve logo com nova interpelação: “Quem pensas que Eu sou?”. Se observarmos, mesmo que a olho-nu, a geovisão dos regimes, instituições e atitudes comportamentais das diversas sociedades, verificamos que a personalidade de Jesus de Nazaré, tal como o Amor e a Verdade, são os fonemas mais sublimes e, paradoxalmente, os mais esfarrapados, mais distorcidos e vilipendiados no comum dos dias. Parafraseando Pedro Casaldáliga que afirmava ser a democracia uma palavra actualmente profanada, não estarei longe da verdade se disser que Jesus corre também o risco (se é que já não o ultrapassou) de tornar-se um vocábulo desfasado do seu étimo original, enfim, um nome profanado.

E tu, quem dizes que Eu sou?”

Alexis Carrel, já em 1903,  ao livro com que acedeu ao Prémio Nobel da Medicina, deu o título “L’Homme cet Inconnu” – Esse desconhecido, o Homem. Mais tarde,em 2001, o teólogo Juan Arías repetia o mesmo título ao seu “Jesus, Esse Grande Desconhecido”.

É o Grande Desconhecido, esse Jesus de Nazaré. Para não cair em certas aberrações que por aí proliferam, limito-me apenas a confessar que quase me ataca uma vaga de temor incontido quando me proponho falar, pronunciar sequer, o nome de Jesus, tais os usos e abusos, aproveitamentos e apropriações, desvios e deturpações com que levianamente (ou não!) embrulham o Seu nome. Supostas liturgias, devoções, igrejas, religiões, assistências de corpo-presente, intervenções políticas, grande parte de tudo isso não passa de lixo caricatural, farisaico, do rosto do Nazareno…

Ils ont changé ma chanson, ma” – soa-me sempre ao ouvido a voz de Dalida, como se fosse a de Jesus de Nazaré a queixar-se irremediavelmente: “Eles cambiaram-me, trocaram-me por outro, por dinheiro, por vaidade, por poder e arrogância, por nada e por ninguém!”.

“Quem és Tu, Senhor?” – sou eu agora que pergunto e fico-me em escuta, enquanto, para conforto meu, rememoro a confissão de Fiodor  Dostoiewski:

“Para mim, Jesus é o que há de mais belo, mais profundo, mais amável e adorável, mais perfeito. E se me viessem dizer que a Verdade não estava com Jesus ou que Jesus não estava com a Verdade, pois eu preferia ficar com Jesus do que ficar com essa Verdade”.

“Maranatah!”

23.Ago.20

Martins Júnior

1 comentário:

  1. Quem se sente tocado por estas interrogações de âmbito universal, permanece caminhado pelas sombras do silêncio...

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