quarta-feira, 5 de julho de 2017

“FADO E DESFADO”, VIDA E MORTE, ANA MOURA E MARISA


“O Meu Caso” é o dele, José Régio, o teu, o meu, o nosso – comentava  assim Jorge de Sena o teatro do autor do ‘Cântico Negro’. Cada um tem o “seu caso”.  O “meu” hoje sai fora dos redemoinhos cruzados das questões que têm agitado a opinião pública e a publicada. Hoje entro pelo postigo do meu mundo, que guarda, no seu silêncio subaquático, a vida e a morte. E que há de mais alto e profundo, mais retumbante e mais íntimo, mais certo e incerto do que as duas alcovas  em que andamos todo o tempo inconscientemente embalados: o berço e a tumba?!...
Faço, pois, uma pausa no deslumbramento ou na censura sobre os grandes “casos”  que nos cercam e sento-me no banco de pedra do meu terreiro  (se quiserem, podem  sentar-se ao meu lado) para viver um “caso”, este “caso”.
Ao longo dos quase cinquenta anos de vida em comunidade, hoje foi a terceira vez que a família do corpo presente, -- o que foi “ pó erguido e agora pó caído” -- pediu que a última despedida do templo fosse uma canção, não daquelas alienantes que temerariamente adivinham o outro mundo, mas um sopro  de gratidão e saudade nascida no coração deste mundo.
Da primeira vez, veio a filha mais jovem da "Teresinha" (assim lhe chamavam em vida) e pediu-me que realizasse a última vontade da mãe: ”Quando o meu caixão sair da igreja quero ‘ouvir’ aquela canção do sr. padre ‘Festa, Festa do Povo, do Povo que trabalha e faz o mundo novo’. Porque é essa a canção que alivia as minhas dores quando não posso  sofrer mais”. E assim se cumpriu, com a mágoa apertada ao peito.
Da segunda vez, o criativo e brilhante animador das festas e convívios da nossa comunidade, o Carvalho, foi ele próprio que, ao aproximar-se o meridiano que segura o fio da vida, fez o testamento vital do seu desejo: “Ao sair da igreja, peço  aos meus amigos e  companheiros da alegria que toquem e cantem  quadras ao desafio do ‘bailinho’, como quando eu cantava com eles”.  Alguns não tiveram coragem, outros cumpriram. E a morte fez-se vida naquela hora final.
Hoje, foi o  terceiro caso.  A  mãe, “estátua jacente”, de oitenta e cinco anos de idade, juntou-se ao filho, de quarenta. Ela, aqui, na ilha.  Ele, em Londres, mês de Abril,  prematuramente descido ao húmus do berço derradeiro. Três meses os separaram, mas uniu-os hoje o salmo ondulante da “Chuva” com que a voz de Marisa sublimou a inspiração de Jorge Fernando. Foi uma oração ouvida e seguida por todos como um  cântico auroreal de eucaristia. Mais uma vez, cumpriu-se a última vontade.
 Recordo ainda esse dia  de sol, em Lisboa, quando o lutador dos tempos modernos, o saudoso amigo e conterrâneo nosso,  Paquete Oliveira, saiu  da Basílica da Estrela, envolto na magia esvoaçante do “Desfado” de Ana Moura. Foi a marcha emocionante para a entrada na alameda da Casa Comum dos Olivais.
Não me sai da retina o cortejo final de Zeca Afonso pleno e perfeito na sonoridade das canções que criou,  enchendo as ruas da sua cidade.
Para quem cumpriu o seu mandato na Ilha Verde ou no Planeta Azul, o fim é o ‘descanso dos heróis’ e o que o vulgo chama de caixão, logo deixa de sê-lo, para transformar-se em pódio de vitória e trono de glória imorredoira.
No banco de pedra do meu terreiro vejo também “O Meu Caso”, o dele, José Régio, o teu, o meu, o nosso!

05.Jul.17
Martins Júnior



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