“O
Meu Caso” é o dele, José Régio, o teu, o meu, o nosso – comentava assim Jorge de Sena o teatro do autor do ‘Cântico
Negro’. Cada um tem o “seu caso”. O “meu”
hoje sai fora dos redemoinhos cruzados das questões que têm agitado a opinião
pública e a publicada. Hoje entro pelo postigo do meu mundo, que guarda, no seu
silêncio subaquático, a vida e a morte. E que há de mais alto e profundo, mais
retumbante e mais íntimo, mais certo e incerto do que as duas alcovas em que andamos todo o tempo inconscientemente
embalados: o berço e a tumba?!...
Faço,
pois, uma pausa no deslumbramento ou na censura sobre os grandes “casos” que nos cercam e sento-me no banco de pedra
do meu terreiro (se quiserem, podem sentar-se ao meu lado) para viver um “caso”, este
“caso”.
Ao
longo dos quase cinquenta anos de vida em comunidade, hoje foi a terceira vez que
a família do corpo presente, -- o que foi “ pó erguido e agora pó caído” --
pediu que a última despedida do templo fosse uma canção, não daquelas
alienantes que temerariamente adivinham o outro mundo, mas um sopro de gratidão e saudade nascida no coração deste
mundo.
Da
primeira vez, veio a filha mais jovem da "Teresinha" (assim lhe chamavam em vida) e
pediu-me que realizasse a última vontade da mãe: ”Quando o meu caixão sair da
igreja quero ‘ouvir’ aquela canção do sr. padre ‘Festa, Festa do Povo, do Povo
que trabalha e faz o mundo novo’. Porque é essa a canção que alivia as minhas
dores quando não posso sofrer mais”. E
assim se cumpriu, com a mágoa apertada ao peito.
Da
segunda vez, o criativo e brilhante animador das festas e convívios da nossa
comunidade, o Carvalho, foi ele próprio que, ao aproximar-se o meridiano que
segura o fio da vida, fez o testamento vital do seu desejo: “Ao sair da igreja,
peço aos meus amigos e companheiros da alegria que toquem e cantem quadras ao desafio do ‘bailinho’, como quando eu
cantava com eles”. Alguns não tiveram
coragem, outros cumpriram. E a morte fez-se vida naquela hora final.
Hoje,
foi o terceiro caso. A mãe,
“estátua jacente”, de oitenta e cinco anos de idade, juntou-se ao filho, de quarenta.
Ela, aqui, na ilha. Ele, em Londres, mês
de Abril, prematuramente descido ao húmus
do berço derradeiro. Três meses os separaram, mas uniu-os hoje o salmo
ondulante da “Chuva” com que a voz de Marisa sublimou a inspiração de Jorge
Fernando. Foi uma oração ouvida e seguida por todos como um cântico auroreal de eucaristia. Mais uma vez,
cumpriu-se a última vontade.
Recordo ainda esse dia de sol, em Lisboa, quando o lutador dos tempos
modernos, o saudoso amigo e conterrâneo nosso, Paquete Oliveira, saiu da Basílica da Estrela, envolto na magia
esvoaçante do “Desfado” de Ana Moura. Foi a marcha emocionante para a entrada
na alameda da Casa Comum dos Olivais.
Não
me sai da retina o cortejo final de Zeca Afonso pleno e perfeito na sonoridade
das canções que criou, enchendo as ruas
da sua cidade.
Para
quem cumpriu o seu mandato na Ilha Verde ou no Planeta Azul, o fim é o ‘descanso
dos heróis’ e o que o vulgo chama de caixão, logo deixa de sê-lo, para transformar-se
em pódio de vitória e trono de glória imorredoira.
No
banco de pedra do meu terreiro vejo também “O Meu Caso”, o dele, José Régio, o
teu, o meu, o nosso!
05.Jul.17
Martins Júnior
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