domingo, 23 de fevereiro de 2020

HOJE OS EXTREMOS TOCAM-SE: UM OUTRO CARNAVAL


                                                       
 
    O vento ligeiro, quase atrevido, deste fim-de-semana baralhou serpentinas e lantejoulas dos corsos carnavalescos, arrastou-as noite dentro e  por aí andam  no torvelinho batuqueiro, sustentado pela simiesca pobreza de só imitar os sambódromos cariocas. O costumeiro tapume de que “É carnaval, ninguém leva a mal”, não chega para esconder a falta de imaginação criativa na concepção de cenários  e na  execução de músicas originais e coreografias “marca Madeira”, mais nossas que abrasileiradas.
         Machico também viveu o “seu” carnaval. Digo “seu”, porque a par das manifestações estrangeiradas, importadas da capital madeirense, assistiu-se a um desfile diversificado, pitoresco, nalguns casos com mensagens positivas, artisticamente pinceladas daquele “piripiri” saudável, na linha do velho ditado Ridendo castigo mores. Parabéns aos seus promotores e participantes.
         Mas hoje, 23 de Fevereiro, a euforia ensurdecedora do cortejo não conseguiu abafar uma voz e uma personalidade que permanecem vivas, sobretudo nesta estância nascente da ilha. Refiro-me a José Afonso que todos os anos é recordado em Machico. Neste ano, pela coincidência de datas, a evocação de Zeca Afonso realizou-se em ambiente mais intimista, fora do bulício carnavalesco. Por isso, aqui deixo assinalado o nosso reconhecimento por aquele que, passados 33 anos sobre a sua morte, continua presente nos nossos ideais e nos nossos feitos. Impossível findar este dia sem lembrá-lo, “vê-lo”, ali no centro da nossa cidade, abraçado à estátua de Tristão Vaz Teixeira e a cantar na sua voz inconfundível o pregão mensageiro da libertação de Portugal: “Grândola, Vila Morena”. Foi aqui, em Machico, 1976!
         Chegando a casa, puxei da estante um dos volumes da obra de Zeca Afonso, li, reli e, de um salto, ocorreu-me esta quase paradoxal conclusão: afinal, ninguém (ou muito poucos) como ele, seria capaz de criar um extraordinário corso carnavalesco, em que entrariam todos os tipos sociais, uma galeria completa dos,  vulgo dictu, crómos da nossa praça, num contraste singular  que teria tanto de divertido como de cáustico e galvanizador. Convido a quem tiver oportunidade  percorra os títulos das suas composições e há-de aí encontrar a confirmação deste meu palpite.
         De entre todos, porém, escolheria o persuasivo “librete” denominado Os Vampiros. Oh grande Zeca! Estou a ver o solene cortejo desse “bando, com pés de veludo, vestidos de mordomos (do mais fino smoking),agachados, de cócoras até, chupando o sangue fresco da manada”. Vê-los-íamos, os senhores “mandadores sem lei, batendo as asas pela noite calada (como fantasmas assaltantes) poisam nos prédio, poisam nas calçadas, enchem as tulhas, bebem vinho novo, dançando a ronda no pinhal do rei”, no palácio de governantes”. Soberbamente divertido, embora provocatório, seria  vê-los entrar nas casas particulares e, sem pedir licença, ouvir Zeca Afonso a denunciar: “Eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”.
         Desculpar-me-á o Grande Cantor da Liberdade esta colagem cirúrgica à sua obra. Mas, tudo bem interpretado, o que ele habilmente realizou foi  interpretar (e nalguns casos desmascarar) o carnaval da vida numa sociedade hipócrita, falsa, demagógica – tão envernizada e fictícia como os três dias do carnaval de rua.   
         Dentro ou fora de carnavais, Zeca Afonso sempre connosco, cantando juntos o alvor de novos dias, porque nós todos “Somos os Filhos da Madrugada!”.
        
         23.Fev.20
Martins Júnior

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