quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

NÃO CHORO PELA SUA MORTE… CHAMO PELA SUA VIDA !

                                                                        


Em cinzas dorme a couraça do guerreiro.

Só a couraça, porque o resto (e o resto é tudo!) não ficou nas cinzas, crepita e canta no braseiro que nunca se extingue.

         Amândio Silva – 82 anos. Toca-me, invade-me, projecta-me.

         Sem nunca nos cruzarmos na vida, agora reconheço que somos vidas cruzadas. Abria a década de 60 do século XX. E enquanto eu subia os degraus da Sé do Funchal para começar a servir uma Igreja que subservia o fascismo de Salazar (tão ingénuos que nós éramos)  o jovem Amândio alçava-se aos céus da lusa nação no famoso avião ‘Super-Constellation’ (desviado entre Casablanca e Lisboa) para, com outros cinco corajosos patriotas, lançar um grito de alarme (mais um!)  contra o regime totalitário do ditador que, não satisfeito em esmagar o “Bom Povo” na metrópole, enviava para o matadouro da guerra colonial o sangue novo de Portugal.

         Já antes, em 1959, Amândio da Conceição Silva perfilara-se na histórica “Revolta da Sé Patriarcal de Lisboa”, solidário com o movimento de sublevação anti-salazarista, convocado por católicos inconformados com a situação do país e contra o manifesto colaboracionismo do Cardial Cerejeira.

         Sem nunca o ter encontrado na vida, os nossos caminhos entrecruzaram-se nas rotas de um ideário libertador. Tentei seguir as mesmas pegadas, ainda que não lhes conhecesse o autor, tal como se abraçam no pleno da luta todos aqueles que, perto ou longe, sonham com um mundo melhor, a “Casa Comum”, aberta a todos e por todos igualitariamente respirável.

         E um dia chegou – 27 de Abril de 2019 – uma multidão de ‘íntimos desconhecidos’   em frente dos fatídicos portões da cadeia de Caxias! A festa não podia ser maior: toda aquela gente estava ali para comemorar os 45 anos da Liberdade, aquela manhã memorável em que eles, os mesmos ali presentes, tinham alcançado o Dia Novo pelo qual tanto haviam sonhado, lutado, sofrido. Um deles: Amândio da Conceição Silva!

           Inesquecível, avassalador, sublime foi ver abrirem-se os portões verde-escuro e logo irromperem em alvoroço 45 crianças, de cravos em punho, gritando “Liberdade, Liberdade”! Eram netos saindo dos escombros onde os avós aprisionados ganharam essa mesma Liberdade.

         Nunca exaltaremos suficientemente o nome e a memória daqueles que expuseram o peito às balas da ditadura e afrontaram os monstros da opressão. “Não viemos do nada – dizia-me hoje, de longe, essoutro sonoro construtor de uma “Terra Prometida”, outra “Jerusalém” - Francisco Fanhais. “Antes de nós, outros deitaram raízes e regaram-nas com muito sofrimento e muita luta”.

         Esquecê-los é anularmo-nos a nós próprios. É com eles que libertamos os inocentes condenados pelo império da força. Precisamos hoje e sempre  dessa couraça de heróis para arrancar de todas as cadeias todos os Navalny’s que ainda jazem neste planeta.

         Amândio Conceição Silva:

A teu lado, em Caxias Libertada e na Vida que te chama a toda a hora!

           

         03.Fev.21

         Martins Júnior

 

2 comentários:

  1. .....Como sempre, uma prosa incisiva, especial....mas, ao derrubar o Salazar havia algum plano consistente que desse dignidade ao povo? Foram delegados para isso ou não passava de basófia?

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  2. .....Como sempre, uma prosa incisiva, especial....mas, ao derrubar o Salazar havia algum plano consistente que desse dignidade ao povo? Foram delegados para isso ou não passava de basófia?

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