segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

DE INIMIGO E VÍTIMA A PATRONO DOS ANIMAIS E DA NATUREZA

                                                                       


         Ai, que hoje arrisco-me a perder amigos e, pior que isso, ainda apanho em cima com o anátema de todos os santos e de todos os demónios. Mas, mesmo assim, não resisto a entrar no contexto da estação conflituosa do momento em que se ouve, de parte a parte, este espavorido desabafo entre os muitos litigantes na arena eleitoral: “Você deturpou as minhas palavras, não foi isso que eu quis dizer”.  

         Deturpar as palavras, os factos, as reminiscências. Terrível e temível compressor é o Tempo! Tão depressa escreve, apaga, reescreve e torna a desenhar com tal à-vontade  que, na linguagem dos símbolos, toma-se a parte pelo todo, o continente pelo conteúdo, a forma pelo fundo, enfim, o Tempo vira tudo do avesso. Revejo-me nesta constatação do quotidiano quando percorro os trilhos da comunicação social, das redes e até da conversação em circuito privado. Mas hoje optei por situar-me no 17 de Janeiro, Dia do Senhor Santo Antão, cuja festa é marcada por um ritual sacro-profano, mais conhecido por “Bênção dos Animais”.

É de uma beleza ternurenta ver o carinho com que os partilhantes trazem ao colo e aos ombros o cordeirinho manso, o gato matreiro, o cão enfatuado,, o provocador papagaio, o galo dominando as restantes  aves multicolores e até o burrinho de carga que hoje sobe ao pódio pela insustentável leveza da água benta. Tudo tão pitoresco e sugestivo que bem poderia o PAN (perdoe-me Inês Sousa Real) entronizar Santo Antão como o Padroeiro do seu partido, o Santo Protector dos Animais e da Natureza.

Mas o que nos diz a tradição – e as pessoas não sabem – é a lógica da representação animal que o nosso Santo traz aos pés. Conta-se em poucas linhas. Santo Antão, egípcio, (251-356) sentiu a atração mística pelo deserto, abandonando as vaidades mundanas, como a forma mais perfeita de santidade, vocação esta comum a muitos outros eremitas da época. E – também comum a todos os monges eremitas – a sua vida isolada do mundo não lhes garantia imunidade às tentações do demónio que não lhes permitia a total entrega à penitência e à oração. Então eram frequentes as arremetidas de Satanás que lhes aparecia em forma de animais disformes, aos rugidos e roucos de toda a espécie. Cenas destas fazem parte da tradição imagética disseminada em templos e colecções particulares.           


 Ao mesmo tempo que nos deliciamos com o mini-jardim zoológico em redor do adro da igreja, não apagamos a simbologia original que a tradição se encarregou de sublimar, transmutando por completo a semântica dos animais postados aos pés do Santo Antão. Já não são os seus demónios tentadores. São agora os seus mais devotos protegidos. Trata-se de uma evolução positiva, talvez uma catarse interpretativa, não deixando de assumir-se, em termos substantivos, de uma total ‘deturpação’ do significado inicial, o qual  mil e setecentos anos de devoção transfiguraram num quadro bucólico, quase romântico e sagrado.

Espero que me absolvam – os santos e os demónios – desta breve incursão inspirada nos usos e costumes de certas localidades, ressalvando a versatilidade da crença popular que ajeita a história ancestral à idiossincrasia constante das diferentes fases culturais e devocionais do seu habitat natural.

Sem pretender extravasar deste simples episódio, não deixo de reconhecer o campo aberto de debate e apreciação de fenómenos estranhos e gratuitos que o hagiológio eclesiástico perpetuou, sem que da parte dos crentes haja a mínima preocupação de dilucidá-los e interpretá-los, à luz de uma rigorosa hermenêutica. É um assunto da maior relevância cultual e cultural.

 

17.Jan.22

Martins Júnior    

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