Na
realidade, o pódio magistral estava reservado a DANIEL PIRES, o “Mestre dos Investigadores”.
E só por ele, Machico entrou no Átrio da grande catedral do livro, a Biblioteca
Nacional, ao Campo Grande. Lisboa.
Foi a chave de ouro que fechou o outonal
setembrão. Lá dentro, uma coroa estelar de quinze escultores do verbo –
escritores, filósofos, poetas, historiadores, cientistas, enfim, investigadores
- desenhou o perfil inteiro do “Mestre e
Doutor”, cavaleiro andante que deambulou pelas terras e mares por onde naufragou
Luis Vaz de Camões e pelas cátedras
da sábia curiosidade de Wenceslaw de Moraes, Camilo Pessanha e, antes, o
visionário Fernão Mendes Pinto. Para quem se habituara a ver em Daniel Pires o
cidadão pacato, humilde, quase anónimo no desenrolar do tropel quotidiano,
ficou assombrado com o planisfério, mais amplo de ideia que de geografia, em que navega Daniel Pires: desde a
pátria de Elmano Sadino, Setúbal, até Glasgow e ao longínquo Moçambique, São
Tomé e Príncipe, Cantão, Goa e Macau.
Paladino da Língua Portuguesa e da História,
o “Príncipe dos Investigadores”, como também foi cognominado na Biblioteca
Nacional, serviu ao público português a prestimosa oferta de duas obras datadas no tempo: “Dicionário
de Imprensa Periódica do Antigo Regime em Portugal” (1704-1807) e a (já lançada em Machico, 2023, no 250º
aniversário do nascimento do Autor) “Obra Completa de Camões Pequeno, Francisco
Álvares de Nóbrega”.
De registar a qualificada abrangência da
parceria organizadora do evento – o Centro de Estudos Globais da Universidade
Aberta, a Biblioteca Nacional de Portugal, o Instituto Europeu das Ciências da
Cultura Padre Manuel Antunes e o Centro de Estudos Bocageanos.
Se na apresentação e análise do acervo bio-bibliográfico mais vasto de
Daniel Pires tiveram papel de charneira Miguel Real e José Pacheco Pereira,
entre os prelectores, já no que concerne ao “Nosso Camões”, coube a José
Eduardo Franco e a mim próprio o elogio
do sonetista maior nascido em Machico no ano de 1773. Não deixa de ser de fino toque expressivo,, em termos de sintonia
telúrica, que sejam dois autóctones de Machico a debruçar-se sobre a mensagem
de um conterrâneo seu, duzentos e cinquenta anos após o percurso existencial do
poeta nos mesmos caminhos e veredas que ele calcorreou.
Pelo apreço manifestamente visível de todo o
auditório durante a exposição da vida e obra dessa apaixonante personalidade,
ficou patente o olvido a que gerações passadas relegaram Francisco Álvares de Nóbrega, em
Portugal Continental e, diga-se em abono da verdade, também na Madeira, se
exceptuarmos Machico, onde já antes do 25 de Abril se evocava a sua memória, em 30 de Novembro
de cada ano. O conturbado período ante e pós- Revolução Francesa de 1789, cujas
conquistas libertadoras puseram a nú contradições irredutíveis dentro da
própria Igreja – lembremo-nos do grande número de clérigos madeirenses filiados
em lojas maçónicas – foi essa anómala conjuntura que levou a Inquisição a
condenar à prisão do Limoeiro, em Lisboa, o nosso conterrâneo, na mesma cela de
outro notável intelectual, o poeta sadino Manuel Maria Barbosa du Bocage.
Daniel Pires, num labor intenso, expurgou dos arquivos da Torre do Tombo
documentos e testemunhos inéditos que esclarecem a nebulosa em que sucessivos
regimes mergulharam a vida e obra de
Francisco Álvares de Nóbrega, os quais estão patenteados ao grande público
nesta edição, apresentada anteontem na Biblioteca Nacional.
A título exemplicativo, transcrevo a
mensagem dirigida da prisão do Limoeiro pelo poeta ao “Sereníssimo Senhor Dom
João VI”, impetrando clemência e liberdade, soneto este que serviu de mote a
outros quatorze sonetos, cinzelados de mestria literária e profundo queixume
doloroso:
Príncipe excelso,
em lúgubre masmorra
A que jamais dá luz
do sol o facho
Gemo ao som do grilhão
infame e baixo
Sem ter piedosa mão
que me socorra.
Por mais e mais que
pense e que discorra
Em minha vida um
crime só não acho
Seja qual meu delito,
o meu despacho:
Que me soltem,
mandai, ou que enfim morra.
Quem culpa cometeu é bem que pague
E a cadeia fatal que
o pé lhe oprime
Com lágrimas de dor
embora alague
Porém não consintais
que se lastime
Na mesma estância e em
confusão se esmague
A singela inocência
a par do crime
03.Out.24
Martins Júnior
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