sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

JANEIRO VELHO EM ANO NOVO

                                                                              


Não obstante a euforia vã dessa noite intermédia, este Janeiro nasceu velho. À velhice congénita juntou-se-lhe a esclerose múltipla de fragilidades tantas que o primeiro dos doze foi ficando moribundo nas ambulâncias, nos corredores dos hospitais, enfim, na sala de espera dos crematórios. Aceitemos ou não, com o crepúsculo de Janeiro, ficámos nós também prematuramente mais velhos, doentes, entediados, presos à cama ou às paredes da casa que habitamos.

Sem pretender engrossar o espesso de uma angústia que  nos cobre, é caso para rasgar a abóbada de todos os continentes com um gigantesco ponto de interrogação: “Onde param os votos calorosos do Ano Novo? De que te serviram as doze doces passas, os champanhes, as grinaldas de fogo solto dessa noite? Ou, como diria Florbela Espanca:

………………Que fim deste

Às flores d’oiro que a sol bordaste,

Aos sonhos tresloucados que tiveste?...

 

Pelo mundo na vida, o que  esperas,

Aonde estão os beijos que sonhaste,

Maria das Quimeras, sem quimeras?...

   

O certo é o que aí está, à vista desarmada. Visões de ‘astronautas’ hospitalares, quase fantasmas polares, carregando aos ombros e ao coração multidões de corpos cálidos, galerias antigas arrumadas de cabeças febris repetindo ao mundo a clássica saudação Ave, Caesar, morituri te salutant (“Salvè, Imperador, os que vão morrer estão a saudar-te”) gente exausta dando tudo e “mais que permitia a força humana”.  Pelo meio, brigas político-farmacêuticas, político-financeiras gritando pelo antídoto vacinal e, mesmo quando ele chega, mais brigas pelas precedências, enfim, casa de horrores em toda a translação do quotidiano terrestre. Janeiro a envelhecer. E nós, com ele.

Mas é preciso olhar mais acima e mais além. Porque há mais vida além de Janeiro. Há mais Onze  à nossa frente. Se é verdade que, ao dizer adeus aos “morituri”,  algo de nós morre com eles, mais certo e seguro é possuirmos a alavanca invisível de um  animus latente e poderoso que nos eleva e projecta muito para lá dos que sucumbem à nossa beira.  É de Lacordaire o axioma comum à nossa condição humana: “As adversidades criam os grandes homens”. E já que nos coube o duro inverno  desta ‘travessia no deserto’ da história, sejamos dignos da hora que passa. Ao sair deste inverno há uma Primavera à nossa espera. E se Janeiro é velho, o Ano – este Ano – ainda está Novo! O Ano é uma criança.

“Ficar em casa” – que não seja mais uma ordem, mas um convite escrito como numa pauta musical no nosso coração. Um convite cósmico. Na esteira de Xavier de Maistre, a  Viagem à Volta do Meu Quarto  é também uma viagem à volta do mundo. Fechado entre quatro paredes, imagino-me num super-mega-apartamento circular do tamanho do planeta, em que todos os quartos têm o alçado frontal feito de vidro translúcido, tão límpido e transparente que nos deixa vermo-nos uns aos outros, de longe como se estivéssemos tão perto. Do meu quarto vejo milhares, milhões, biliões, irmanados comigo na mesma saga silenciosa de higienizar a nossa “Casa Comum”, torná-la ecológica, habitável, respirável.

“Ficar em casa” – é também  um convite à descoberta, uma radioscopia do sortilégio escondido lá dentro. Limpar as nossas pupilas das escamas pesadas que nos impõe a poluição urbo-humana da azáfama exterior, que nos comprime e desumaniza. Deixar de ver a casa apenas como dormitório fugaz, impaciente, mas como  estufa selecta, solário de todo o ano, a nossa praia privada, talvez o nosso mais íntimo santuário. Exagero metafórico, excentricidade romântica?... De todo! Melhor redescobri-la - casa, casebre ou palácio -  nesta visão pacífica, reconfortante, do que carregá-la nas grades da violência como prisão de um castigo sem crime… Saber olharmo-nos, face a face, sentir a cor dos olhos, na sala, na alcova, no chão, na terra. E aí achar a tal “Ilha do Outro Mundo”, que toda a vida procuramos em demanda da Felicidade.

Vamos a isto. Porque se Janeiro é velho, o Ano é sempre Novo!

    

  29.Jan.21

Martins Júnior

 

Sem comentários:

Enviar um comentário