Descem
do alto os acordes plenos, percorrem as paredes brancas do templo dedicado à
Senhora do Guadalupe, mergulham no soalho-caixa de ressonância e penetram no
cérebro, coração, vasos capilares, corpo e alma dos muitos participantes que
enchem o sacro recinto.
O director do XII Festival Internacional de
Órgão da Madeira, João Vaz, ao apresentar o programa, dedica-o ao grande
entusiasta da Arte dos Deuses, o anterior pároco Padre João Mendonça,
restaurador do órgão local pelas mãos do abalizado organeiro Dinarte Machado. Coincidência
dramática: a essa mesma hora, João Mendonça era já cadáver na lousa fria da câmara mortuária. Falecera poucas horas
antes de começar o concerto do instrumento ao qual tinha dedicado o mais encendrado
empenho. O “seu” último concerto!...
Enquanto
se evolavam na grande nave do templo porto-cruzense as sonoridades da tradição
sinfónico-teatral da Itália da primeira metade do século XIX, com o sacro
belocanto, na voz de Rosana Orsini Brescia e o órgão de Marco Brescia - ali
desfilaram Donizetti, Morando, Rossini, Bellini, Davide de Bergamo – ao mesmo
tempo também voava o meu pensamento até junto do colega e amigo João Mendonça e
(estranha conjunção!) visualizava o grande Teatro de Viena de Áustria, onde decorria
a estreia da 9ª Sinfonia, a última do genial compositor: ali estava Ludwing van
Beethoven!
Qual
a lógica de tal convergência e paradoxal similitude?
Ei-la
na sua inteira nudez, tão dramática quanto comovedora:
Beethoven
já não conseguiu ouvir a sua obra-prima, atacado que estava pela inexorável
surdez. Foi a sua última Sinfonia! E, neste domingo de outono quente, 15 de
Outubro, o Padre João Mendonça também
não conseguiu ouvir o inspirador concerto de órgão, saído do instrumento-rei
que ajudou a restaurar na sua igreja. Bem podia ele dizer: “Foi o meu último Concerto”!
Hoje,
17 de Outubro, João Mendonça foi a sepultar na sua sua terra natal, Santana.
Após o longo percurso ascensional até ao cemitério, ali ficou sob uma colcha polícroma,
feita de flores nascidas do chão verde da mais jovem cidade da Madeira.
Aos
meus ouvidos ficam ecoando os acordes do órgão do Porto da Cruz e, com eles, em
perfeita sintonia, o “Hino da Alegria” – o testamento musical do Padre João
Mendonça!
15-17.Out.23
Martins
Júnior
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