Faz hoje 40 anos! Foi uma
madrugada de Abril em Março quase primaveril. A Páscoa antecipada.
Após 18 dias e 18 noites
de ataque de forças governamentais invasoras contra um pequeno aglomerado rural
indefeso habitando a periferia serrana de Machico – um atentado russo a
um pobre rincão ucraniano – os olhos dessa noite vigilante viram fugir os
invasores, armas no coldre, peso e vergonha no coração, vencidos pela coragem e
pela disciplina cívica do povo sitiado. Povo, templo, quintal e casa comum.
O cenário terrorista,
horda tribal, golpe de mão nocturna, antes que o sol abrisse, já foi descrito
vezes sem conta – e múltiplas deverão ser sempre repetidas, para que o mundo
não esqueça – tudo aconteceu quando no lusco-fusco da manhã 70 policiais, às
ordens do governo regional e do bispo do Funchal, sem mandado judicial,
invadiram o adro da Ribeira Seca, assaltaram
a residência paroquial e a igreja, de onde sacaram o que lhes apeteceu,
inclusive, livros de registo, alfaias litúrgicas, objectos de culto e adereços
logísticos.
Felicito o Mestre em
Gestão Cultural pela UMa, Severino Olim, por ter assinalado recentemente nas
redes sociais e na imprensa diária o rasto viscoso dessa campanha inenarrável,
nunca vista em 600 anos da história insular.
Desde o 27 de Fevereiro ao
18 de Março de 1985, o tempo há-de proclamar ao mundo o fosso tenebroso e, sobre ele, a cúpula
triunfal da condição humana: o fosso da aliança incestuosa dos dois poderes, o
político e o religioso, sem escrúpulo nem pudor. E, em contradição suprema, a
cúpula do poder popular (não haja complexo em dizê-lo, porque foi o povo
desarmado o obreiro deste triunfo) um poder caldeado no sofrimento de gerações e
gerações amordaçadas pelos senhorios e pelos eclesiásticos. Ainda estão por
contar os contornos e, sobretudo, a génese desta epopeia que as autoridades e a
comunicação social madeirense de então tudo fizeram para esconder e silenciar.
A religião, tantas vezes
usada e abusada pelos oligarcas, foi
nessa altura um esteio libertador, tendo em conta o êxodo dos hebreus
escravizados após 40 anos pelo faraó do Egipto . E no Novo Testamento, a
palavra do senador Gamaliel no Sinédrio, cujos juízes se preparavam para mandar
matar os apóstolos. Disse Gamaliel:
Não vale a pena,
porque se a mensagem desses homens não vem de Deus, ela vai consumir-se por si
mesma. Mas se vem de Deus, não há poder que a destrua.
O povo da Ribeira Seca
venceu, porque teve resistência, autodomínio e vigilância sem termo.
Merecia digna comemoração
uma efeméride desta grandeza. Atendendo, porém, ao momento de barafunda das naturais
diatribes eleitorais, não se deva misturar com isso uma luta genuína, tão limpa
e verdadeira, pelos valores superiores da dignidade do homem e da civilização.
17-18.Mar.25
Martins Júnior
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Porque no 30º aniversário
do acontecimento, saudei-o com o poema alusivo, aqui o reproduzo e ofereço a
quem o ler:
“ODE
PEQUENA PARA UM POVO TÃO GRANDE”
Vieram
os lobos primeiro
Sangue
de verniz
No
pelo e nas unhas
Sem
falas nenhumas
Devoraram
num triz
Chaves
portas e gonzos
Do
Templo do Povo
Mas
a sua alma
NÃO
!
Vieram
depois abutres
Beberam
com o pão
O
vinho novo
Do
altar sagrado
Mas
a sua Fé
NÃO
!
Vieram
negrejandas garras
De
bárbaros salteadores
Mais
feros que etarras
Arrancaram
as luzernas
Que
alumiavam o chão
De
um Povo sem luz
Mas
o sol que havia dentro dele
NÃO
!
Vieram
padres da Inquisição
No
corpo e nas armas
Da
soldadesca sem culpa
Em
tortura e de arrastão
Homens
jovens mulheres
Atirados
à prisão
Só
pelo crime
Do
amor sublime
Àquilo
que é seu
“A
mim podes prender-me”
Dizia
cada qual
“Mas
o Povo com razão
Não
vais prender
NÃO”
!
Trinta
anos dobrados
Trinta
cânticos moldados
De
luta
E
fogo novo
Bebendo
a cicuta
Da
taça peçonhenta
Que
os facínoras preparam
Para
afogar o Povo
Nessa
tormenta
Mas
nem “Vigia” nem “Mitra”
Nem
Roma nem Meca
Apagarão
a história
E
o facho da Vitória
De
um Povo – RIBEIRA SECA !!!
Fev-Mar.
2015