Não abundam os momentos em que a
morte se confunde com a vida. No mesmo percurso para a sepultura misturam-se em
altissonante uníssono os clamores da alvorada nascente. São raros, mas
aconteceram nesta segunda-feira de Fevereiro toda pintada de azul e branco, que
encheram literalmente os media, desde o estádio, a praça, a rua e
até ao templo episcopal, cujo celebrante se revestiu de uma rara paramentaria
cor das ondas marinhas e do céu em apogeu de verão.
A vida e a morte num jogo
de espelhos, tão intrínseco e empolgante que quase sempre é esta que reflecte o
brilho daquela! Afinal, ambos viajam no abraço de um mesmo berço. Já os
antigos definiam sabiamente esta paradoxal realidade num aforismo clássico: Talis
vita, finis ita – tal vida, tal morte.
O fim traduz a validade
do início e do meio da maratona existencial.
E, sobretudo, do critério do júri – o indefinido júri, sem rosto, mas que se
torna lobby social, o todo colectivo, pendente do gosto, da moda e do
local. Concretizando:
Onde a música é rainha,
aí é a guitarra de Carlos Paredes que emerge, vibrante e ágil, do fundo secular
da sepultura. Onde o futebol é rei, também é ele que reina, radioso e cego,
desde o mar ao cimo das montanhas. Onde o poder totalitário narcotiza a
multidão, é o ditador Putin que sobe em nuvens de incenso ao altar das pátrias. Onde, ao invés, gerações amordaçadas pela
ditadura não se resignam sob o cepo esmagador, o trono real pertence ao herói Navalny
e a todos os que, mesmo no sepulcro, cortam as algemas de um povo que tem direito à Vida e à
Liberdade.
Há,
ainda, o critério da territorialidade, genético, tribal, que do nativo nortenho
faz um deus – no funeral de Pinto da Costa, alguém chamou-o “Papa” – e do
sulista transforma-o num vilão. Ou vice-versa. Critério geográfico - que ostenta
mausoléu ao americano e atira às feras o africano. Critério religioso - mais
precisamente, pseudo-religioso - que no Capitólio Vaticano canoniza, eleva aos
céus o católico romano. E ao muçulmano passa-lhe irreversível guia de marcha
para o inferno. Há ainda o critério da lavagem mecânica - em que o rolo da
morte, sendo negra, passa a branquear as negritudes da vida.
Outros critérios, outros
nomes, outros pretextos cabem nestes parágrafos, os quais facilmente podem
descortinar-se em todas os rituais fúnebres, dos mais humildes aos mais faustosos.
Mas de todos, apenas uma conclusão se me afigura serena, imponente, embora quase
impercetível a olho nu: o relativismo dos panegíricos, a volatilidade dos
mausoléus.
Relativos e voláteis,
tanto os discursos como os marmóreos epitáfios: assemelham-se a fogos fátuos,
cadentes. Ademais, são inaudíveis e extemporâneos. Tenho para mim que os
homenageados defuntos – “pó caído” – se lhes fosse possível reagir diriam, estoicos e indiferentes: “Deixem--me em paz.
Elogios, agora? Não, obrigado. Já não vos oiço. Em vida é que deles eu precisava,
para cumprir melhor o meu lugar. Agora é tarde – tarde demais”.
Sei quanto é questionável
esta minha percepção. Mas ela é apoiada
por décadas de vivências concretas junto ao féretro de “gregos e troianos”. E com tal propósito que
se tornou uma opção testamentária. Dispenso discursos e rituais. Mais: Prefiro críticas em vida do que elogios na morte. As
críticas ajudar-me-ão a recentrar prioridades existenciais, os elogios sumir-se-ão
num punhado de cinzas inúteis.
Honremos os que “da lei
da morte se vão libertando”.
Enquanto vivos!
E vivos sempre serão se
lhes seguirmos as pegadas luminosas que deixaram na nossa estrada! Que, sem
alarde nem vanglória, um dia deixaremos para outros!
15-17.Fev.25
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário