quarta-feira, 15 de abril de 2020

O BEIJO NA CRUZ E A CRUZ DO VÍRUS – INTRODUÇÃO


                                                         

Público e notório foi aquele espectáculo, para uns comovente, para outros degradante, em que a directora de um Lar de Idosos passeia o crucifixo pelo salão principal e ‘atira’ a imagem aos lábios dos velhotes previamente alinhados para o efeito. Objectivo: o beijo. O caso deu que falar nas redes sociais e, inclusive, cai sob a alçada das instâncias judiciais. Não podemos ignorá-lo. E, por isso, suscitou uma avalanche de comentários, desde os mais fanáticos pró-beijo aos mais cortantes, mas sensatos, contra-beijo.
Seja qual o ângulo de visibilidade dos opinantes, é manifesto o afrontamento às mais elementares regras de saúde pública, mais a mais perante os rigorosos normativos emanados por quem de direito nesta conjuntura do Covid-19. Correndo o risco do desagrado particular, exporei também o meu parecer, convicto como estou que é meu dever fazê-lo, apoiado numa análise serena e no testemunho de pensadores ilustrados na matéria.
A quem concorda e a quem discorda, começarei pela lógica dos factos. “O erro também tem a sua lógica”, é um dos princípios gerais da filosofia. Achais, como eu, chocante e, a muitos títulos, abusivo o gesto da bem-intencionada  directora do Lar?...  Partamos então do vértice para a base, de cima para baixo, porque a luz, o exemplo vêm do alto:
1.     O Papa de Roma lançou, desde a basílica de São Pedro – despida de fiéis – a bênção Urbi et Orbi e, em plena Praça – plena mas, contraditoriamente, vazia – traçou a todos os continentes e regiões o sinal da cruz com a majestosa custódia pontifícia. Um gesto apreciado por todo o mundo cristão e católico.
2.     Vai daí, um bispo em Portugal amplia e ‘emenda’ a liturgia papal: num rasgo de encendrado clamor patriótico, comparável ao sacro fervor das Cruzadas medievais, arranca a custódia do altar da Sé Catedral e salta como um arcanjo libertador para o alto da ponte que domina duas cidades e, daí, corta os ares com o sinal da cruz na custódia de raios dardejantes sobre o rio e sobre os telhados contra o vírus fulminante. O espectáculo não surtiu efeito.
3.     Se um bispo assim congeminou e assim cumpriu seu sonho de taumaturgo do século XXI, por que não hão-de imitá-lo e até ultrapassá-lo os pastores de aldeia?... Decidido e feito! Ei-los por caminhos e vielas, de cruzes prateadas, coloridas de flores e alecrim, outros lá vão, sobressaltando estradas e vizinhanças, bandeiras rubras esvoaçando garbosas, a custódia dourada no tejadilho da viatura e a voz do pastor retinindo pela encosta. E o povo gosta! Sorrisos felizes, lábios murmurando preces, lágrimas curtidas  nas rugosas faces daquela idosa que, mais tarde, exclama: “Ah, eu senti uma coisa cá dentro quando vi passar o Divino Espírito Santo”. Referia-se às bandeiras brilhantes, tremulantes ao sol e ao vento.
4.     Os pastores sabem o que fazem, dispõem de uma especial baixela instrumental, trazem-na para a rua e fazem sucesso. O povo, porém, receptor e consumidor do menu ‘exemplar’ que vem de cima, não tem outro espólio senão o básico, o que consegue captar e pôr no terreno, em versão espontânea. É a chamada “religiosidade popular” que tem tanto de ingénuo e puro, como tem de empírico e  desviante. Nesta lógica descendente, que começa na cúpula, o Papa, e depois vai devotamente  divergindo pelas hierarquias intercalares, bispos e padres, pergunta-se: Que espanto há nisso que o povo faz e interpreta à sua maneira, usando sinais, mitos, símbolos, conceitos e preconceitos, superstições, enfim, o que tem à mão?... Para os idosos daquele Lar que melhor podia oferecer pela Páscoa a senhora directora senão o beijo no pequeno cruzeiro guarnecido de flores campestres?... Será idolátrico, anti-higiénico, doentio, fará mal? Não importa, a bênção de Jesus cura tudo…
Eis, em escala vertical, o processamento de muitas percepções de índole devocional que as nossas gentes professam. É a sua fé. Assumida, intocável. Analisada no “aqui e agora”, à luz da ciência e das aquisições colhidas na actual hermenêutica teológica, teremos nós autoridade e pedagogia suficientes para anatematizar ou sequer entulhar à valeta as diversas crenças da religiosidade popular?...
É o que tentarei decifrar no próximo escrito. Entretanto, porque o caso é muito sério, deixo aqui os emotivos alexandrinos do insuspeito Guerra Junqueiro, na sua “Velhice do Padre Eterno”:
“Oh velhos aldeões exaustos de fadiga
Que andais de sol a sol na terra a mourejar
Roubar-vos da vossa alma a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As três achas que leva à noite para o lar”.
   
 15.Abr.20
Martins Júnior




1 comentário:

  1. BEM AO GOSTO DO POLÉMICO PADRE MARTINS!...PARABÉNS..... MAS QUAIS OS FRUTOS ESPIRITUAIS DA SUA PARÓQUIA DE HÁ TANTOS ANOS? OU TAMBÉM FEZ FESTA DA BOA E VISTA GROSSA A TANTOS FESTEIROS QUE GASTARAM O DINHEIRO EM FOGUETES E TANTAS COISAS BANAIS COMO RESTAN
    TE DA ILHA?

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