segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A MISSA E OS MÍSSEIS DE TRUMP, AUTO- -PROCLAMADO “O ENVIADO DE DEUS”

                                                                                  


Ver o invisível, escutar os silêncios, ler as entrelinhas, três títulos de uma única atitude necessária para saber interpretar os acontecimentos. Só descobre a verdade inteira quem não se deixa enredar nas malhas da aparência. No mundo de hoje, agitado por uma informação frenética e sensacionalista, ansiosa por “quem dá primeiro”,  é indispensável  munirmo-nos deste GPS condutor para não cairmos em charcos interpretativos, senão mesmo em abismos de falaciosas contradições.

          Vamos aos factos.

          Foi notória  a missa da tomada de posse do presidente Donald Trump, celebrada na igreja de Saint John, em Washington D.C., uma cerimónia oligárquica, mundialmente publicitada. Ao crente médio, outro sentimento não acode senão o da fé de um presidente extremamente religioso, agradecido a Deus pela vitória. Assim fazem todos os candidatos ganhadores.

          Mas ao ver uma tão proemonente Excelência adiposa (cidadão americano, descendente de emigrantes alemães) na primeira fila do histórico templo, apeteceria perguntar: “A  que deus reza e agradece Donald Trump?...

Ao deus comandante-em-chefe das Forças Armadas de Israel, o ‘Senhor Deus dos Exércitos’ do reino judaico e do furor israelita de Netanyahou?... ao deus ‘ALÁ”, o da guerra santa, dos yadhistas, sunitas, xiistas do império muçulmano ?...  ao deus de Auschwitz, o dos infernos, lume nazi e água benta eclesiástica?... ao deus ‘Ortodoxo’ moscovita do império bizantino, transposto para os altares da federação russa, com os mísseis de Putin abençoados pelo patriarca Kirilos?... ou ao bíblico deus ‘Mammona’, o do dinheiro, irmão gémeo do deus pagão ‘Pluto’, do ouro rico, adoptados pelo império capitalista americano?”...

          Não arriscaríamos errar se adivinhássemos o pensamento de Trump naquele ritual litúrgico: Não vim cá agradecer a Deus, vim  mostrar ao mundo que Deus é que me agradece por ter aceitado o seu pedido para ser seu Enviado. Sim, já vo-lo disse e repito: Eu sou o Enviado de Deus para salvar e tornar grande a nossa América.

Não é novo este manual sacro-profano. Repete-se com todos os candidatos a ditadores, desde os imperadores coroadoss pelos Papas, até Adolf Hitler, saudado por Pio XII e o português Salazar, idolatrado  como Salvador da Pátria, associado e concelebrado pelo cardeal Cerejeira. Repete-se também, a outros níveis, nos meios urbanos e rurais, com os governantes e aprendizes da ditadura nos primeiros assentos, padre e bispos em aplausos comovedores.

          A isto sujeitam-se hipocritamente as igrejas…

Já desde o século XVII, nos avisava o poeta Voltaire, citado na última edição do semanário francês Le 1:

                    Ces monstres furieux de carnage altérés,

Excités par la voix des prêtes sanguinaires

                        Invoquaient le Seigneur en égorgeant leurs frères;

                        Et, le bras tout souillé du sang des innocents,

                        Osaient offrir à Dieucet execrable encens”

  

          Traduzindo:

                    Estes monstros tresloucados furiosos de carnadura

                    Excitados pela voz de padres sanguinários

                    Invocavam o Senhor enquanto  esganavam seus irmãos

                    E com o braço manchado do sangue dos inocentes

                    Ousavam oferecer a Deus  execrável incenso

 

           Sangue e incenso horrorosa e fétida  mistura em cima do altar. E as igrejas aceitam isto. E por isto louvam a Deus e exaltam os assassinos. Deviam, primeiro, envergonhar-se deste mísero papel de curvar-se e cair de joelhos , em coro uníssono, diante dos donos do mundo.

Para sintetizar tudo quanto acabo de escrever, nada mais explícito que o pensamento, atribuído ao bispo Santo Agostinho, o maior génio do Cristianismo, há mais de 1.500 anos: “Ecclesia Casta Meretrix, “A Igreja é uma Prostituta Casta, Virgem”. Portanto, serventuária dos mais poderosos, dos  mais fortes, dos mais ricos.

Ora, a identidade evangélica da Igreja de Jesus de Nazaré, cuja estatura moral e libertadora  está acima dos impérios mundanos, nunca deveria rebaixar-se ao nível de colaboracionista e aduladora dos titulares desses impérios.

 A esta breve leitura das entrelinhas da missa protocolar na igreja episcopaliana de St. John, Washingto D.C., dedicada ao vencedor eleitoral Donald Trump – uma leitura nada optimista porque mui diversa das aparências – devo juntar o seu reverso: Primeiro, o  80º aniversário da destruição do Campo dos Horrores nazi, em 27 de Janeiro,  um feito épico que mereceria um solene Te--Deum  em todas as igrejas do mundo! Segundo, o mais positivo e esclarecedor, a mensagem da celebrante do referido acto litúrgico, a Rev.ma Mariann Budde, que apresentarei mo próximo escrito.  

 

23-25.Jan.25

Martins Júnior

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

O TRIÂNGULO VICIOSO

                                                           


CONDENADOS E ARGUIDOS AO PODER

          Não era minha intenção convidar um triângulo vicioso a entrar, mesmo na cave, da oficina deste Senso&Consenso, porque nos alvores de um Ano Novo entendo que só cabem as boas-novas, portadoras de optimismo e positiva construtividade do indivíduo e da sociedade. Mas ao ler na na capa da Revista Figaro o histriónico título Les Cow-Boys au Pouvoir, não resisti a pôr em público aquilo que guardava só no meu foro privado.

          Cow-Boys, no texto de Alexandre Devecchio,  são Donald Trump, à cabeça, Javier Milei, presidente da Argentina e Nayib Bukele, presidente de Salvador, os quais, na vulgar nomenclatura cinematográfica, levam o leitor ao mundo de aventuras do mítico Texas americano, para entretenimento  de sofá.

                                                               


Não assim com Os  Condenados e Arguidos ao Poder. Aqui, o caso muda de tom, de volume e de consequência. O Triângulo Vicioso comprime a civilização, abala as consciências, destrói toda a esperança de viver entre humanos. À sua passagem, tremem os alicerces do mundo,    e a própria Justiça,  o único esteio de segurança, fica esmagada sob os buldozzers do crime impune.

Enquanto não nos secam os sentimentos e não nos cegam os olhos, impõe-se-nos uma pergunta irresistível:

Quem há quem, neste mundo, capaz de suportar no poder soberano indivíduos condenados na barra dos tribunais, que usam o posto para fugirem à cadeia, pois logo que saiam do poder o seu trono será atrás das grades?! Por corrupção, abuso do poder, escândalos públicos. Outros há, cujo julgamento e condenação estavam já em processo, caso não fossem eleitos. Ainda nas malhas da Justiça estão aqueles que, alapados no alçapão da imunidade, subtraem-se como privilegiados arguidos.

Aí estão três exemplares, cada qual formatado ao tamanho do território dominado, Trump e Netanyahu, aliados na criminalidade pública e ambos resguardados nos biombos dourados do poder, a que se junta o nosso  arguido-mór que anda de terra em terra, de empresa em empresa, de beco em beco, a antecipar campanha eleitoral para garantir as ameias do castelo Quinta Vigia.

Mutatis mutandis e comparadas as diversas circunstâncias, voltámos ao reino da barbárie, à lei da selva, a razão da força em vez da força da razão. Pelo dinheiro, pelas armas, pelos media, são outros e muitos os Cow-Boys, os condenados e arguidos assaltantes da poderosa pirâmide que os protege e defende.

Não são eles, porém, os únicos comparsas desta trágica urdidura que torna inabitável o planeta. Nós também entramos em cena. Nós, o povo, os eleitores. Todos os que, pela pesadíssima leveza do voto, transportaram aos ombros  os monstros condenados e arguidos até à cátedra do reino, do município, da freguesia, todos somos colaboracionistas e co--autores desta degradante enormidade.

Ao vermos saírem da prisão os facínoras que atacaram o Capitólio em 6 de Janeiro de 2021, indultados agora por aquele que deveria estar na cadeia, pensemos que os criminosos geram outros criminosos, do tamanho do lugar onde se instalam.

Seja o Triângulo Vicioso o semáforo vermelho que devemos evitar a todo o custo!  

   

21.Jan.25

Martins Júnior

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

“O CANTO DO MELRO” NOUTRAS VIAGENS

 

                                      


À vol d’oiseau…

Permita-se-me recorrer ao conhecido galicismo para exprimir o júbilo do Canto do Melro que, neste fim-de-semana, voou da Ilha para  Beira-Tejo, no Seixal continental e, daí, para o Oeste luso da Marinha Grande, distrito de Leiria.

Mais que um mero reporte de viagem, trata-se neste escrito de render a minha gratidão à Profª. Drª. Raquel Varela e à Editora Bertrand pelo generoso afã com que têm divulgado retalhos de vida e lampejos cirúrgicos de uma mensagem que recebo do círculo envolvente em que navego e, como retorno necessário, procuro devolvê-la em crescendo evolutivo ao rio por onde perpassam pessoas e sonhos à minha volta, predestinados  companheiros do roteiro existencial.

                                         


Foi assim, sábado, 18, no Seixal da outra margem, numa franca confraternização que tanto poderia chamar-se tertúlia académica como, sobretudo, Agapè emotiva, espiritualista, de tão largo e belo foi o desenrolar do encontro, com poemas e canções libertadoras, evocativas de Zeca Afonso, Carlos do Carmo, José Mário Branco, Ary dos Santos,  na voz de Victor Sarmento. Coincidência ou não,, o nome do local, Restaurante O Bispo,  ajudou ao ambiente da festa-convívio, em que o pico de relevo foi iluminado por duas personalidades portadoras da história de um almejado Portugal Novo, nascido no coração da Revolução de Abril: o lutador indefectível Major Mário Tomé e o corajoso causídico patrocinador das causas nobres e justas, o Dr. Garcia Pereira, ambos sintonizados com a estimulante partitura do Canto do Melro, de Raquel Varela, historiadora e novel romancista.

                                             


Domingo, 19, o Melro, de Guerra Junqueiro (que deu o mote para o Canto) sobrevoou o litoral poente até São Pedro de Moel e, daí, à Marinha Grande, onde o esperava uma numerosa e prestigiada assembleia de leitores, reunidos no inspirador auditório da Casa-Museu do escultor Joaquim Correia. Não faltarei à verdade dos factos se disser que a apresentação do livro ficou a cargo de uma qualificada galeria honoris causa, a que chamarei Os Cinco Magníficos: o presidente do Município, dr. Aurélio Ferreira; o representante da Bertrand, dr. Jorge Garcia  ; a escritora Raquel Varela; a drª Adelaide Franco Mendes, docente de Literatura;  e o super-jubilado do Direito, da Justiça, da Literatura e do Humanismo, dr. Álvaro Laborinho Lúcio, tendo estes dois últimos oradores galvanizado o público com a acurada análise, a um tempo científica e poética, do Canto do Melro.

                                                   


 Nota singular que tornou original e vívida esta apresentação foi a participação directa da assembleia, repercutindo como em dramatização cénica diversas passagens do livro, bem como a enternecedora actuação de dois clarinetes infantis e o virtuosismo da guitarra acústica de um jovem e talentoso artista local.

A todos os generosos intervenientes, quer no Seixal, quer na Marinha Grande, particularmente ao dinâmico Luís Manuel  Silvestre, incansável empreendedor do evento na cidade vidreira – símbolo histórico da  resiliência e do verdadeiro patriotismo telúrico - a minha mais rendida gratidão.

19.Jan.25

Martins Júnior     

 

sábado, 18 de janeiro de 2025

ENQUANTO NOS PALÁCIOS ASSINAM O CESSAR FOGO A FALA DE QUEM AGONIZA SOB OS ESCOMBROS DE GAZA

 


Caíu-me em cima o betão armado

De todas as lajes de todos os tempos

Do Egipto à Babilónia

Do Pretório ao Gólgota

Das fogueiras do Santo Ofício

Aos fornos de Auschwitz

 

Por cada manhã de páscoa

Noites de gerações em choro e luto

Por um só dia no éden de um pai hebreu

O deus dos exércitos abateu

Em cima de mim

Milénios de exílios em campa rasa

 

Sob os escombros de Gaza

Ainda estou aqui refém

Gemendo toda a dor que a minha pátria tem

 

Será desta a hora

De me afastarem a laje que me sufoca e devora?

 

Creio mas não espero


Eu sei

Que há sempre um Ramsés, Nabucodonosor ou Nero

Para abater-me nu

Ao atravessar a primeira rua

 

Porque Tu

Meu irmão nazareno ainda não ressuscitaste

Nesta nossa terra que foi tua  

 

17.Jan.25

Martins Júnior

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

A MAIS AMPLA E BRILHANTE MENSAGEM DE ANO NOVO !!!

                                                              


Aconteceu Ano Novo na RTP/M!

Quando digo Ano Novo, quero dizer mais que novo ano, novo calendário, fogos fátuos, balonas e estrelas cadentes que saem do chão e mais depressa ao chão regressam. Aconteceu Ano Novo – verdadeiramente  Novo! - na grande paisagem da Ideia,  da Acção, da Saúde física e mental, da Crença, enfim, da Vida.

Quem no-lo trouxe foi o Padre José Luís Rodrigues, secundado pela excelente condução do jornalista Paulo Santos que soube interpelar com mestria o  distinto entrevistado, abrangendo uma polícroma diversidade de temas e problemas do mundo actual, desde as questões sociais às ideológicas e religiosas, com tal realismo e sensibilidade que parecia responder a todos e a cada um dos telespectadores que tiveram o privilégio de ver e ouvir a histórica entrevista do Pároco de São José, no Funchal.

Bem andou a RTP/M em abrir novos horizontes a crentes e não crentes, através da palavra lúcida, segura e transparente do padre romancista, poeta, contista e ensaísta, orador e blogger de merecido reconhecimento público. Ele identifica a metamorfose necessária à Igreja na Madeira, onde o imobilismo intelectual e o exibicionismo processional enfermam a religião católica nesta ilha, desde a hierarquia ao presbitério e aos fiéis em geral.

Corajoso e polémico para alguns, mergulhados que estão no obscurantismo oportunista, gerador de resquícios de poder  anti--evangélico, o Padre José Luís Rodrigues nos dias que correm incarna a personalidade – também corajosa e polémica – do Papa Francisco, cujo lema pastoral é o de “UMA IGREJA EM SAÍDA” ao encontro da Humanidade, no seu sentido holístico, esteja onde estiver o ser humano.

          Estamos perante um discurso intelectual e um programa comportamental idênticos ao de Jesus de Nazaré que, sem prejuízo da verticalidade da fé, pautou os seus actos  pela horizontalidade humanista, tal como o saudoso Padre Mário Oliveira definiu quando titulou o texto eminentemente clarificador no seu livro “Do Cristão ao Humano”.

          Ao mesmo tempo que nos congratulamos com a luminosidade esperançosa que o Padre José Luís Rodrigues jorrou jubilosamente na alvorada do 2025, fica-nos – a todos nós que queremos um mundo novo – fica-nos, sim, a mágoa e a desilusão de ver a hierarquia e a sua casta de mini-satélites subalternizarem, senão mesmo proscreverem, os lídimos valores representativos da genuína espiritualidade humana e cristã.

          Força, Padre José Luís, deste amigo e veterano das mesmas causas, cientes que estamos de não poder salvar o planeta – nem o próprio Jesus o conseguiu – mas activos e conscientes de que, por nós, o mundo não andou para trás!

 

          15.Jan.25

          Martins Júnior

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

DO RIO ALVA À ESTRELA D’ALVA

 


Foi de alvura inteira a paisagem toda – de corpo e alma – nesse outonal fim de semana no distrito de Coimbra. AS baladas e guitarras da velha Academia deram lugar aos bandolins das Tunas emergentes das águas cantantes nas serranias do Açor, à beira-rio, avistando as cumieiras da Serra da Estrela.

Na Região Centro de Portugal viu-se a centralidade humaniforme de gerações e territórios. Aconteceu no auditório da Tuna Penalvense, anfitriã do XX Encontro de Tunas do concelho de Oliveira do Hospital. Em palco, desfilaram os acordes do  quaternário compasso geracional que define o curso da vida: infância e juventude, maturidade e senectude. Assim mesmo.

Voámos nós da Ilha da Madeira, desceram outros de Vila Real de Trás-os-Montes e outros ainda subiram desde o Algarve até à Civitas Splendidissima,  onde todos se abraçaram no regaço da inspiradora Matrona Universal e Intemporal, a Música. Abriu o programa a Tuna de Câmara de Machico, em cujo elenco primaram a infância e a adolescência dedilhando a primavera dos sons, seguindo-se a Tuna Panalvense, a anfitriã, a quem retribuímos a participação dos seus experientes e prestigiados elementos nos concertos do Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira Seca e do Festival Internacional de Bandolins no Teatro Municipal “Baltazar Dias”, no Funchal. Encerrou o espectáculo a nortenha  Banda de Vila Real,  mais de uma vintena de músicos sexagenários, septuagenários e octogenários que brilhantemente  demonstraram ao numeroso auditório que a ‘Arte dos Deuses’ não conhece ocaso, seja qual for a idade dos seus executantes.



No público assistente, foi notória  a presença entusiástica do Presidente da Càmara Municipal de Oliveira do Hospital, ladeado pela simpática Vereadora da Cultura e do eloquente Presidente da Junta de Freguesia de Penalva, os quais provaram ao vivo que o progresso de um povo constrói-se não apenas de obras megalómanas, betão sobre betão, mas fortalece-se com o cimento anímico do crescimento cultural, sobretudo na formação musical que educa a sensibilidade e o sonho  de uma comunidade saudável.

A visita de estudo, embora transitória,  à “Bobadela Romana” (a supra-citada Civitas Nobilissima) culminou a viagem do presente a um passado longínquo proficientemente esclarecida pelo director do museu, que nos fez regressar à ocupação do território luso pelos Romanos, bem patente no arco triunfal, na pavimentação das rotas terrestres e na arena circular das lutas dos gladiadores.



Daqui, irregular e distante rectângulo insular, o CCCS-RS e a TCM pedem ao imenso azul Atlântico seja a ponte transportadora do nosso penhorado agradecimento à Tuna Penalvensee pela mensagem de humanismo e cultura que nos trouxe à Ilhae, com maior ênfase, pelo carinho e pela  fidalguia com que nos recebeu em sua casa de Penalva.

Se o rio Alva leva saudades da terra, a Estrela d’Alva ficará sempre a brilhar em todas as manhãs da nossa memória.

BEM HAJAM !

 

13.Jan.25

Martins Júnior

sábado, 11 de janeiro de 2025

OLHAR PORTUGAL PELO MONÓCULO DE EÇA

                                                                             


 Ao homenageado de um século e uma quarta não pergunto o que estariam suas cinzas a desenhar com a pompa e a circunstância envolventes naquela soleníssima abside de Santa Engrácia. Peço-lhe apenas me recorde e faça reviver aqueloutra paisagem – “Portugal é Lisboa, o resto é paisagem”, ele o disse - que o seu vidente monóculo vislumbrou na família d’Os Maias.

         Abalizados analistas já o fizeram, Carlos Reis, Isabel Pires de Lima, Pinto Correia, Miguel Real   e, já antes, João Gaspar Simões, Aubrey Bell, Hernani Cidade, Fidelino de Figueiredo, João Medina, entre muitos outros. Da urna, assente na dourada essa  (que estranha homofonia!) e abraçada pela bandeira nacional,  uma resposta breve ressumava aos meus ouvidos: “Abre esses Episódios da Vida Romântica,  observa  duas cenas e isso te basta: o Capítulo X e a dupla “Maria Eduarda/Carlos da Maia”.

         Sem desdouro dos panegíricos palavrosos e  dos mais inflamados e/ou repuxados à cintura patriótica dos oradores de turno do Panteão, os dois episódios sintetizam  de forma genial o estertor civilizacional e a decadência do Portugal dos fins do século XIX: o Hipódromo e o Incesto.

         No Hipódromo, tudo transpirava a decrepitude mal disfarçada do país, desde a tribuna ao bufete:

 O bufete estava instalado debaixo da tribuna, sob o tabuado nu, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam à pressa as fatias de sanduíches, com as mãos húmidas da espuma da cerveja… Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da polícia; as senhoras,. com as saias apanhadas, fugiam através da pista, procurando espavoridamente as carruagens – e um sopro grosseiro de desordem reles passava sobre o hipódromo, desmanchando a linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro… Isto é um país que só suporta hortas e arraiais. Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo, todos nós somos fadistas! Do que gostamos  é de vinhaça e viola e bordoada, e viva lá seu compadre! Aí está o que é!  

         Humilhante, porque degradante, o ADN do povo português, nesta ardilosa construção do ‘hipódromo’, tipicamente queirosiana.

         Mas há mais, na fértil imaginação criativa do romancista. Como fatídica decomposição genética – crâneo inerte nos ombros de um esqueleto amorfo – rebenta o escândalo familiar, ético-social: o incesto: Depois de tanto se amarem, Carlos e Maria Eduarda descobrem que são irmãos. Inexorável! Inelutável! Sem apelo possível! Nada a fazer ou a esconder:

         _ E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim… Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, como uma conclusão lógica.

-Falhámos a vida, menino – exclamou Ega.

- Não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.

- Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder.

Na vasta galeria das diversas tipologias sócio-culturais d’Os Maias, é o tédio visceral que enferma a sociedade portuguesa, contra a qual se insurge a “Geração de Setenta”, precursora da evolução republicana de 1910. “Os Vencidos da Vida” e o “Grupo dos Cinco”, com Antero na vanguarda, fizeram estalar o esfarrapado verniz de um Portugal no charco, genialmente patenteado no Hipódromo e no Incesto.

                                                   


Que escreveria Eça, 125 anos depois, sobre este seu e nosso país?

Aceitam-se propostas, desde as mais sérias e científicas às mais  hilariantes e mordazes. Matéria   prima não lhe faltaria. Bem asizado andou Aguiar Branco, presidente da Assembleia  da República, quando puxou para o seu discurso uma tirada pró-queirosiana, ao imaginar “os termos jocosos” com que Eça poderia descrever o  patriótico e sumptuoso ritual da transladação.

  Por mim, não duvido que, perante os 300 convidados, aperaltados como o Palma Cavalão  ou como a  Condessa de Gouvarinho, repetiria os mimos picarescos da Carta que escrevera a Pinheiro Chagas; “Seus Excelentíssimos patriotaças, patrioteiros, patriotinheiros, patriotadores e patriotarrecas”…

Ler Eça faz bem à saúde. E aproxima-o do extinto Bisnau, do regionalista Re-Nha-Nhau e da Charlie Hebdo , sobretudo da homenagem às vítimas do atentado ocorrido há 10 anos em Paris.

A falta que faz hoje o bom humor  de Eça de Queirós! 

 

 11.Jan.25

Martins Júnior